A loucura que nos habita: projeto transforma ala de hospital psiquiátrico em 'hotel' para abrigar iniciativas ligadas à luta antimanicomial e à cura por meio da arte
João Correia Filho, RBA
Nesse hotel não há estrelas. Também não é necessário preencher fichas, fazer check-in ou check-out. A viagem de quem se hospeda aqui é interior, pois se trata de um hotel instalado dentro de um tradicional hospital psiquiátrico no bairro de Engenho Novo, na região norte do Rio de Janeiro, bem longe das belas praias cariocas, lotadas de turistas. Em vez de turistas, o Hotel da Loucura, como foi batizado, abriga médicos, artistas, arte-educadores, gestores, pesquisadores, jornalistas e profissionais da área de saúde que queiram entender um pouco mais sobre a loucura e, claro, sobre sua cura.
A ideia de ocupar e transformar em hotel o terceiro andar de um dos edifícios do Instituto Nise da Silveira, antigo Centro Psiquiátrico Pedro II, é do médico e ator Vitor Pordeus, coordenador do Núcleo de Cultura, Ciência e Saúde da Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro. Com 32 anos, formado em Medicina pela Universidade Federal Fluminense (UFF), ele reuniu uma equipe para transformar o espaço então desativado em um local para a realização de oficinas, palestras, espetáculos, reuniões e para a convivência entre visitantes e pacientes do hospital, que também podem frequentar as atividades.
“Conviver é a palavra-chave para isso que chamam de cura da loucura. Ninguém adoece sozinho e ninguém se cura sozinho. As doenças são, antes de tudo, doenças sociais. De nada vale excluir para tratar, que é o que ainda vem sendo feito no Brasil. A ideia, mais uma vez, é quebrar essa lógica”, afirma Pordeus.
Ele acrescenta que é preciso recuperar o papel comunitário e político dos médicos, segundo ele, totalmente esvaziado com a mercantilização da saúde. “A medicina se tornou uma máquina de vender remédio. Criam doenças pra vender remédio, cotados pela indústria farmacêutica. Esqueceram que essa é uma luta política, uma luta de consciência, um luta de disputa por recursos públicos, de disputa com a própria medicina, com o biopoder”, acrescenta.
Ateliê e biblioteca
A primeira vez que o Hotel da Loucura recebeu hóspedes foi em julho de 2012, como sede do 2º Congresso da Universidade Popular de Arte e Ciência (Upac), evento realizado no Rio que reuniu dezenas de pessoas com o propósito comum de discutir a relação entre saúde, cultura e arte popular. Foram as primeiras atividades de muitas que marcaram a transformação do local. Para receber os participantes, paredes descascadas e cinzentas ganharam cores fortes, janelas receberam cortinas com desenhos de flores, corredores foram decorados com frases de filósofos, músicos e poetas. Ou apenas rabiscos que muito ou nada querem dizer.
Além dos nove quartos, que ganharam beliches e colchões, foram criados outros ambientes: o hall de entrada passou a ser local de reuniões, de exibição de filmes, de convivência diária; a cozinha voltou a funcionar (aberta a todos os hóspedes); há uma sala de meditação, quase vazia; uma de jantar, com mesas cobertas por tecidos de chita; um ateliê; e uma biblioteca, batizada de Baruch Spinoza, em homenagem ao filósofo holandês do século 17.
Desde sua inauguração, o Hotel da Loucura tem atraído muitos hóspedes do instituto, que frequentam diariamente suas atividades. Atualmente, o Nise da Silveira possui cerca de 200 pacientes, mas já chegou a ter mais de 1.500, nos tempos “áureos” da internação psiquiátrica. Estão concentrados nas enfermarias, que ocupam os prédios principais, e divididos em residências que abrigam cerca de 20 pessoas cada uma. Algumas são fechadas por grades, por serem consideradas perigosas pela psiquiatria.
Grande parte dos frequentadores do Hotel da Loucura não são internos, mas provenientes dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), unidades de acompanhamento e tratamento clínico implantadas na década de 1990 como uma forma de substituir os hospitais psiquiátricos.
Imagens do inconsciente
Uma das grandes referências do trabalho de Vitor Pordeus insere-se na própria história do local onde está instalado o Hotel da Loucura. Foi nesse mesmo hospital que, entre as décadas de 1940 e 1950, a médica Nise da Silveira começou a revolucionar a psiquiatria no Brasil. Criou ateliês de pintura e escultura, valendo-se da expressão simbólica e da criatividade como meios de tratamento de seus pacientes, em oposição clara aos vigentes na época, como o confinamento, os eletrochoques e a lobotomia.
