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A trajetória do negro e do racismo no futebol brasileiro

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No País do racismo movediço e escorregadio, para não dizer hipócrita, entenda a ambígua trajetória do negro no futebol

Copa Libertadores de 2014. Cruzeiro e Real Garcilaso se enfrentam na cidade peruana de Huancayo. Quando o meio-campista cruzeirense Tinga toca na bola, a torcida local imita macacos. Um brasileiro mais otimista poderia avaliar tal atitude típica de nações estrangeiras ou pouco desenvolvidas.

Pouco depois, a cena se repete. Desta vez, o volante santista Arouca, em partida contra o Mogi-Mirim, ouviu de um torcedor que deveria procurar uma seleção africana para jogar. Para terminar essa sequência lamentável, o zagueiro Paulão, do Internacional, foi chamado de macaco por um grupo de torcedores gremistas.

Talvez tenha sido sensata a afirmação de Arouca, logo após o episódio, quando disse: “O futebol é um espelho da nossa realidade, e isso não se resume apenas a xingamentos racistas”. O esporte faz parte da sociedade e, portanto, está permeado por suas contradições.

Os últimos acontecimentos e a da Copa do Mundo possibilitam um momento privilegiado para debatermos a trajetória complexa e ambígua da história do futebol e do racismo no Brasil.

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O foot-ball surgiu no Brasil no fim do século XIX. Era praticado por jovens de nível social destacado que se reuniam nos intervalos de suas atividades para praticar “o esporte pelo esporte”. Eles próprios custeando as despesas do divertimento e dentro do mais puro amadorismo. Só podiam jogar os que fossem sócios do clube. Funcionava como um símbolo de status quo, como um diferenciador de classes e raças, um referencial para os queriam se auto afirmar brancos, ou “embranquecidos”, e serem aceitos na alta sociedade.

No Brasil, acreditava-se que a mestiçagem terminaria por branquear o povo brasileiro. Considerado o negro menos evoluído biologicamente, o cruzamento inter-racial perpetuaria apenas os genes do branco.

Não era somente entre intelectuais como Oliveira Viana que tais ideias eram aceitas. Na verdade, eram valores consolidados por largo espectro da sociedade brasileira. Muitos negros assimilaram os preconceitos, os valores sociais e morais dos brancos. Nesse contexto, o racismo brasileiro era peculiar, pois a própria vítima assumia o papel de algoz.

Trata-se da época de Arthur Friedenreich, o primeiro grande craque que o futebol brasileiro produziu. Apesar do nome, ele era um mulato claro, de olhos verdes, filho de um alemão com uma negra brasileira. Foi um dos maiores artilheiros do futebol mundial. Seu maior feito foi ter marcado o gol que deu à Seleção Brasileira o seu primeiro título continental, o do Sul-Americano de 1919. Fried simbolizava o período em que o futebol prestigiava jogadores mulatos desde que conseguissem disfarçar sua negritude.

Apesar do elitismo, aos poucos, o futebol foi conquistando a preferência popular. Negros, mulatos, trabalhadores e desempregados passaram a olhar com mais interesse a novidade. Todos podiam estranhar, no início, aquele espetáculo de 22 pessoas correndo atrás de uma bola.

Entretanto, existia algo viril e dramático no jogo que levava aquelas pessoas, de vida sofrida, a extravasarem seus rancores e desilusões numa partida.

Se negros e mulatos passaram a adotá-lo como prática lúdica nos seus horários de lazer, bem diferente foi a sua introdução como atletas nos grandes clubes. Tal barreira foi transposta aos poucos e, de acordo com a cidade, em ritmos diferenciados. Provavelmente, o primeiro clube a aceitar jogadores negros e mulatos foi o The Bangu Athletic Club.

A agremiação foi criada em 1904 nos subúrbios do Rio de Janeiro por chefes e empregados ingleses da fábrica de tecidos Companhia Progresso Industrial. Graças ao diminuto número de jogadores brancos, aos poucos, foram convidados para compor a equipe os operários negros e mulatos.

O amadorismo puro, jogar pelo “amor a camisa”, tão defendido pelos primeiros jogadores e dirigentes, passou a ser questionado. Já se ouviam denúncias de um profissionalismo disfarçado. Eles recebiam o “bicho”, uma ajuda de custo para pagar a passagem ou a estadia, sempre maior que o necessário.

O “bicho” possibilitou a introdução de atletas das classes mais baixas no futebol. Muitos não aceitavam esses falsos amadores e conflitos surgiram com o objetivo de limitar o acesso dos “mercenários”.

Era o tempo do Vasco da Gama, campeão carioca em 1923, formado pelo chofer de táxi Nelson Conceição, pelo pintor de paredes Ceci, pelo estivador Nicolino e pelo motorista de caminhão Bolão, todos negros e mulatos. No ano seguinte, os dirigentes dos principais clubes cariocas resolveram criar uma nova liga de futebol, sem a presença do Vasco.

O racismo no futebol não ficava restrito aos dirigentes de clube. O governo federal estava atento ao apelo popular do esporte. Em 1920, a Seleção Brasileira ao jogar em Buenos Aires não teve uma recepção das mais amistosas. Os argentinos pareciam nunca terem visto tantos negros em um único time.

O jornal Crítica, da capital portenha, publicou uma fotogravura representando todo o time brasileiro com a cara de macacos. Nos anos seguintes, os presidentes Epitácio Pessoa, em 1921, e Arthur Bernardes, em 1925, concederam à Confederação Brasileira de Desportos algumas dezenas de contos para participar dos Campeonatos Sul-Americanos dos respectivos anos.

