Na ex-república Soviética, 'Pelé' joga xadrez e principal símbolo nacional fica no país vizinho. Autora conta por que não há nenhum país no mundo que possa sequer se parecer com a Armênia
Há pelo menos dez anos, assisti no Cine Doré de Madri ao filme “Sayat Nova” (“A cor da romã”, 1969) do armênio Sergei Parajanov. Esse filme custou ao diretor seu exílio na Sibéria, acusado de pornógrafo, homossexual e de violentar um membro do Partido Comunista. Devido à singularidade do filme, prefiro diretamente não recomendá-lo a ninguém. Porém, desde aquele dia despertou em mim uma certa curiosidade pela Armênia. Olhava fotos da capital Erevan no Google e ficava fascinado pelo monte Ararat. Não levei muito tempo para, anos depois, virar leitor assíduo do blog Caderno Armênio, de Virginia Mendoza. E quando saiu seu livro “Heridas del viento” (“Feridas do vento”, em tradução livre – sem edição no Brasil) sobre sua experiência nesse país, fiz questão de ler e agora entrevistá-la.
Nesta conversa, ela fala sobre as peculiaridades dessa nação, como: foram os armênios, e não os romanos, os primeiros cristãos da história; o maior ídolo do esporte não é um jogador de futebol, mas de xadrez; o país sobreviveu a um genocídio, um terremoto e diversas invasões territoriais e teve o seu maior símbolo – uma montanha – anexada pelo vizinho e inimigo histórico. Apesar de espanhola, Virgínia se diz um pouco armênia e conta porque não há nenhum país no mundo que possa sequer se parecer à Armênia:
No mapa mais antigo do mundo aparecia a Armênia…
O mapa mundi da Babilônia é essa pedra na qual aparece uma espécie de estrela, e é o mais antigo que já foi encontrado. Foi feito lá pelo século VI a.C., nele aparece a Armênia. Naquela época, ela era conhecida pelo reino Urartu, apesar de os persas já a nomearem Armina. No mesmo século em que se fez esse mapa, Urartu desapareceu e surgiram os Reinos Armênios. Então sim, embora seja difícil situá-la no mapa até nos interessarmos pela sua existência, a Armênia é um lugar muito antigo com uma capital, Erevan, de quase três mil anos de antiguidade.
Também é o primeiro reino cristão
Sim, a Armênia reconheceu o cristianismo bem antes que Roma, no ano 301. Lá chegaram dois apóstolos [São Bartolomeu e São Judas Tadeu], mas a Armênia, nesse momento, era pagã, e seus deuses eram réplicas dos deuses gregos, ou seja, aquilo não ficou muito bem.
Vários séculos depois, São Gregório, o Iluminador, continuava propagando ideias cristãs, e isso o levou a passar treze anos em uma masmorra no monastério de Khor Virap. Em 301, Terdat III, que havia prendido Gregório, acabou declarando o cristianismo como religião oficial, porém mudou de opinião por conta de um sonho que sua irmã teve. Contam que ele ficou louco e vagava pelos bosques como uma espécie de homem-javali. Sua irmã sonhou que Gregório o curaria e, supostamente, assim o fez. Em suma, isso valeu a Gregório não apenas o perdão, mas também o converteu no fundador de sua igreja e no primeiro Katolicos, que é como se chama o papa armênio.
E, além disso, é o reino onde foi encontrado o primeiro sapato!
Os armênios sempre querem ser os primeiros em tudo [risos]. Frequentemente têm razões para acreditar nisso, porém já se chegou a fazer piadas sobre eles. São capazes de dizer até que Deus é armênio. Eu cheguei a ler que há textos medievais de eruditos espanhóis e alemães que asseguravam que o primeiro povoador do que hoje é a Espanha era armênio. Apareceram em um livro de um linguista armênio que estudou a relação entre o euskera e o armênio. No lugar em que se encontrou esse sapato de cerca de 5.500 anos, pode ser que seja um tesouro para conhecer os primeiros passos do ser humano. Você pode dizer que sou armênia, mas é uma caverna que eu gosto de imaginar como uma espécie de útero da humanidade no qual foram encontrados vários objetos que, pelo menos até agora, são os mais antigos do mundo em sua categoria.
