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O curioso caso da mulher branca que se passava por negra

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O que leva um branco a se dizer negro? Essa é a pergunta que os Estados Unidos mais tentam responder esta semana. Escândalo protagonizado por Rachel Dolezal levanta novos questionamentos sobre o racismo

Ativista Rachel Dolezal fingiu ser negra durante vários anos nos EUA (divulgação)

Cristina Fernández-Pereda, EL País

Essa é a pergunta que os Estados Unidos tentam responder há dois dias.

Rachel Dolezal é a presidenta local da organização pelos direitos dos afro-americanos NAACP (Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor) no Estado de Washington. Desde a adolescência mostrou-se interessada nos direitos das minorias, estudou em Mississippi e fez um mestrado na Universidade Howard, onde predominam os alunos de minorias. Atualmente também é professora de estudos afro-americanos e pertence a uma comissão policial de sua cidade. Quando solicitou esse trabalho, definiu-se como branca, negra e nativa americana.

Mas se olharmos uma fotografia tirada quando ela era criança, enquanto crescia em Montana, Dolezal é uma jovem loira, de olhos azuis. “É nossa filha biológica e somos caucasianos, isso é um fato”, disse seu pai. Com essas declarações, os progenitores de Dolezal – de ascendência checa e alemã – acenderam a chama de um complexo debate que deixou todo um país coçando a cabeça enquanto procura respostas para um fenômeno com escassos precedentes: uma pessoa branca que diz ser negra.

Na atualidade, Dolezal tem o cabelo enrolado, sua pele é mais morena e usou desde cachos retos de uma cabeleira afro até um elegante coque de tranças no alto da cabeça. Tentou enganar alguém? Pensaria que se não fosse negra não poderia presidir a organização com mais experiência na luta pelos direitos dos afro-americanos? É só a aparência física que determina se uma pessoa é branca ou negra? Ou é sua experiência? Dolezal é a única que pode decidir sua identidade ou também importa como seus pais se definem?

Perguntada neste sábado por vários jornalistas se é branca ou negra, Dolezal respondeu simplesmente “não entendo a pergunta”, antes de se afastar dos microfones. Também declarou que se for dar explicações, será para sua organização e não “para uma comunidade que não acho que vá entender as definições de raça e identidade”. Por enquanto, a NAACP afirma que a raça de uma pessoa não a qualifica nem desqualifica para liderar a organização e respalda publicamente a trajetória dela.

Muitas pessoas se fizeram “passar” por brancas ao longo da história dos EUA. Segundo um estudo da Universidade de Yale, cerca de um em cada cinco afro-americanos. Mas o caso inverso é menos frequente e faz com que, se quisermos abordar também essa conversa, não tenhamos os recursos – pessoais, sociais e até linguísticos – para responder, sem grandes dificuldades, às perguntas que são colocadas.

“A razão pela qual sua história é tão fascinante é que expõe de maneira inquietante que nossa raça é uma atuação”, escreve Steven W. Thrasher no The Guardian. “Apesar das distintas maneiras em que se percebe nossa raça, todas se baseiam no mito de que nossas diferenças existem e são perceptíveis”. Dolezal estaria contribuindo, talvez sem querer, para questionar o uso da identidade racial no contexto da justiça social e econômica.

Esse debate coloca a questão, por exemplo, de que se aceitamos que Dolezal “mentiu” sobre sua raça, assumimos também que a identidade racional não é pessoal, mas social. Isso quer dizer que uma pessoa deve justificar quando afirma ser branca ou negra? A resposta é mais complexa do que parece e obriga a reconhecer o que é a identidade racial e por que pesa tanto em um país como os EUA.

Um dos pontos-chave foi explicado por uma historiadora de Princetonao The New York Times. Na época da segregação, as leis de Jim Crow estabeleceram a “regra da gota de sangue”. Se uma pessoa tivesse uma única gota de seus ancestrais afro-americanos, por mais distantes que fossem, e por mais branca que fosse sua pele, seria classificada como negra, discriminada e despojada de direitos como o de votar antes de 1965. Uma lei racista serviria, portanto, para aceitar que, embora pareça branca, Dolezal é negra.

Segundo os dados revelados por meios norte-americanos, a protagonista desse debate está divorciada de um homem negro, com quem tem um filho de 13 anos. Também cresceu com quatro irmãos adotivos negros e a briga pela custódia de um deles é o que teria levado seus pais a declarar que a jovem mente sobre sua identidade. Deixando as disputas familiares de lado, essa experiência pessoal, cuja interpretação não corresponde a ninguém mais que a ela, poderia ter ajudado a que se identificasse como negra.

Mas nos EUA é difícil desvincular essa identidade de um passado de escravidão e discriminação com reverberações tão recentes como os últimos escândalos de violência policial. Por isso muitos afro-americanos denunciaram nas redes que, a não ser que uma pessoa compartilhe essa experiência – não só a cor da pele –, não deveria dizer que é negra.

E assim chegamos ao segundo ponto desse debate. A experiência pessoal de milhões de afro-americanos é uma na qual a cor de sua pele, sua história e a de seus antepassados fechou as portas para oportunidades e direitos que desfrutaram, e continuam desfrutando, os norte-americanos brancos. Eles não podem dizer que sua raça é outra, enquanto que Dolezal, que alega ter sido vítima de ameaças e ataques de ódio por parte de grupos supremacistas, poderia voltar a se identificar como branca e, supostamente, sentir-se protegida do racismo.

A Unesco declarou, em 1950, que raça, em termos biológicos, só existe uma, a humana. Depois de consultar com psicólogos, biólogos, sociólogos e antropólogos, descreveu qualquer outra conotação em torno à cor de nossa pele como um “mito”. Nesse caso, o escândalo sobre Dolezal nos obriga a responder por que continuamos diferenciando as pessoas em função da cor de sua pele e a admitir que muitas disparidades socioeconômicas que sobrevivem hoje nos EUA desapareceram das leis, mas não da realidade.

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