Enfermeiro de hospital bombardeado pelos EUA revela os momentos de terror
'Foi absolutamente assustador', diz enfermeiro de MSF sobre ataque em hospital no Afeganistão. Lajos Zoltan Jecs relata experiência de horror durante bombardeio liderado pelos EUA em Kunduz; ao menos 19 pessoas morreram
Na madrugada do último sábado (03/10), um hospital da MSF (Médicos Sem Fronteiras) foi alvo de um bombardeio da Otan na cidade de Kunduz, no norte do Afeganistão, palco de conflito entre os talibãs e tropas afegãs desde segunda passada (28/09). O ataque deixou ao menos 22 pessoas mortas – das quais 12 eram funcionários da organização humanitária – e quase 40 feridos.
Com a escalada de tensão em Kunduz, a MSF havia atendido, nos últimos dias, quase 400 feridos antes do bombardeio em seu hospital, o único que funcionava no município. Após o incidente, a ONU condenou a ação e afirmou que o ataque pode ser considerado “crime de guerra” caso tenha sido deliberado.
Responsáveis por liderar a operação, os Estados Unidos admitiram o que classificam como “dano colateral” na ofensiva e o secretário de Defesa norte-americano, Ash Carter, assegurou que haverá uma “completa investigação” sobre o caso, que classificou como “trágico”.
Leia na íntegra o relato do enfermeiro Lajos Zoltan Jecs, que estava no hospital de trauma de Médicos Sem Fronteiras em Kunduz quando a instalação foi atingida por uma série de bombardeios:
“Foi absolutamente assustador.
Eu estava dormindo em nossa sala segura no hospital. Por volta das 2 horas da manhã eu fui acordado pelo som de uma grande explosão próxima. No primeiro momento, eu não sabia o que estava acontecendo. Ao longo da última semana, já havíamos escutado outras bombas e explosões, mas sempre distantes. Esta era diferente – perto e alta.
No início, houve confusão e sedimentos de poeira. Enquanto tentávamos descobrir o que estava acontecendo, houve mais bombardeios.
Depois de 20 ou 30 minutos, ouvi alguém chamando meu nome. Era um dos enfermeiros da sala de emergência. Ele cambaleava com um trauma enorme em seu braço. Estava coberto de sangue, com ferimentos por todo o corpo.
Naquele momento, meu cérebro não conseguia processar o que estava acontecendo. Por um segundo eu paralisei, estava em choque.
Ele estava pedindo ajuda. Na sala segura, temos suprimentos médicos básicos em quantidade limitada, mas não havia morfina para conter a dor dele. Fizemos o que podíamos.
Não sei exatamente quanto tempo, mas foi talvez meia hora depois que eles pararam o bombardeio. Eu fui para fora com o coordenador de projeto para ver o que estava acontecendo.
O que vimos foi o hospital destruído, queimando. Eu não sei o que senti – estava em choque de novo.
Fomos procurar por sobreviventes. Alguns já tinham conseguido chegar a uma das salas seguras. Uma por uma, as pessoas começaram a aparecer, feridas, incluindo alguns de nossos colegas e acompanhantes dos pacientes.
Tentamos dar uma olhada em um dos prédios em chamas. Não posso descrever o que estava dentro. Não há palavras para o quão terrível estava. Na unidade de terapia intensiva, seis pacientes estavam queimando em seus leitos.
Procuramos por alguns profissionais que supostamente estariam no centro cirúrgico. Foi horrível. Um paciente ali, na mesa de operação, morto, no meio daquela destruição. Não conseguimos encontrar nossos profissionais. Felizmente, depois descobrimos que eles tinham escapado do centro cirúrgico e encontrado um local seguro.
Perto dali, demos uma olhada na ala de internação. Por sorte, intocada pelo bombardeio. Rapidamente, checamos que todos estavam ok. E em um bunker próximo da porta, todo mundo que estava dentro também estava ok.
Então, de volta ao escritório. Cheio – pacientes, feridos, chorando, por todos os lados.
Foi uma loucura. Tivemos de organizar um plano de atendimento em massa para atender as vítimas no escritório, verificando quais médicos estavam vivos e em condições de ajudar. Fizemos uma cirurgia de emergência em um dos médicos. Infelizmente, ele morreu ali, na mesa do escritório. Fizemos o nosso melhor, mas não foi suficiente.
Toda a situação foi muito difícil. Vimos nossos colegas morrerem. Nosso farmacêutico – eu estava justamente conversando com ele na última noite e planejando os estoques, e aí ele morreu ali no nosso escritório.
Os primeiros momentos foram de caos. Profissionais suficientes tinham sobrevivido, então pudemos ajudar todos os feridos com ferimentos tratáveis. Mas havia muitos que não pudemos ajudar. De alguma forma, tudo estava muito claro. Tratamos apenas as pessoas que precisavam ser tratadas, e não tomamos decisões – como poderíamos tomar decisões naquele cenário de medo e caos?
Alguns de meus colegas estavam realmente em choque, chorando e chorando. Tentei encorajar alguns dos profissionais a ajudar, oferecer-lhes algo no que se concentrar, afastar suas mentes do horror. Mas alguns estavam simplesmente chocados demais para fazer qualquer coisa. Ver homens adultos, seus amigos, chorando descontroladamente – isso não é fácil.
Tenho trabalhado aqui desde maio e já vi muitas situações médicas pesadas. Mas é uma história totalmente diferente quando eles são seus colegas, seus amigos.
São pessoas que vinham trabalhado duro por meses, sem parar ao longo da última semana. Eles não foram para casa, eles não viram suas famílias, eles só vinham trabalhando no hospital para ajudar pessoas… e agora estão mortos. Estas pessoas são amigos, amigos próximos. Não tenho palavras para expressar isto. É indescritível.
O hospital foi meu local de trabalho e minha casa por meses. Sim, é só um prédio. Mas é muito mais do que isso. É uma unidade de atendimento de saúde para Kunduz. Agora acabou.
O que está no meu coração desde esta madrugada é que isto é completamente inaceitável. Como pode acontecer? Qual é o benefício disso? Destruir um hospital e tantas vidas para nada. Não consigo encontrar palavras para isto.”
Opera Mundi