E para complicar um pouco mais, pode ser que também seja o primeiro bode, certo?
Bom, vamos lá. Foram encontrados vestígios e um bode junto ao sapato. Também foi encontrada nessa caverna a adega mais antiga do mundo e o que parecia ser os primeiros restos do cérebro humano, com mais de seis mil anos. Isso é o que se contou, porém o diretor das escavações me assegurou que não foi bem assim…
E o que é isso que você relata em seu livro que Deus é uma avelã?
[risos] Lusik Aguletsi é uma mulher que me atraiu por uma peculiaridade: não saía para a rua sem vestir o “taraz”, o traje tradicional armênio. Supus que aquela mulher teria alguma coisa para contar, então fui para sua casa. Aquilo era praticamente um museu, não apenas pelos objetos típicos armênios que ela foi colecionando, mas porque também é pintora e porque seu marido era escultor. Porém a verdadeira surpresa estava no sótão: havia entre cinquenta e sessenta deuses pagãos, além de Adão e Lilith, Satanás e seus filhos, que ela mesma havia feito com palha e tecido. Os deuses de Lusik são tão antigos que, se você perguntar a um armênio, é bem possível que ele não os conheça porque não são os equivalentes aos deuses gregos que lhes ensinaram no colégio, mas uns bem mais antigos, que respondem a fenômenos naturais.
O fato é que a senhora começou a esboçar o nome de Vitrúvio para me explicar que, se o centro de tudo está na altura do umbigo, a divindade pode estar no que comemos. Como o que ela tinha mais à mão era uma avelã — ela até colocava as frutas secas sobre uma travessa que tinha a forma do símbolo da eternidade armênia — ela explicou que uma avelã pode ser Deus.
Em Erevan, impõe-se a beleza do monte Ararat. Não é muito conhecido o fato de que a Arca de Noé encalhou lá…
Na verdade, é a única coisa que se sabe por aqui do Ararat. Tampouco há muito para saber o porquê, afinal de contas, para alguém que não é armênio e que mora a milhares de quilômetros não passa de mais de um monte. Porém, para os armênios, é muito mais do que isso: eles têm uma relação muito próxima com as montanhas e, concretamente, com o Ararat… Pela sua altitude, por sua proximidade, porque está na capital, por questões religiosas, mas também por questões políticas. Entre todas as coisas que os armênios perderam ao longo de sua história, o Ararat, por sua simbologia e porque eles o veem todos os dias, é possível que seja o que mais dói.
Agora está na Turquia porque lá ficou quando a Rússia e a Turquia ficaram com a Armênia e a dividiram depois da Primeira Guerra Mundial. Os armênios podem ver o Ararat, porém não podem se aproximar mais dele, nem subir por ele. Desde o monastério de Khor Virap, que é o melhor ponto para ver o Ararat, você vê de muito perto a fronteira turca e o monte. É um resumo doloroso de tudo o que perderam a favor da Turquia pouco depois que o Governo dos Jovens Turcos levou a cabo sua tentativa de exterminar todos os armênios. Suas terras lhes foram tiradas, arrebataram as vidas de suas famílias, ficaram com suas mulheres e, para o cúmulo de tudo, ficaram também com seu monte sagrado, e isso é algo que pode ser visto um século depois. Também é algo de grandes dimensões pelo qual quem viu de perto se apaixona.
Mandelstam explicou muito bem esse sentimento de sentir saudades do Ararat quando, ao voltar para a Armênia, falava de um sentimento “araratino” para se referir ao apego das montanhas que contagia a Armênia.
O futebol armênio é o xadrez
Apesar de Kaspárov ter ampliado essa ideia de que o xadrez está para a Armênia, como o futebol para a América Latina, agora o futebol também é muito importante para a Armênia, e o que mais interessa é a liga espanhola. Todos os armênios estão divididos em dois. E aí você encontra exemplos extremos como um de um nômade que vive isolado na montanha e pergunta a você como vai o Athletic de Bilbao ou lhe diz que Hércules acaba de subir. Ainda assim, o xadrez continua sendo essencial. Em qualquer esquina há pessoas jogando e, além de ser obrigatório nas escolas, os avós ensinam os netos, e as crianças vão para aulas de xadrez quando saem do colégio.
