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De onde vem nossa fraternidade seletiva?

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Por que a vida de um queniano vale menos que a de um francês? A culpa é dos meios de comunicação do Brasil? Da mídia internacional? Dos governantes do ocidente? Nossa compaixão seletiva precisa ser discutida

Jovens protestam contra crime bárbaro em Garissa (Quênia) que deixou mais de 140 estudantes mortos. Motivação foi a mesma alegada nos atentados em Paris, mas não houve indignação mundial (Pragmatismo Político)

Armando Antenore, Revista Samuel

Imagine que, numa madrugada de quinta-feira, quatro radicais muçulmanos invadissem uma universidade dos Estados Unidos, da Alemanha ou da Inglaterra. Imagine que carregassem explosivos e armas automáticas. Imagine que seguissem para os dormitórios estudantis e perguntassem a religião de cada rapaz ou moça que encontrassem por lá. Imagine que, se o jovem respondesse “sou cristão”, os atiradores o matassem. Imagine que os insurgentes permanecessem no campus durante 16 horas e mantivessem centenas de reféns, entre alunos e professores. Imagine que, depois de a polícia e o Exército tomarem conta da situação, a horrorosa jornada terminasse com um saldo de 148 mortos.

Como o Ocidente — incluindo o Brasil, claro — enxergaria a carnificina? De que maneira nossos jornais, revistas, televisões, rádios e sites noticiosos relatariam o fato? Cobririam a tragédia em tempo real? Enviariam correspondentes para a cidade onde se deu a tenebrosa investida? Continuariam destacando o assunto por quanto tempo: dias, semanas, meses? O que os internautas comentariam nas redes sociais e com que frequência? O Facebook estimularia campanhas de apoio às vítimas? Os chefes de Estado se pronunciariam imediatamente? Em que tom? Falariam que o atentado maculou não apenas o campus, mas todas as sociedades que se proclamam civilizadas? O infortúnio viraria um marco, sempre mencionado por gerações futuras?

Infelizmente, o crime bárbaro aconteceu há sete meses em Garissa, no Quênia. A república africana — e negra — reúne 47,3 milhões de habitantes, mais ou menos a mesma população da Espanha. Como dispõe de praias, savanas, florestas, lagos, montanhas e desertos belíssimos, atrai um número considerável de visitantes (não à toa, converteu o turismo num dos pilares de sua economia, majoritariamente agrícola). Ocupa a 82ª posição no ranking do Fundo Monetário Internacional que compara o Produto Interno Bruto de 183 nações. Embora não se trate de um país miserável, está longe de figurar entre as potências e enfrenta dificuldades severas em diversas áreas: educação, saúde, infraestrutura, segurança. Mesmo assim, exibe uma classe média pujante, o que faz crescer os olhos de investidores estrangeiros. Politicamente, é uma democracia, mas disputas étnicas, corrupção e fraudes eleitorais costumam ameaçá-la.

Os terroristas que tomaram o campus, na fronteira com a Somália, integravam o Al-Shabaab, grupo somali ligado à Al-Qaeda e combatido pelo Quênia desde o fim de 2011. Consideravam a universidade “um território muçulmano”, que precisava se libertar “dos infiéis”. Daí a ação sanguinária. Os quatro extremistas acabaram assassinados durante o cerco policial. Entre os 148 mortos, contavam-se 142 estudantes.

Há 17 anos, o país da África Oriental sofre ataques jihadistas de imensas proporções. Por que, então, pouquíssimos de nós mencionam o Quênia quando esbravejam contra o terrorismo? Você tomou conhecimento do que se passou na universidade? Recordava-se do episódio? Eu tomei, mas só me lembrava vagamente daquele 2 de abril. E a descoberta de não o guardar vivo na memória me angustiou pela manhã, quando avistei uma fotografia dos alunos mortos em meio à enxurrada de informações que ando consumindo sobre os recentes e terríveis acontecimentos da França. “Como posso não lembrar?!”, indaguei-me, perplexo. O ato escabroso ocorreu no primeiro semestre de 2015 e dentro de uma universidade, território que sempre julguei sagrado, que sempre quis ver protegido da intolerância, da brutalidade e da desesperança.

Para o Ocidente, um campus não agrega simbolismos parecidos com os do Bataclan, casa de espetáculos parisiense onde o Estado Islâmico provocou dezenas de mortes? Não representa a liberdade, a promessa de diálogo e o apelo à convivência pacífica? Não abriga a alegria e o inconformismo juvenis? No entanto, apaguei da mente e do coração tudo o que se desenrolou em Garissa. Aliás, antes da matança, nunca ouvira falar da cidade e não retive o nome dela após a pavorosa quinta-feira. Assim que recebi as notícias do massacre, não me preocupei em aprender mais sobre o Quênia e não procurei os testemunhos de quenianos na internet (uma das línguas oficiais de lá é o inglês). Tampouco vasculhei a mídia local atrás de análises, opiniões e histórias de solidariedade ou heroísmo. Não observei direito o rosto dos garotos e garotas que morreram antes de deixarem os próprios quartos. Não cogitei pintar meu retrato no Facebook com o vermelho, o preto e o verde que tingem a bandeira da república africana — até porque Mark Zuckerberg não me ofereceu nenhuma ferramenta capaz de efetivar a metamorfose nem minha curiosidade se prontificou a checar quais as cores nacionais do país.

Agora, à medida que faço essas pesquisas tardias, sinto-me como se desbravasse Marte. Percebo que o Quênia é, para mim, tão distante quanto o planeta alaranjado. Garimpo inúmeras reportagens e artigos sobre a terra das girafas, dos rinocerontes e das zebras, mas não consigo avaliá-los, tamanho meu gap de referências. Devo confiar no que leio? O que me afirmam as fontes britânicas, norte-americanas, espanholas, portuguesas e mesmo quenianas merecem crédito? Não tenho ideia, já que estou me aventurando por aquelas bandas pela primeira vez.

Lógico que Paris me soa infinitamente mais familiar. A questão, porém, não é conhecer melhor a França. O problema é não conhecer nada do Quênia nem nutrir uma empatia avassaladora pelos que moram ali. Afinal, no Brasil, negros e pardos ainda constituem a maioria da população. Dizem os historiadores que parte deles se origina de escravos “moçambiques”, assim designados porque vinham justamente de Moçambique e arredores, uma região que hoje engloba a Tanzânia, o Malauí, a Zâmbia, a África do Sul, o Zimbábue e… o Quênia! A França, em muitos sentidos, é aqui. Mas o Quênia também não é? Estima-se que, no século 19, entre 18% e 27% dos africanos que habitavam o Rio de Janeiro pertenciam à linhagem dos “moçambiques”.

Eu poderia culpar os meios de comunicação brasileiros, a opinião pública internacional e os governantes ocidentais pela apatia com que encarei a chacina de Garissa. Praticamente todos, de um modo ou de outro, abordaram a selvageria, mas sem persistência e sem aquilo que Aristóteles chamava de “a justa indignação”. Seria cômodo lhes atribuir o ônus da minha fraternidade seletiva. Ocorre que já possuo cabelos brancos suficientes para admitir o óbvio: a compaixão — a minha, a de você, a de Zuckerberg, a de Barack Obama, a do Papa — não deveria nascer somente do jeito como a mídia e a geopolítica descrevem o mundo. Eu soube do que aconteceu com a meninada do Quênia. Nós soubemos. A notícia nos chegou logo depois de o inferno baixar naquela universidade. Entretanto, conscientemente ou não, preferi esquecê-la. E tal escolha, à luz de como reagimos diante das atrocidades em Paris, se tornou inesquecível.

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