Você é daqueles que acham que criticar a polícia é defender bandido? O pensamento binário é fascinante. Para algumas pessoas, a vida é simples: é céu ou inferno. Não existe outra coisa entre um polo e outro, nenhuma área cinzenta, nenhuma dúvida, nada. Para elas, o mundo não é complexo
Leonardo Sakamoto
O pensamento binário é fascinante. Para algumas pessoas, a vida é simples: é céu ou inferno. Não existe outra coisa entre um polo e outro, nenhuma área cinzenta, nenhuma dúvida, nada. Para elas, o mundo não é complexo. As pessoas idiotas é que tentam turvar aquilo que é certo, confundindo a certeza que deus nos deu.
Daí, para a vida fazer sentido, dizem que todos têm que abraçar uma ideia e simplificar o mundo ao máximo. Se você acha que isso é impossível, sem problema: eles te dão uma mãozinha, taxando você.
Por exemplo, para esse tipo, se você critica a atuação da polícia em um operação realizada em uma comunidade pobre ou afirma que há suspeitas de envolvimento de policiais em uma chacina, é um defensor de bandidos, quer a morte de policiais e deseja beber o sangue de crianças sacrificadas em nome de algum demônio. O mais feio deles.
Como já disse aqui várias vezes, independentemente de policiais estarem ou não envolvidos na chacina de 18 pessoas em Osasco e Barueri (SP), precisamos debater profundamente nossa polícia. E isso não se resume a dar bônus a quem matar menos ou aulas de direitos humanos na academia. Passa por revisão sobre o papel, os métodos e o seu caráter em nossa sociedade. Porque o sistema se reproduz no dia a dia.
Alguns setores da corporação estão impregnados com a ideia de que nada acontecerá com eles caso não cumpram as regras.
Agem à margem da lei em nome do cumprimento da mesma lei – ao torturar para obter respostas, por exemplo. Ou passar por cima dela em proveito próprio – o que pode ser provado pela ação de milícias e grupos de extermínio integrados, muitas vezes, pela banda podre da polícia.
Outra parte, reunindo a maioria dos policiais, segue as regras, mas sabe que a mesma sociedade está pouco se lixando para eles e suas famílias. Pagamos salários ridículos, de fome, e exigimos que se sacrifiquem em nome do nosso patrimônio.
Mudanças incluem um processo de desmilitarização da polícia. As Forças Armadas são formadas para a guerra. Em última instância, militares são treinados para matar. A polícia, por outro lado, não está em guerra com seu próprio povo. Ao menos, não deveria.
Parte da população apoia esse tipo de comportamento policial. Gosta de se enganar e acha que se sente mais segura com o Estado agindo “em guerra” contra a violência – como se isso não fosse, em si, um contrassenso. Essas pessoas são seguidoras da doutrina: “se você apanhou da polícia é porque alguma culpa tem”.
E se não se importam com inocentes, imagine então com quem, posteriormente, é considerado culpado. Para eles, é pena de morte e depois derrubar a casa e salgar o terreno onde a pessoa nasceu, além de esterilizar a mãe para que não gere outro meliante.
Enfim, reforço a ideia do último texto: mais do que um país sem memória e sem Justiça, temos diante de nós um Brasil conivente com o terror como principal ferramenta de ação policial. Os métodos eram os mesmos incorporados pela polícia na ditadura? Ah, se for em nome da minha (pretensa e frágil) segurança, não importa. Tiro até selfie.
E como também disse aqui, a polícia é um instrumento. O instrumento de uma parcela da sociedade com um grupo de poder econômico para a qual os domínios fora de seu castelo são terra de ninguém. O que acontece lá, fica por lá, desde que as coisas continuem como sempre foram.
Afinal de contas, na maior parte das vezes os que morrem são pretos e pobres, inocentes, culpados, moradores, policiais.
*Leonardo Sakamoto é professor, jornalista e doutor em Ciência Política
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