Os armênios ficaram obstinados pelo xadrez, principalmente, quando Tigran Petrosian se tornou campeão mundial. Naqueles dias, as pessoas viviam grudadas nas telas gigantes que colocaram em Erevan para acompanhar os movimentos de Petrosian. Na Armênia, há mais de trinta grandes mestres de xadrez, enquanto em outros países você pode contá-los com os dedos de uma das mãos. Veja como é importante, você vai encontrar um montão de homens, com menos de quarenta e tantos anos, que se chamam Tigran. Tal foi a obsessão pelo xadrez, por conta da vitória de Petrosian, que virou moda chamar as crianças com o seu nome. E olhe que o rei mais querido foi Tigran o Grande, que reinou na Armênia dos sete mares, quando era um enorme império com saída para os mares Cáspio, Negro e Mediterrâneo. Mas, principalmente, também colocam esse nome nas crianças por causa do enxadrista.
De fato, eu soube de um homem cujo sobrenome é Petrosian, e ele decidiu chamar seu filho de Tigran porque sonhava que ele se transformasse no próximo campeão mundial de xadrez. Entrevistei o jovem Tigran Petrosian há pouco tempo, e a história deste menino está repleta de curiosidades relacionadas com o xadrez e paralelos com a vida do verdadeiro Petrosian. De fato, ele continua o caminho com o qual seu pai sonhou e, embora não esteja ainda na altura de seu antecessor, por ora é um dos grandes mestres de xadrez na Armênia.
Qual é o crédito que merece essa história de que Churchill bebeu conhaque armênio ao longo de toda sua vida e, por conta disso, sua longevidade?
No dia da famosa foto em Yalta, Stalin tinha dado de presente uma garrafa do conhaque Dvin para Churchill. Aparentemente, o inglês levou o conhaque e alegou que era o melhor do mundo. Quando lhe perguntavam por sua longevidade, contam que ele a atribuía por beber uma garrafa do conhaque armênio todo dia, entre outros motivos. Churchill conhecia tão bem a marca Dvin, que um dia detectou uma mudança em seu sabor e ligou diretamente para Stalin para ver o que estava acontecendo. Ele não estava equivocado. Acontece que o responsável pela produção da bebida tinha acabado de ser mandado para o exílio na Sibéria. Então Stalin, para deixar Churchill contente, libertou o homem e o mandou de volta ao trabalho na produção da bebida.
No país, há os cristãos Molokans, que atingem a salvação bebendo leite e não aceitam a cruz por ser o lugar de tortura de seu deus…
Se eu contar tudo, não terminaria nunca [risos]. Sobre os Molokans há poucos registros e, quando são feitos, servem para exagerar e aumentar o preconceito. Eles tiveram de fugir da Rússia porque se recusaram a respeitar os jejuns e as imposições da igreja ortodoxa e foram perseguidos por se recusar a deixar de beber leite nas quartas-feiras. Daí o nome, que significa “bebedores de leite”.
Na Armênia, eu fui a seus povoados, Lermontovo e Fioletovo. E me avisaram que não iriam me receber. Às vezes nem seus vizinhos os conhecem de fato. Nós fomos para a casa de Pavel, um idoso Molokan cego, que detectou minha intenção de fotografar um cartão de Natal curioso, no qual seu bisneto pousava de Kaláschnikov [militar soviético e combatente da Segunda Guerra] em riste. Ele me avisou que se eu tirasse fotos, seu bisneto viria da Rússia para me matar. Em seguida, acabou nos convidando para almoçar e pedindo que tirássemos fotos. No final das contas, fomos para sua missa de Páscoa e tomamos café em mais algumas casas.
No final, suponho que se trata de estar lá sem ser invasivo, de esperar e demonstrar a forma mais natural que suas intenções são boas, que você quer conhecê-los, apenas isso.
