Pedro Ítalo Carvalho Silva*, Pragmatismo Político
Há algo de podre, não no reino da Dinamarca, como escreveu Shakespeare em Hamlet, mas na arraigada forma de enxergar fatos sociais complexos por lentes rudimentares e reducionistas. Afirmo isso, ainda que relutantemente, pois percebi que qualquer manifestação acerca dos fatos correntes, neste momento, será precipitada e engolida por um turbilhão de novas informações emergentes a cada novo click, por me incomodar categoricamente com a forma minguada como a mídia, e até mesmo alguns doutos “especialistas” e “intelectuais”, vêm tratando o fenômeno ISIS (Estado Islâmico).
A regra, com raras e bem-vindas exceções, parece ser a simplificação, por uma ótica que nos convém, da brutal, porém não menos refinada e elaborada, tática adotada pelo ISIS. A mensagem que nos passam é que se trata de uma mera dualidade maniqueísta, o bem contra o mal, ou, nos termos de Maniqueu, filósofo cristão do século III, Deus contra o Diabo. Aqui, mais uma vez, como vem sendo a infeliz tônica que alicerça os debates políticos dos últimos tempos, o raciocínio binário faz morada. Neste aconchegante binarismo, fatos, indivíduos, grupos e ideias são despidos de todo o robusto leque de fatores que lhes formam, cercam e dialogam, para dar lugar a uma cômoda
dicotomia, como se procurássemos refúgio em um mundo preto no branco, oito ou oitenta, frio ou calor, ou seja, em um contexto político menos complexo e conflituoso que, obviamente, não toca o terreno da realidade. A estratégia é reconfortante, eu sei, mas é moral e politicamente insuficiente e inaceitável.
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Há, é bem verdade, inúmeras formas de aclarar e perceber o fenômeno do Estado Islâmico, desde os motivos e contextos do seu surgimento, até a sua forma organizacional, fortalecimento, estratégia, financiamento, motivações e objetivos finais. Estas formas se distinguem umas das outras em diversos pontos, porém, convergem-se em uma questão estrutural: o ISIS é um movimento complexo, uma rede de emaranhados fatores políticos, bélicos, territoriais e religiosos, e que, portanto, não é passível de explicações condensadas em clichês compactos que satisfaçam os assustados ouvidos da audiência. É preciso respeito. Respeito diante dos fatos, da história, da(s)
verdade (s) e, principalmente, dos receptores da mensagem. Ainda que se trate, como no título do documentário do ex vice-presidente dos EUA, Al Gore, de uma “verdade inconveniente”.
Outro recorrente traço dessa reduzida abordagem midiática sobre o lamentável atentado de Paris, parece-me ser uma interpretação quase que hegemônica sobre os membros do ISIS e suas motivações. Aqui, ainda que, muito provavelmente, de forma involuntária, surge uma realocação do conceito arendtiano de “banalidade do mal”, presente na clássica obra “Eichmann em Jerusalém” de 1963. Como percebeu a filósofa judia, Hannah Arendt, no julgamento do nazista Adolf Eichmann, em Israel, muitos analistas de hoje tratam de atribuir aos membros do ISIS uma espécie de “maldade fora do armário”, algo como uma trivialização da violência que surge no bojo de um “vazio de pensamento”. Contudo, ao contrário do que logrou Arendt, julgo aqui estarem equivocados aqueles que assim interpretam o fenômeno ISIS. Não se trata apenas de uma expressão maléfica independente, de uma conduta perversa desconexa de objetivos e motivações maiores e coletivas. O mal do ISIS não é um mal que nasce e existe por si só, não é banal, ao contrário, é matematicamente planejado e aplicado como parte de uma estratégia maior. Ao contrário de Eichmann e outros nazistas, os membros do Estado Islâmico não utilizam o “mal” apenas como um meio necessário para a conquista de um objetivo qualquer, sem refletir sobre tais condutas, tampouco para galgar promoções e benefícios particulares em uma estrutura burocratizada como era o Estado nazista. A lógica aqui é outra, não cabendo assim, portanto, uma pobre análise que nos leve a crer em uma maldade pura e descontextualizada.
Arcaico. Esse é outro termo frequentemente utilizado nos telejornais para descrever o ISIS. Oras, como pode ser arcaico um grupo que se auto-proclama um “Estado” e não sem razão? Sim, o ISIS, como um Estado politicamente constituído, controla cidades, fornece sistemas de saúde, educação, “segurança”, produz leis, forma estruturas de poder burocráticas e possui estratégias de marketing e recrutamento tão eficazes quanto as de quaisquer outros grupos legalmente legitimados. Aqui, fico com a opinião do sociólogo Rodrigo Prado Mudesto: o Estado Islâmico é sim moderno, tanto quanto as redes sociais e séries de TV. Nas palavras de Mudesto: “Os jovens do EI são produto da
mesma época que produz trolls de internet, empreendedores de startups, nem-nens e os jovens militantes da multidão, do ocuppy e do anonymous e da nova direita. Hidras diferentes que compartilham contemporaneidade.”. Da MESMA contemporaneidade!
Documentário: Por dentro do Estado Islâmico
Por fim, mas sem a pretensão de esgotar o tema, dentre as interpretações possíveis que não vemos nos noticiários, está uma hipótese lançada pela economista Laura Carvalho, que aqui transcrevo: “Para os que não entenderam, os ataques não foram a um local representativo da sociedade francesa. Tampouco foram a um símbolo do poder financeiro ou militar do país. A casa de shows e o restaurante são em um bairro frequentado principalmente por jovens progressistas. Justamente aqueles que são mais propensos a dar boas-vindas a refugiados, por exemplo. Assim como no Charlie Hebdo, os valores atacados não foram o imperialismo e a política francesa de guerra. Foram os valores franceses da liberdade, igualdade e fraternidade, pra ficarmos em um cliché. Não me parece coincidência. Ao alimentar o ódio onde se odeia menos, ao fomentar desejos de guerra em quem não os tinha, o monstro só cresce. É essa a parte mais triste e perigosa.”
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Há que se desconfiar de explicações simples para questões abstrusas, especialmente quando elas partem de veículos e vozes com capacidade de formar e influenciar as opiniões de milhões. Um fenômeno tão labiríntico quanto o Estado Islâmico e todo o contexto que o envolve não pode ser reduzido a uma pífia interpretação de “terrorismo”. E aqui não se trata somente de mastigar a notícia para que o espectador possa digeri-la com maior facilidade. Não! Trata-se de despreparo, preconceito e resistência em entender o ISIS fora do enraizado “Establishment” e modo de pensar ocidental.
*Pedro Ítalo Carvalho Silva, 24 anos, graduando em Ciências Sociais pela UFBA – Universidade Federal da Bahia e em Direito pela FRB – Faculdade Ruy Barbosa, pode ser encontrado em: https://www.facebook.com/PedroDelMar1
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