Criou o também o Museu de Imagens do Inconsciente, inaugurado em 1952 dentro do próprio instituto que hoje leva seu nome. Reúne mais de 300 mil obras (a maioria pinturas) feitas por pacientes, que serviram como base para estudos e tratamentos de esquizofrenia e outras doenças psiquiátricas. Desse modo, o legado de Nise abriu caminho para a arte como forma de cura e para o amadurecimento do que viria a ser chamado de Movimento (ou Luta) Antimanicomial, iniciado nos anos de 1980 e responsável pela aprovação de leis que regulamentaram novos meios de tratamento e provocaram mudanças na compreensão da loucura e de sua representação na sociedade.
No caso das atividades do Hotel da Loucura, uma das grandes ferramentas tem sido o teatro, embora Vitor Pordeus faça questão de deixar claro que se trata de um teatro participativo, com viés épico e popular. “Não queremos fazer o teatro de palco, elitesco, calcado na celebridade, no ego, mas sim o teatro no qual cada artista participa de tudo, onde não há diretores nem estrelas”, ressalta o médico ator.
Baseado nessa premissa, o hotel oferece uma programação intensa: as oficinas e atividades teatrais são realizadas às terças e quintas-feiras. Um grupo de estudos se reúne às sextas. Às quartas é realizado um cortejo pelas ruas do bairro, quando os pacientes deixam os muros do instituto e caminham nas proximidades de uma feira livre que funciona a poucas quadras dali. Além disso, criam peças de teatro (com a participação de atores e pacientes), músicas, performances e intervenções dentro do instituto.
Durante o Carnaval deste ano, participaram de um concurso de sambas-enredo promovido pelo Bloco Loucura Suburbana, iniciativa que faz parte de um projeto de inclusão social de pacientes psiquiátricos. Embora não tenham sido vencedores, desfilaram pelas ruas do Engenho Novo e juntaram-se à loucura da festa, misturando-se à multidão.
À sombra de Dio-Nise
Para Vitor Pordeus, resultados clínicos dessas atividades podem ser percebidos em muitos dos pacientes que frequentam o Hotel da Loucura. É o caso de Maria Rita da Silva, de 47 anos e com histórico de internações e tratamentos com eletrochoque (eletroconvulsoterapia), técnica bastante controversa criada por volta de 1930 e usada com restrição nos dias de hoje. “Eu me sinto bem aqui, me sinto viva, sou respeitada pelos meus amigos, sinto que melhoro a cada dia. Acho que eu fico mais serena, pois dançar e cantar faz bem”, diz a paciente, que teve seus medicamentos reduzidos e apresenta um quadro bem mais estável.
Manuel Muniz de Castro, de 53 anos, frequentador assíduo das atividades do hotel, é um dos declamadores de poesia da turma. Escreve e recita, além de ser o responsável pela biblioteca Baruch Spinoza. Já passou por muitas internações e diz que conhecer o trabalho do hotel foi como “ter o meu Maio de 1968”, numa referência às manifestações populares ocorridas naquele ano na França, e em vários pontos do planeta, que propagaram uma série de mudanças culturais e sociais. Entre os livros de poemas de que mais gosta está Uma Faca Só Lâmina, do pernambucano João Cabral de Melo Neto.
O Hotel da Loucura costuma receber também Milton Freire, dono de uma vasta ficha manicomial que inclui dezenas de eletrochoques e choques insulínicos, outro tratamento controverso também em desuso por seus riscos ao paciente. A partir da década de 1980, Milton tornou-se militante do Movimento Antimanicomial e foi autor do primeiro manifesto sobre a condição dos internos, escrito em 1977 e publicado em carta pelo Jornal do Brasil.
Autor de vários livros, ele conta que se curou da esquizofrenia, na década de 1990, graças à escrita. “Eu descobri que a arte de escrever podia ser minha salvação. A escrita me ajudou a organizar os pensamentos, a retomar minha vida. Escrevia, escrevia, escrevia. Redescobri o poder da palavra e fui me reconstruindo.” Hoje, totalmente curado, Milton é frequentador assíduo das atividades do Hotel da Loucura e uma das vozes mais requisitadas nas reuniões e eventos ligados à saúde mental.
Como tem sido regra no instituto, durante as apresentações todos são iguais, não há loucos nem sãos, não há pacientes nem doutores, todos são artistas. Embora o Hotel da Loucura não tenha estrelas.
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