Vamos combinar que nada ajuda tanto, para conseguir um relato, quando você deixa sua postura de jornalista diante dos protagonistas para que eles consigam enxergar você como uma pessoa curiosa e ponto final. Claro que a primeira coisa que sabiam a meu respeito é que eu era jornalista, mas eu nem sequer ligava o gravador, nem tirava câmera fotográfica até o final. Um simples bloco de notas sempre é mais cômodo para quem fala.
Sim, é verdade que eles se opõem às novas tecnologias, porém não é verdade que seja uma regra geral: em Fioletovo é proibido ter televisão, enquanto em Lermontovo simplesmente isso não é visto com bons olhos. Eles podem ter celulares e usar internet, mas isso é alguma coisa que os mais velhos não pensariam em adotar.
Em geral, eles não aceitam ícones. O fato de não adorar a cruz é de uma lógica avassaladora: eles se consideram os cristãos mais puros, daí sua obsessão com o branco e com o leite. Então, porque iriam venerar a cruz onde morreu seu salvador?
Parece que eles gostavam de Tolstói…
Parece que de fato [o escritor russo Leon] Tolstói era Molokan. Há várias cartas que revelam seu apoio. Ele foi a reuniões — eles não usam a palavra missa, mas reuniões — e até ajudou-os a fugir. Custa acreditar que ele tenha feito tudo isso sem que houvesse a mínima repercussão: ele defendia publicamente um grupo brutalmente perseguido. Também sabemos que ele era um dissidente da igreja ortodoxa, como eles. E ele exibia uma enorme barba branca, como eles. O que não é tão evidente é se bebia leite nas quartas-feiras… que é uma das características dos Molokans.
E as minorias yazidis e os zoroastrianos que também andam pela Armênia? O que se sabe sobre eles?
Isso dependerá de quem contar. Para um cristão ou um muçulmano, trata-se de uma seita satânica. Se você fala com eles, sua religião é como qualquer outra. Anton LaVey, o fundador da igreja de Satã, reforçou esta crença ao escrever sobre eles como uma religião que defendia a mesma coisa que a dele. Na verdade, isso não tem nada a ver. Ele também estava se baseando nesses preconceitos, porque o satanismo de LaVey se baseia no individualismo, em ser seu próprio deus e aceitar que em você há tanto o bem quanto o mal e que nenhum deus pode castigá-lo ou compensá-lo por fazer mais uso de um ou do outro. As crenças dos yazidis, no entanto, são uma mistura de zoroastrianismo, cristianismo, islamismo…, mas o que de fato os caracteriza é que eles rezam para um pavão real e para o sol.
O pavão real é Melek Taus, que não é nem mais nem menos que o anjo caído. Por isso, para o resto do mundo, eles são adoradores de Satanás, Lúcifer, ou como cada um os chama. Mas eles não cultuam o mal por mais que nos queiram fazer acreditar que é assim. Eles defendem o orgulho de Melek Taus porque consideram que tal foi seu amor a Deus, que se recusou a prestar homenagem ao homem que sofreu as consequências de um amor incondicional. Também há aí muito culto ao medo. Eles têm um deus criador que deixou o mundo desamparado quando terminou seu trabalho e encarregou os anjos para reger o mundo. A ideia é mais simples do que parece, muito menos complicada do que falar do culto ao mal e sacrifícios humanos: “para quê eu vou rezar para um deus que se encarregou de criar o mundo e que não faz mais nada, enquanto outro pode fazer o bem e o mal da mesma forma? Mais valerá a pena ser dessa forma, não é mesmo?” E o que eles não suportam é serem chamados de curdos.
Compartilham a mesma origem sim, mas se sentem traídos porque os curdos aceitaram o islamismo em detrimento das crenças que eles mantêm.
É curiosa a relação que eles estabelecem com os pregos da cruz de Cristo e a alface.
Bom, todas as religiões precisam de alguma história para justificar porque decidiram converter determinados alimentos em impuros. É a mesma coisa do que falar para as pessoas que o porco é um animal impuro porque se banha na lama e não dar explicações sobre a questão da pata fendida, ou os ruminantes, que é o que diz a Bíblia e na qual se baseiam muitas religiões para transformar o porco em um animal impuro; ou não explicar questões ecológicas. Bom, mas quem explica bem isso é Marvin Harris. No caso dos yazidis, além do porco, a alface também é impura. Embora a realidade pudesse ter mais a ver com as dificuldades e os custos para criar porcos em regiões áridas e o absurdo para cultivar, se você for nômade, a melhor forma é contar que um porco roubou os pregos da cruz de Cristo e os pregou em uma alface.
