A “carta de amor” de Jean Wyllys para Eduardo Cunha
De: Jean Wyllys
Para: O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha
Brasília, inverno de 2015
Senhor Eduardo Cunha (não me sinto à vontade de me dirigir a você como “caro”, pois você ainda não me é caro; e estou usando o pronome “você” porque não estamos em sessão da Câmara Federal, logo, estou livre da obrigação de me dirigir a você como “vossa excelência”, e porque, confesso, não reconheço em você qualquer excelência além dessa conferida pela liturgia do parlamento):
Escrevo-lhe estas linhas a pedido de terceiros. Estes me desafiaram a abrir um diálogo com alguém que não tivesse qualquer empatia em relação a mim ou àqueles e àquelas que represento (as e os integrantes dos “grupos difamados”, como definiu a filósofa judia Hannah Arendt, cuja obra você talvez nunca tenha lido). Quando me fizeram esta proposta, pensei imediatamente em você. Pensei também no questionamento levantado por outra filósofa, a minha amiga Marcia Tiburi: é possível conversar com um fascista? Eu decidi que vale a pena tentar, principalmente se o objetivo da conversa é tentar despertar, no fascista, algum tipo de emoção política benéfica, como o amor, a empatia, a compaixão e a solidariedade.
Tenho certeza de que ocupado como você está em se manter na presidência da Câmara (conquistada graças aos favores que parte expressiva do baixo clero lhe deve, sobretudo no que diz respeito ao financiamento de suas campanhas por grandes empresas e igrejas evangélicas com as quais você tem relações estreitas) e em chantagear a presidenta Dilma com a desgovernabilidade, caso ela não lhe ceda os cargos que deseja na administração pública e por meio dos quais espera manter e estender sua influência política, você não tenha atentado para a notícia de que a Controladoria Geral da União determinou, no último dia 9 de junho e com base na Lei de Acesso à Informação, que a Fundação Casa de Rui Barbosa liberasse o trecho de uma carta do escritor Mário de Andrade ao colega Manuel Bandeira.
Nela, o primeiro trata de sua homossexualidade policiada e reprimida por pessoas homofóbicas do meio social e intelectual em que circulava – repressão e policiamento que perduraram inclusive na decisão dos guardiões dos acervos de ambos os escritores de não permitirem, nos anos que se sucederam às mortes de Mário de Andrade e Manuel Bandeira, o acesso de pesquisadores ao referido trecho da carta.
Como suponho que você, Cunha, não leia romances, novelas, contos, crônicas nem poemas – do contrário, teria um mínimo de interesse por modos de vida e valores que não estivessem atrelados ao acúmulo de riquezas materiais e poderes –, informo-lhe que Mário de Andrade é um dos artífices do modernismo brasileiro e autor de um romance clássico cujo título não poderia ser mais providencial a esta carta que ora lhe escrevo: Amar, verbo intransitivo. Você já foi capaz de pensar no verbo amar sem transitividade, Cunha? De amar mais que pessoas específicas – esposa, filhos – e objetos? De amar sem objetos?
Eu decidi lhe falar sobre essa notícia porque o conteúdo a que ela se refere significa mais que um evento literário e o fim de uma especulação: tem a ver com a homofobia – sistema de repressões, opressões, humilhações e exclusões do qual você é, hoje mais que antes, ícone e mantenedor.
A homofobia (entenda esta palavra tão usada e abusada como o conjunto das violências simbólicas e reais perpetradas contra a comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) não é uma questão política menor, como o querem os cínicos e analfabetos políticos. Por meio dela, os heterossexuais asseguram sua suposta “superioridade moral” e prioridade nas políticas públicas; parlamentares canalhas associados a igrejas fundamentalistas enriquecem e acumulam poder político; e religiões milenares disputam o controle da sexua-lidade humana. A homofobia é relevante politicamente também porque incide negativamente sobre o PIB, o IDH e o progresso da nação, já que elimina (ou dificulta drasticamente) o desenvolvimento intelectual e social de milhões de brasileiras e brasileiros.
Quantas mentes brilhantes não puderam se inserir no mercado de trabalho, contribuir mais ou foram ceifadas por causa desse sistema? Gênios como Mário de Andrade, Santos Dumont e Assis Valente não se destacaram por causa da homofobia, mas apesar da homofobia! Para uma pessoa homossexual (e principalmente para uma pessoa transexual) ser reconhecida nessa sociedade sexista e homofóbica é necessário um esforço mil vezes maior do que o que precisa uma pessoa heterossexual e cisgênero. Ela é vítima daquilo que o sociólogo Göran Therborn chama de “desigualdade existencial”. Consegue entender, Cunha? Se não, posso dar outro exemplo: o escritor João Silvério Trevisan, um dos mais talentosos que conheço, amarga hoje relativo ostracismo por ser homossexual assumido e ativista, enquanto impostores e sem-talento heterossexuais são eleitos “imortais” por uma Academia Brasileira de Letras ainda misógina e homofóbica.
O apagamento da homossexualidade das biografias de alguns gênios e heróis, mesmo quando feito por eles mesmos em função do estigma e/ou da homofobia que internalizaram, priva as gerações mais novas de referências positivas que lhes permitiriam viver sua orientação sexual sem vergonha e com orgulho. A homossexualidade não é um fato “escabroso” para ser apagado da biografia de uma pessoa pública. Muito menos algo que deva ficar encerrado “entre quatro paredes”, na medida em que nunca se apaga, da biografia de gênios e heróis heterossexuais, as relações sexuais e amorosas que tiveram ao longo de suas vidas (as histórias sobre as muitas mulheres do poeta Vinicius de Moraes estão aí pra provar).
Não reproduzirei aqui todo o trecho da carta de Mário a Manuel, mas peço que você preste atenção neste pedacinho: “Me dão todos os vícios que, por ignorância ou por interesse de intriga, são por eles considerados ridículos”. Consegue identificar a que ele se refere? À difamação! Processo de destruição da imagem pública por meio de mentiras e calúnias facilmente assimiláveis por ignorantes e preconceituosos. Processo de que sou vítima hoje e que é tocado por seus aliados ou paus-mandados dentro e fora do Congresso Nacional. Ou você vai negar que houve dedo seu naquela presepada constrangedora feita pela Frente Evangélica no plenário da Câmara, usando fotos fraudulentas, com o intuito de difamar a Parada LGBT de São Paulo?
O que Mário pede a Manuel é, não de maneira explícita, que este se coloque em seu lugar de modo a reconhecer e compreender seu sofrimento. Este exercício aparentemente simples, mas ainda pouco praticado, se chama empatia. Empatia é quase amor, se não for amor mesmo. Jesus, nos evangelhos, traduziu esse exercício em uma frase que se tornou a ética de seus primeiros seguidores: “Amai-vos uns aos outros como a vós mesmos!”.
Colocar-me em seu lugar é muito fácil, já que você está no lugar privilegiado de um homem branco, heterossexual, cisgênero, adulto, cristão, riquíssimo e presidente da Câmara dos Deputados. Difícil é lhe amar! Mas eu sou capaz de lhe amar caso você mude e deixe de ser um fascista.
Você, Cunha, e todos os seus asseclas, que gostam tanto de usar o nome de Jesus em vão ou para fins de manipulação do eleitorado cristão, seriam capazes desse exercício de empatia prescrito por Ele? Seriam capazes de se colocar no lugar do outro, como Jesus o fez tantas vezes? Seriam capazes de amar de verdade e intransitivamente alguém radicalmente diferente de vocês?
Está aberto o diálogo.
Jean Wyllys