Em troca, determinaram que somente fossem convocados atletas rigorosamente brancos, por motivos de “prestígio pátrio”.

Porém, o mais impressionante era o racismo do próprio atleta negro ou mulato. Uma história contada pelo jornalista esportivo Mário Filho ilustra as contradições.

Os jogadores Robson e Orlando, do Fluminense, estavam sendo conduzidos para o seu clube de automóvel quando um casal de negros atravessou apressadamente a rua e, por pouco, não foi atropelado.

Orlando, irritado, gritou: “Seus pretos sujos”. Robson tentou tranquilizar o companheiro: “Eu já fui preto e sei o que é isso”. Não há como saber sobre a veracidade da narrativa. Porém, a frase retrata como poucas os dilemas da sociedade brasileira da época.

Durante o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945), o futebol profissional foi oficializado. Também ocorreu um redirecionamento dos discursos raciais, tendo como marco e símbolo a obra de Gilberto Freyre e a figura da democracia racial.

O objetivo central de seu livro Casa-grande e senzala (1933) era apresentar os elementos característicos das três raças que pretensamente formavam os brasileiros, colocando-os no mesmo patamar.

A junção das características culturais destes três elementos propiciaria o surgimento de um tipo nacional mais original, capaz de amenizar os conflitos na sociedade brasileira.

Mário Filho concordava com toda essa interpretação. Em seu clássico de 1947, O Negro no Foot-ball Brasileiro, escreveu: “Branco, mulato ou preto. Porque em foot-ball não havia mais nem o mais leve vislumbre de racismo”.

Para o jornalista, a influência da democracia racial não se restringia aos jogadores. Também se estendia para todos torcedores e para a sociedade: “E quem está na geral, na arquibancada, pertence à mesma multidão. A paixão do povo tinha de ser como o povo, de todas as cores, de todas as condições sociais. O preto igual ao branco, o pobre igual ao rico”.

Apesar de Freyre e Filho, as contradições sociais e raciais continuaram. Na Copa de 1950, quando a Seleção Brasileira perdeu para os uruguaios por 2 a 1, o racismo foi reatualizado.

Todos os envolvidos foram considerados culpados. A maior parte das acusações, porém, foi direcionada para dois jogadores negros: o goleiro Barbosa e o zagueiro Bigode.

Na década de 1950 produziu-se um acirramento de tais questões. Segundo alguns teóricos do período, como Florestan Fernandes, a discriminação racial no Brasil era temporária: à medida que o elemento negro fosse inserido no processo de industrialização capitalista, ele seria incorporado à sociedade brasileira, levando o preconceito racial à sua erradicação e substituição por relações classistas.

As interpretações de Freyre e Fernandes eram visões de Brasil e de povo brasileiro hegemônicas. Tinham atingido o senso comum da sociedade da época. As ideias de democracia racial, sem preconceitos de raça, e de que era possível em um país industrializado, a ascensão econômica e social dos trabalhadores e, especificamente, dos negros eram compartilhadas por amplos segmentos.

Faltava uma prova de coerência para que tal hegemonia se consolidasse. As dúvidas persistiam: como poderia o Brasil ser uma democracia racial se, a olhos vistos, as diferenciações sociais e econômicas entre brancos e não brancos eram gigantescas?

É neste contexto, na conquista da Copa de 1958, que surgiu Pelé. O seu mito parecia ser a comprovação dessas teorias. Mostrava que era possível, numa sociedade cada vez mais urbanizada e industrializada, um negro ascender social e economicamente.

Entretanto, o mesmo sucesso de Pelé mostrou as contradições do seu mito e da identidade racial. Muitas de suas declarações incomodavam, sempre enfatizando que em sua vida nunca sofrera atitudes racistas, como afirma à revista Veja, de 14 de julho de 1971: “Eu fico sem jeito de responder. Mas a verdade é que nunca senti nada que pudesse me motivar a tomar qualquer medida em defesa da cor”.

Negar a existência de racismo no Brasil pode ser considerada uma forma de racismo, ou, mais especificamente, um preconceito racial de marca. Para o intelectual Oracy Nogueira esse conceito, ao contrário do preconceito de origem predominante nos Estados Unidos, depende do modo de atuação do indivíduo.

Se ele apresenta habilidades específicas, ou se este indivíduo mostra-se inteligente, ou mesmo perseverante, ele pode ter o tratamento discriminatório abrandado por essas particularidades apresentadas.

Assim, de contradição em contradição, a história do racismo no Brasil é revivida. O preconceito e a discriminação raciais não são meras sobrevivências do passado escravocrata.

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Contrariando Florestan Fernandes, adquiriram novas funções e significados na sociedade capitalista industrializada, dificultando o acesso dos negros a benefícios materiais e simbólicos por meio da sua desqualificação.

O próprio meio futebolístico não está isento de reproduzir antigos preconceitos. Os episódios de Tinga, Arouca, o juiz Márcio Chagas da Silva e Paulão mostram que é longínqua uma sociedade mais justa em termos raciais.

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No País do racismo movediço e escorregadio, para não dizer hipócrita, é imprescindível que nós, educadores, estejamos sempre atentos ao preconceito do dia a dia, para podermos trabalhar com os alunos, não o racismo dos outros, mas o nosso próprio.

Denaldo Alchorne de Souza, Carta Educação

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