Enem: Sobre o que nos tornamos
Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político
A Câmara de Vereadores de Campinas aprovou, por maioria, uma moção de repúdio à questão do ENEM deste ano que citava um fragmento do livro O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”.
A frase assim, solta, fica fora de contexto e permite várias interpretações, inclusive as mais esdrúxulas e de sentidos literais. Ela estava descontextualizada justamente porque cabia ao candidato inseri-la na sua lógica, no caso, a do feminismo. A questão nem mesmo pedia pro candidato concordar com o feminismo, pedia, apenas, pra ele interpretar a que se referia.
Beauvoir alega que as mulheres não nascem mulheres não no sentido biológico, evidentemente, mas no sentido social. Defende que as mulheres não nascem subservientes aos homens, tornam-se ao longo de uma vida institucionalmente subjugada. A autora defende que não é da natureza da mulher sofrer com resiliência os mais diversos tipos de violências e agressões. Ocorre que a mulher aprende a se conformar e resignar-se, num sofrimento silencioso.
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Fazendo um paralelo, dá pra dizer que a Beauvoir fez uma interpretação da Teoria do Bom Selvagem, do Rousseau, a qual diz que o homem nasce bom, mas a sociedade o corrompe. Para Beauvoir, a mulher não nasce com propensão ao sofrimento e privações várias que sua condição de mulher lhe acarretará, mas a sociedade imporá tais condições e ela, em derrota, aceitará.
Determinados grupos contrários à questão a atribuem a uma tentativa de “marximação” do ENEM. Isso é, de tentar incultar aos alunos as ideias de Karl Marx. Esses grupos, aliás, são os mesmos que defendem que as ideologias acabaram, enquanto acusam o Governo Federal de tentar implementar o Comunismo no Brasil (um Comunismo em que nunca banqueiros lucraram tanto e que insiste em pagar a sua Dívida Externa. Um paradoxo, enfim).
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Ocorre que atribuir ideias de feminismo ou questões de gênero a Karl Marx é um erro típico de quem faltou à aula de História para ir comer coxinha no bar da escola. Marx nunca se ocupou desses assuntos. E mais, na Revolução Cubana, de inspiração assumidamente marxista, era sabido que o próprio Che Guevara mandava fuzilar homossexuais (o Deputado socialista e homossexual Jean Wyllys, num convite à reflexão, vestiu-se de Che Guevara, certa feita).
Não se nega, contudo, que a esquerda assumiu as bandeiras do feminismo e das questões de gênero e de defesa da minoria. A direita, por sua vez, tomou rumo oposto, o do conservadorismo (a direita, que se nega, prega um estado mínimo, mas quer interferir maximamente na vida pessoal do indivíduo). Mas não se pode, entretanto, afirmar que todas as ideias da esquerda são de Marx, enfim. O debate transcende isso.
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Repito, a questão apresentava sim a legítima luta feminista (que também transcende muito o senso comum propagado por aqueles que faltaram às aulas de História), mas não obriga ninguém a concordar com ela. Não é preciso concordar com o Rousseau, com a Simone de Beauvoir ou com qualquer outro escritor citado na prova. Basta localizar as ideias num contexto, como disse.
De minha parte, concordo com as ideias da Simone de Beauvoir. As mulheres tornam-se. Assim como a maioria dos vereadores de Campinas não nasceram estúpidos. Tornaram-se.
*Delmar Bertuol é escritor, membro da Academia Montenegrina de Letras, graduando em história e colaborou para Pragmatismo Político