Joana é negra, carroceira, sem dentes, dependente de drogas e desde muito cedo sofre com a omissão do Estado. Juliana é branca e rica e, mesmo tendo matado duas pessoas, é beneficiada pela ação do Estado
Dina Alves*
A motivação para esta pesquisa advém de uma inquietação pessoal, surgida na graduação: o peso dos atributos “raça” e “gênero”, na produção da vulnerabilidade social de mulheres negras encarceradas no sistema de justiça criminal paulista.
Na condição de estudante de graduação, em 2005, atuei no Ministério Público do Estado de São Paulo, na Vara da Infância e Juventude. Também trabalhei na Casa de Acolhimento “Irmã Dolores”, antigo abrigo na cidade de Guarujá. Minha atuação nas duas entidades me fez refletir e questionar como as adolescentes negras viviam e respondiam às múltiplas formas de violência a que estavam submetidas.
Como viam a Justiça? Como viviam e negociavam a identidade estigmatizada de mulher negra privada de liberdade? Que imagem pública pensavam projetar sobre seus corpos e seus comportamentos?
A segunda motivação foi à característica dominante do sistema prisional brasileiro entre 2000 e 2012. Minha atuação como ativista do abolicionismo penal me permitiu situar à explosão demográfica do encarceramento brasileiro no contexto maior do que ativistas em outras partes das Américas tem chamado de industrialização da punição.
A terceira motivação foi perceber que embora as mulheres presas tenham sido objeto de crescente interesse entre pesquisadores do sistema penitenciário nacional, as mulheres negras não aparecem em suas discussões, ainda que constituam o principal grupo de presas no país. Alguns trabalhos têm mostrado que as mulheres, de modo geral, possuem uma vulnerabilidade específica, marcada por sua condição de gênero em uma sociedade estruturada a partir de desigualdades entre homens e mulheres. Apesar de tais estudos ajudarem a entender a dimensão de gênero nas prisões – uma vez que elas têm o mérito de des-masculinizar as narrativas sobre o universo prisional – eles têm se revelado insuficientes no que diz respeito à especificidade da mulher negra.
O objetivo da pesquisa
Oferecer uma análise interseccional de gênero, raça e classe sobre a distribuição desigual da punição no sistema de justiça criminal paulista e aprofundar a relação entre a feminização da pobreza e feminização da punição. A análise interseccional oferece, possibilidades de descentralizar (ou complexar) os estudos sobre as prisões que têm privilegiado a perspectiva de classe social em detrimento de uma abordagem mais ampla e condizente com a realidade racial brasileira.
História de Joana (nome fictício para preservar a imagem da entrevista e para romper com a lógica burocrática que a reduziu a números, tanto nos seus prontuários que tive acesso, quantos nos processos criminais).
“Eu peguei 07 anos de novo e tou aqui com minha filha, e agora ela teve um bebê, meu neto. Quando fui presa trabalhava como carroceira e morava nas ruas, embaixo do viaduto do Glicério. Eu tava na cracolândia e o policial me levou. Eu engoli três pedras de crack pra não ser presa. Já perdi as contas de quantas vezes vim pra cá. A primeira vez foi com 17 anos quando fui para a Febem e hoje tenho 49 anos. Já vivi mais aqui do que lá fora. O que eu quero hoje é poder ficar com minha filha mais perto e meu neto. O pai do menino a polícia matou e eles querem levar meu neto para a adoção mas eu não vou deixar. Já falei com a Pastoral” (Entrevista dia 05/10/2014).
Nos meus encontros com Joana percebi a figura de uma mulher negra, carroceira, sem dentes, obesa e dependente de drogas. A experiência de Joana como usuária e vendedora de drogas na Cracolândia ajuda a entender o que a socióloga norte americana Julia Sudbury chama de “feminização da pobreza”. Cada vez mais marginalizadas do acesso às esferas de produção de consumo e direitos de cidadania, mulheres negras, como Joana, figuram na economia ilegal do tráfico de drogas como vendedoras, mulas ou simplesmente consumidoras.
Joana têm uma história de uso de drogas que tem tudo a ver com o processo de racismo e feminização da pobreza no Brasil. Sua história de aprisionamento começou aos 11 anos de idade quando viveu entre as rua e abrigos do estado. Foi apreendida aos 17 anos de idade na atual Fundação Casa (FEBEM) e hoje cumpre pena na penitenciaria Feminina de Santana com sua filha e seu neto recém-nascido. Entre a prisão e as ruas, Joana tem a vida marcada por um assalto patriarcal ao seu corpo que pode ser visto em sua aparência doentia e envelhecida, embora possua apenas 49 anos de idade.
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*Dina Alves é advogada e membro do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais).
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