Você achou que os armênios não querem falar com estrangeiros sobre o genocídio?
Não é que não queiram. Claro que querem falar sobre isso e denunciam a impunidade da Turquia sempre que conseguem. Suponho que você ache que Arevaluys, Movses e Iskuhi [pessoas entrevistadas para o livro] se recusariam a falar comigo sobre o genocídio, pelo menos no começo, no caso dos dois últimos. A diferença em relação ao restante dos armênios que vivem hoje é substancial: estas pessoas sim viveram isso. Eram bebês sim, mas eu acredito que todos nos lembraríamos de imagens tão impactantes ou passaríamos mal falando de algo que é tão duro.
Foi isso o que aconteceu com eles. Movses e Iskuhi evitavam o assunto porque estavam um pouco cansados de todos os jornalistas que os procuravam sempre pelo mesmo motivo. Eu cheguei até eles porque procurava por sobreviventes, mas não precisava que eles me falassem sobre o genocídio se não quisessem. Então eu fiquei com eles falando de outras coisas: do cotidiano, da Armênia, trocamos receitas gastronômicas, tomamos café, vodca, o que nunca falta no Cáucaso… Passamos um dia inteiro com eles sem mencionar o genocídio e ficamos muito bem, eles gostaram tanto que nos garantiram que se voltássemos a visitá-los, eles nos contariam o que sabiam sobre o genocídio. Então voltamos um segundo dia e foi tão divertido até que eles mesmos tomaram a decisão de começar a contar…
Com Arevaluys foi diferente. Desde que soube como ela reagia quando ouvia falar do genocídio, não quis tocar o assunto na frente dela. Queria falar com sua família em outra sala, porém alguém teve a ideia de tocar no assunto na frente dela, e a mulher explodiu. É uma reação normal. Eu me senti muito incomodada, mas pelo menos nesse momento sua família no final entendeu que, de fato, era melhor que falássemos em outro lugar.
A ferida na memória persiste…
Isso é assim inclusive para os filhos, netos e bisnetos… É tão terrível porque o mundo continua em dívida com eles um século depois e porque quase cada família armênia perdeu alguém nesse genocídio. Muitos países alegam que não sabiam nada porque o mundo virou a cara, mas os estrangeiros que o viveram não deixaram de insistir na necessidade de ajudar os armênios e de denunciar o que estava acontecendo. Até uns monges franceses especialistas na produção de chocolates fizeram muito mais que os governos fossem informados. Aproveitaram uma estratégia de vendas muito na moda entre os fabricantes de chocolates: incluir ilustrações nos tabletes fabricados. Então, em vez de incluir ilustrações da flora e da fauna, optaram por incluir imagens dos massacres que estavam sendo cometidos contra os armênios no Império Otomano.
Fale das escravas sexuais tatuadas
É uma história horrível. O genocídio armênio começou com um “eliticídio”: em 24 de abril de 1915, por isso essa data passou a ser lembrada como o dia do genocídio armênio. No Império Otomano, os armênios com melhor situação social e econômica foram levados, e apenas oito sobreviveram. Por essa razão, enviaram os homens em idade de lutar para o Exército, mas eles não iam lutar: assim que eles chegavam, lhes tiravam as armas, e eles eram enviados para construir estradas e valas e eram mortos. As mulheres, os idosos e as crianças eram enviadas para morrer de fome e sede no deserto sírio. As meninas jovens tinham uma forma para se salvar, embora eu duvido de que isso pudesse ser chamado de salvamento: se elas ficavam, seja se casando ou sendo escravas sexuais dos turcos e dos curdos, elas podiam conseguir que seus filhos não fossem assassinados. Para ridicularizá-las, tatuavam seus rostos e suas mãos. Assim todo o mundo saberia quem eram e no que elas tinham se transformado. Era também uma forma de roubar-lhes sua identidade.
