Desmond Tutu escreve carta para Caetano Veloso e Gilberto Gil
Nobel da Paz, líder sul-africano escreve para Caetano e Gil para tratar da apresentação dos artistas brasileiros em Israel. Figura fundamental na luta antiapartheid, Desmond Tutu compara sistema segregacionista do seu país de origem e fala sobre função do boicote cultural
O arcebispo sul-africano, Nobel da Paz e líder antiapartheid Desmond Tutu enviou a Caetano Veloso e Gilberto Gil uma carta em que pede que os músicos cancelem o show em Tel Aviv previsto para 28 de julho.
No documento, datado de 12 de junho, Tutu compara o sistema segregacionista do seu país de origem com o que chama de “apartheid israelense”. “Nós, sul-africanos, sofremos décadas de apartheid e podemos reconhecer isso em outros lugares. Eu, pessoalmente, testemunhei a realidade de apartheid que Israel criou dentro de suas fronteiras e nos territórios palestinos ocupados”, afirma.
Para o Nobel da Paz, Caetano e Gil devem levar em conta que a sua música não pode ser “explorada por um regime opressivo para encobrir e perpetuar a opressão”. Segundo Tutu, sem o isolamento internacional, incluindo o boicote cultural, os sul-africanos jamais teriam alcançado a liberdade.
“Assim como dissemos durante o apartheid que era inapropriado para artistas internacionais se apresentarem na África do Sul, em uma sociedade fundada em leis discriminatórias e exclusividade racial, também seria errado a Ópera de Cape Town se apresentar em Israel”, argumenta.
O líder antiapartheid é a mais recente — e potente — voz contrária à apresentação dos ícones da Tropicália em território israelense, expressando apoio ao movimento global BDS (Boicote, Desinvestimento e Sanções).
Junto ao arcebispo, nomes como o ex-Pink Floyd Roger Waters, o ex-ministro de Direitos Humanos do Brasil Paulo Sérgio Pinheiro, além de quase 30 grupos de ativistas de movimentos sociais brasileiros também fazem coro pelo boicote ao concerto.
Leia carta na íntegra:
Caros Caetano e Gil,
Estou escrevendo a vocês para impeli-los a não se apresentar em Israel enquanto continua sua ocupação e apartheid contra o povo palestino. Quando um importante grupo musical sul-africano insistia em ignorar os apelos da sociedade civil palestina para cancelar sua apresentação em Tel Aviv, eu escrevi a eles: “Assim como dissemos durante o apartheid que era inapropriado para artistas internacionais se apresentarem na África do Sul, em uma sociedade fundada em leis discriminatórias e exclusividade racial, também seria errado a Ópera de Cape Town se apresentar em Israel.”
Nós, sul-africanos, sofremos décadas de apartheid e podemos reconhecer isso em outros lugares. Eu, pessoalmente, testemunhei a realidade de apartheid que Israel criou dentro de suas fronteiras e nos territórios palestinos ocupados. Eu vi as ruas ocupadas, colonizadas e racialmente segregadas de Hebron, as colônias exclusivamente judaicas, e eu andei ao lado do Muro que divide famílias palestinas em Belém e impede suas crianças de terem acesso normal à escola. Eu vi o sistema racializado de carteiras de identidade, as cores diferentes para placas de carro, e as leis raciais que discriminam contra palestinos. Meus caríssimos Caetano e Gil, eu vi o apartheid israelense em ação.
Mas eu também conheci a luta não violenta do povo palestino para pôr fim ao regime de opressão que lhes nega seus direitos e dignidade. Eles têm apelado ao mundo para pressionar Israel, assim como foi feito contra a África do Sul do apartheid, para acabar com a ocupação e as violações de direito internacional. Eu tenho apoiado seu movimento não violento de boicote, desinvestimento e sanções (BDS) em busca da justiça, liberdade e igualdade para todos.
Se nós não podemos ao menos atender os apelos da sociedade palestina, abstendo-nos de minar sua resistência pacífica e aspirações por uma vida sem opressão, nós estaremos abandonando nossas obrigações morais. Em situações de opressão, a neutralidade significa tomar o lado do opressor.
Sem o isolamento internacional do regime de apartheid da África do Sul, incluindo o apoio ao boicote cultural, nós não poderíamos ter alcançado a nossa liberdade. Artistas conscientes que se recusaram a se apresentar em Sun City contribuíram para nossa marcha pela liberdade, e nós somos profundamente gratos pela solidariedade deles. Vocês mesmos nos apoiaram em face do apartheid. Então, vocês também podem apoiar a busca palestina por dignidade e direitos.
A performance de vocês está marcada para o próximo mês, um ano depois dos últimos brutais ataques israelenses à ocupada e sitiada Faixa de Gaza. Milhares de irmãs e irmãos palestinos foram assassinados e muitos mais permanecem sem casa. Naquele momento, eu testemunhei os maiores protestos já vistos na África do Sul desde que libertamos nosso país do apartheid. As ruas de Cape Town foram tomadas por milhares de sul-africanos, homens e mulheres, jovens e velhos, colocando-se em solidariedade com o povo palestino.
Você, Gil, até cantou para nós: “Tornai vermelho todo sangue azul”. Você cantou ao “Senhor da selva africana”, dizendo que ela era “irmã da selva americana”. Eu acrescento: nossas selvas também são irmãs do vale do rio Jordão ocupado, das oliveiras em Jerusalém e dos pomares cítricos da Terra Santa.
Eu rogo a vocês que cancelem sua apresentação em Israel até o momento em que reine a liberdade e sua música não possa ser explorada por um regime opressivo para encobrir e perpetuar a opressão. Só então todos os palestinos — e israelenses — poderão viver sem opressão e verdadeiramente desfrutar de sua música.
Deus os abençoe.
Arcebispo Emérito Desmond Tutu
Cape Town, África do Sul
Opera Mundi