No momento que você afasta uma pessoa de seu grupo étnico e lhe tatua os seus símbolos ou sua bandeira na cara, está apagando sua identidade e dizendo-lhe: “Agora você me pertence”. Milhares de mulheres armênias foram tatuadas, e elas levaram o segredo para o túmulo por vergonha. Felizmente, uma cineasta armênia da Suécia que cresceu perguntando pelas tatuagens de sua avó decidiu pesquisar sobre o assunto e fazer um documentário em que finalmente se revelou a realidade dessas avós, cujas tatuagens seus netos não entendiam. Pensei que eu não encontraria na Armênia ninguém que pudesse me falar sobre essa questão porque, se pelos menos elas tivessem conseguido fugir, estas mulheres teriam permanecido e morrido na Turquia. Mas no dia que eu perguntei sobre isso, eu estava ao lado da bisneta de uma delas, uma menina que cresceu fazendo-se a mesma pergunta e nunca teve a resposta.
Havia mulheres que fingiam ser feias para que não fossem sequestradas. Dizer que é feia é uma forma de salvar sua vida.
Sim. As mais jovens e bonitas eram as que mais riscos corriam. Então algumas encontraram uma forma de se salvar cobrindo seu rosto com barro, mancando, mantendo um olho fechado… Qualquer forma de ser menos atraente diante de quem pudesse estuprá-las ou sequestrá-las para seu harém podia salvar a vida.
Anos mais tarde, você menciona um dos descendentes dos assassinados no genocídio, os Hamalyan, que foram detidos por ter uma máquina de fabricar chapéus. Por quê?
Naquele momento, a Armênia pertencia à URSS, ou seja, ter uma máquina na sua casa para fabricar chapéus ou qualquer coisa que fosse era algo impensável.
É verdade que os armênios nunca passaram por guerras civis?
Se há algo do qual se orgulham os armênios, além de serem os primeiros em muitas coisas, é de não terem se matado entre eles. É simples: eles estão há milhares de anos muito ocupados defendendo-se dos vizinhos. Quando as invasões se transformam em uma constante, como é o caso deles, as pessoas são mais unidas, e imagino que tampouco tenham tempo ou forças para guerras civis. Se não estivessem unidos, o país já não existiria mais. Por esse motivo, a granada é seu símbolo nacional: representa a união.
Qual é a lembrança do povo armênio de sua participação na Segunda Guerra Mundial?
Creio que isso é o assunto que menos falamos. No livro, coloquei as cartas que um soldado enviou da Alemanha. Um exemplo muito ilustrativo da importância do Dia da Vitória para os armênios é de um homem de 76 anos que foi neste ano andando da Alemanha até a Rússia para comemorar. O Dia da Vitória pode ser celebrado na Armênia com mais fervor do que em outras repúblicas ex-soviéticas: para eles significou uma dupla vitória e, além disso, coincide com uma celebração religiosa. Então os veteranos vão para as ruas em dobro pelo peso de suas medalhas. Nesse dia até os caixas de supermercados têm algum toque militar.
O único depoimento direto sobre a Segunda Guerra Mundial que aparece em “Heridas del viento”, além das cartas, é o de Meruzhan, o senhor que comemora o aniversário de Jachaturian em sua casa. Ele era da Crimeia, apesar de armênio. Foi preso duas vezes: primeiro pelos alemães e em seguida pelos soviéticos. Contava que na Alemanha foi preso com muitos outros armênios da Crimeia, e quando Stalin soube, acreditou que estavam lutando contra ele, acusou-os de traição à pátria e os impediu de voltar. Não quero colocar em xeque sua versão, mas não vejo muito claro o que aconteceu nem qual foi a verdadeira confusão, porque o certo é que muitos armênios enfrentaram o comunismo lutando no exército alemão.
Você percorreu [o autoproclamado Estado de] Nagorno-Karabajav, o enclave armênio no Azerbaijão, onde há um conflito latente…
Em Nagorno-Karabajav, apenas é possível estar em Stepanakert e em Shushi. O que vi foi uma capital [Stepanakert] completamente nova e semideserta, como se tivesse construída do nada e repleta de locais vazios para serem inaugurados. Porém bastava ir até Shushi para ver as marcas da guerra. É como se ninguém tivesse se importado em reconstruir durante um quarto de século, como se não quisessem esquecê-lo. Me fez lembrar Sarajevo, há pelo menos quatro anos, embora ainda em piores condições.
Em Nagorno-Karabajav, é bastante comum esperar que os armênios da diáspora voltem para enriquecer o país e convertê-lo em um grande país. Porém, tentam enriquecê-lo de fora: a infraestrutura é principalmente financiada por gente rica da diáspora. Como um método para repovoar, um armênio da diáspora também pagou por casamentos em massa para que cerca de setecentos casais se casassem e começassem a ter filhos. Agora estão “recheando” o país e acolhendo refugiados sírios.
Houve uma declaração de cessar fogo em 1994, porém nunca se chegou a firmar um acordo de paz. Então quase diariamente morrem soldados na fronteira, normalmente por causa de combates de pouca importância. Veja bem, se eles se acostumaram a viver assim. Estive em uma aldeia armênia junto à fronteira Azeri e dormi escutando disparos sem entender por que a senhora que me hospedava dizia estar tão farta de escutar os pássaros, que não se calavam nem de noite e não a deixavam dormir.
Você diz que no início, eles se lançaram para a guerra sem nem saber empunhar armas, com armas que haviam feito em suas casas
Os armênios que foram para o conflito armado de Nagorno-Karabaj [1988-1994], eram voluntários, a maioria deles muito jovens. A Armênia acabava de ficar independente da União Soviética e, digamos, não tinha um Exército. Nagorno já tinha declarado sua independência a Azerbaijão. Um veterano me disse uma coisa que é preciso esclarecer: “alguém disse que havia explodido um conflito entre a Armênia e o Azerbaijão, e não é verdade. A guerra foi entre o Azerbaijão e Nagorno-Karabaj. Nós só fomos para lá como voluntários para ajudar os armênios de Nagorno-Karabaj”. Então as pessoas recolheram o que tinham em mãos e começaram a construir suas próprias armas, entre outras coisas, porque a Rússia estava vindo e sabia que estavam desarmados. A maioria dos combatentes armênios eram fedayeen [milícia armênia] que na verdade tinham surgido no Império Otomano e que lá renasceram.
Nos anos 1980, o país foi atingido por um terremoto cujas sequelas ainda persistem.
O principal e o mais preocupante é a existência dos “domiks”. Eram os abrigos temporários onde foram alojados meio milhão de armênios que ficaram sem suas casas após o terremoto. Aquilo foi tão horrível que até dizem que a Guerra Fria acabou com o terremoto da Armênia, porque Gorbachov não teve outro remédio a não ser pedir ajuda aos Estados Unidos. Gorbachov prometeu casas de verdade, porém a Armênia ficou independente, a URSS faliu, e os armênios que fugiam do Azerbaijão durante a guerra se transformaram em uma prioridade. Os governos posteriores insistiram em dar casas de verdade a essas pessoas, porém é uma tristeza que ainda morem milhares de pessoas nesse lugar. Você pode morar em um local desses durante alguns dias ou alguns meses, mas não durante mais de um quarto de século.
O espaço reduzido é o de menos: o frio, o calor, os ratos e as serpentes penetram nesses containers, e as pessoas ficam doentes. Além disso, virou um costume ir para a Rússia para buscar trabalho para ajudar a família a sobreviver, porém a verdade é que muitos desses homens nunca voltam a esses distritos de “domiks” e deixam suas mulheres e filhos abandonados nos “domiks”. Não serei eu que vou julgá-los por isso: eu teria de me ver na mesma situação. É desesperador.
Não parece que haja uma grande lembrança da URSS se 99% votaram pela independência.
Os idosos, como costuma acontecer, sim têm uma boa lembrança. Vivem com essa ideia de que o passado era melhor. Inclusive se seu pai foi exilado na Sibéria, qualquer idoso pode falar para você dos benefícios da URSS, apenas porque todos tinham casa e trabalho. A verdade é que tudo o que aconteceu depois torna bom o anterior: o terremoto, a guerra, o fechamento das fronteiras por parte do Azerbaijão e da Turquia fizeram com que eles ficassem vários meses com uma hora por dia de energia elétrica com muita sorte. Além disso, aconteceu em pleno inverno. Para sobreviver ao frio, muitas famílias se viram obrigadas a queimar seus móveis, livros, sapatos, até a madeira do chão. Não havia gás, então nas ruas se formavam enormes filas para caminhar pelo buraco que alguém já tinha cavado na neve, porque todos tinham que andar. Na Armênia havia apenas uma obsoleta usina nuclear que a URSS já tinha encerrado as atividades por causa do perigo.
No entanto os jovens sim são muito mais críticos. Não viveram isso, porém continuam vendo como Rússia, que para muitos ainda representa a URSS, desempenhando um papel falso com eles, colocando bases militares junto à fronteira para evitar uma eventual invasão que sabem que não vai acontecer e vendendo armas ao Azerbaijão ao mesmo tempo, que é um dos países que mais orçamento destinam a armamentos por ano.
Fale de Sasun, que mostrou a você a foto da primeira mulher soldado armênia
Sasun Papik… Ele foi um dos fedayeen que eu comentei com você. Sempre está nas ruas, com seu uniforme militar e sua bandeira armênia estampada na camiseta, no boné, no cachecol… esperando que algo aconteça. Você sempre o verá em primeiro lugar em todas as fotos que você encontrar de manifestações em que os armênios começaram a reivindicar a independência da URSS. Sasun também foi como voluntário para Nagorno-Karabaj e ainda não voltou para casa e nem fez a barba. E digo que não raspou a barba porque isso é muito importante para o fedayeen e para o revolucionário em geral: essa forma de mostrar que não tem tempo para fazer a barba porque está entregue a uma causa maior. Sasun tem muita certeza de não ter dormido com sua mulher desde que a guerra eclodiu. Diz que prometeu a ela que não voltaria para casa até que seu país fosse realmente livre e que não pode quebrar essa promessa. Pareceu-me uma forma muito peculiar de sair de casa para comprar um cigarro e não voltar mais.
Sobre essa sua declaração: “a Armênia é o primeiro lugar onde cheguei para encontrar em algo tão prejudicial quanto uma bandeira, uma utilidade: por menor que seja, é o que os mantém nos mapas”…
Se os armênios não fossem nacionalistas, se não se mantivessem unidos, seu país provavelmente não existiria mais. Não é apenas o que ficou com a Turquia no século XX. Ao longo de toda a sua história, e olhe que ela é extensa, eles sempre sofreram invasões, e seus vizinhos pegaram suas terras. Olhe um mapa. Você percebe que coisa pequenina é a Armênia hoje? Pois ela chegou a ser um império com saída para três mares. Eu sempre desconfiei das bandeiras. Não posso defender algo que originalmente servia para saber quem você tinha de matar. Da mesma forma que nunca entendi o patriotismo nem as fronteiras. Talvez seja porque nunca me afetou diretamente. Quero dizer, que me parecia muito absurdo ter de demonstrar que sou espanhola, a não ser que esteja fora da Espanha. Não tenho a necessidade de lembrar a alguém de Madri que sou espanhola porque é como se lhe lembrasse que sou bípede e que tenho dois olhos. Eu lhe direi, em todo caso, que sou manchega [região de la Mancha], se é que isso vier a acontecer. Na Armênia, faz sentido eu dizer que sou espanhola, mais isso não é patriotismo, mas sim realismo. O fato é que na Armênia, eu quis entender tudo, até o patriotismo.
Você não pode contar a história de um país sem tentar entendê-lo sem preconceitos. Você tem que mergulhar nele com os olhos de uma criança, chegar a ser parte dele e, caso seja necessário, buscar a explicação do que sempre lhe pareceu inexplicável. Agora mesmo não sei se estou falando como jornalista ou como antropóloga porque tampouco tenho uma fronteira muito definida desse significado, porém me parece igualmente válido em ambas as profissões. As pessoas pensam que eu brinco quando digo que sou um pouco armênia, porém, embora eu diga isso dando risada, eu falo muito seriamente.
Álvaro Corazón Rural, Jot Down
Acompanhe Pragmatismo Político no Twitter e no Facebook