El Chapo e o fracasso da guerra às drogas no México
Depois de 13 anos de guerra às drogas anunciada pelo governo, produz-se no México mais maconha, mais heroína e mais metanfetamina do que em toda a sua história. Neste contexto, a jornalista Anabel Hernández, especializada em narcotráfico, revela como funciona o Cartel de Sinaloa e explica por que a prisão de El Chapo não significa “absolutamente nada”
Anna Beatriz Anjos, Agência Pública
Mal havia começado, 2016 já ficou marcado como o ano em que Joaquín Archivaldo Guzmán Loera, mais conhecido como El Chapo, foi preso pela terceira vez por autoridades mexicanas. Era 8 de janeiro quando, em tom de vitória, o presidente Enrique Peña Nieto anunciou sua captura, após operação na cidade de Los Mochis. A euforia é compreensível: seis meses antes, o narcotraficante, considerado o mais poderoso do país e um dos líderes do Cartel de Sinaloa, havia fugido de um presídio de segurança máxima por meio de um túnel de 1.500 metros, humilhando o governo e suas estratégias de combate às drogas e aos cartéis.
Três meses antes da prisão, o ator e diretor norte-americano Sean Penn havia encontrado Loera e o entrevistado para a revista Rolling Stone depois de ao menos um mês de planejamento e negociação. A intermediária do processo foi a atriz Kate del Castillo, que desde agosto de 2014 troca cartas e mensagens de texto com El Chapo. O resultado da empreitada repercutiu largamente no México e nos Estados Unidos e suscitou discussões sobre sua finalidade social.
A jornalista mexicana Anabel Hernández, de 44 anos, e que há 15 investiga o narcotráfico em seu país, descreve o produto do trabalho de Sean Penn como a “crônica de uma aventura” com Loera. “Para as pessoas que vivem no México e todos os dias são vítimas do cartel, para os jornalistas que desempenham um trabalho de investigação de anos, as informações trazidas por Sean Penn não representam nenhuma novidade – são, na verdade, bastante superficiais”, destaca. Para ela, o cerne da questão do Cartel de Sinaloa – e de todos os outros – não foi pautado pelo ator em seu artigo: a rede de corrupção que protege os traficantes e viabiliza seu negócio. “Evidentemente, Sean Penn não conhece a fundo o tema do qual trata sua crônica”, critica.
Autora do livro Los Señores del Narco (2010), uma investigação sobre os laços entre agentes estatais – de policiais a políticos – e empresários e o crime organizado no México, Hernández relembra as ameaças de que foi vítima após a publicação da obra e que motivaram sua mudança para a Califórnia, onde vive desde 2014. Confira:
Em entrevista recente, você afirmou que o governo de Enrique Peña Nieto nunca teve o real interesse de prender El Chapo. Por quê?
El Chapo esteve preso durante muitos anos e o Cartel de Sinaloa permaneceu intacto no México. Por isso, gente como Joaquín Guzmán Loera ou Ismael Zambada, os dois líderes do Cartel de Sinaloa, conservaram tanto poder. Quando o governo de Enrique Peña Nieto recapturou Joaquín Guzmán Loera em fevereiro de 2014, fez com que a sociedade mexicana e o mundo acreditassem que o Cartel de Sinaloa havia acabado, que El Chapo Guzmán estava completamente neutralizado, que era seu fim. O que não disse à sociedade mexicana nem ao mundo é que, enquanto El Chapo esteve na prisão de segurança máxima El Altiplano, pôde fazer o que queria; a cadeia se converteu em um segundo escritório do Cartel de Sinaloa. O governo de Enrique Peña Nieto, até seu mais alto nível, sabia dessa informação, tinha essa informação, e, no entanto, nada fez para realmente combater El Chapo. Quando o traficante esteve preso pela primeira vez nesse governo, Peña Nieto não desmantelou a rede criminosa – de proteção política, policial e militar – de que desfruta El Chapo; tampouco confiscou propriedades, contas bancárias, empresas. Eu fiz solicitações de informação ao governo do México por meio da Lei de Transparência, pedindo todas essas informações; também as solicitei à Secretaria da Fazenda e nunca tive nenhuma resposta. Nunca foi de fato desmantelada sua estrutura econômica [do Cartel de Sinaloa], por isso El Chapo conseguiu escapar da prisão de segurança máxima em julho de 2015. Entre aquela data e agora, nada mudou, inclusive agora, que El Chapo está no cárcere supostamente submetido às autoridades, a estrutura criminal do Cartel de Sinaloa segue intacta, pois é muito maior que El Chapo. O governo de Enrique Peña Nieto não combate essa corrupção que protege El Chapo e o cartel; não importa onde o narcotraficante esteja, no México ou nos Estados Unidos, seguirá conservando seu poder, e o cartel seguirá traficando.
Como funciona o Cartel de Sinaloa e qual o seu futuro a partir de agora, com El Chapo teoricamente sob poder do Estado mexicano?
O Cartel de Sinaloa tem dois líderes. Um é Joaquín Guzmán Loera e o outro é Ismael El Mayo Zambada. Quando, em fevereiro de 2014, El Chapo foi recapturado e encarcerado, El Mayo Zambada assumiu o controle geral do cartel, e havia gente muito próxima de El Chapo que vigiava seus negócios dentro da organização – Dámaso López Núñez é seu verdadeiro operador nesse sentido. Agora que ele está preso novamente, será Dámaso López Núñez quem operará seus negócios dentro do cartel. Nele, há duas grandes ramificações: a de El Chapo e a de El Mayo Zambada. Os dois o integram, mas cada um tem seus próprios homens de confiança, sua própria estrutura criminal, e compartilham o negócio. Às vezes, traficam a droga no mesmo barco, caminhão ou avião, e às vezes não. Juntos, eles e outros traficantes compõem o Cartel de Sinaloa. Agora que El Chapo está preso, quem zelará por seus interesses é Dámaso López Núñez, homem de sua confiança, que conhece absolutamente toda a rede criminal do negócio. Dámaso López Núñez foi, por muitos anos, policial no México; conheceu El Chapo na cadeia de Puente Grande, em Jalisco, e, como funcionário do presídio, ajudou Loera a corromper toda a penitenciária e, depois, a escapar. Este homem é uma figura muito importante dentro do cartel.
O que a prisão de El Chapo significa para a guerra às drogas levada a cabo pelo governo mexicano? Simboliza uma vitória?
Não, absolutamente não. Temos que analisá-la em um contexto muito mais amplo que El Chapo. Supostamente, quem iniciou a guerra às drogas no México foi o ex-presidente Felipe Calderón, em dezembro de 2003. Já são quase 13 anos de guerra contra o narcotráfico no México. Muitos narcotraficantes foram assassinados ou estão presos, alguns foram extraditados para os Estados Unidos. Mas nada disso fez com que diminuísse a produção de drogas no México. Depois de 13 anos, produz-se no país mais maconha, mais heroína e mais metanfetamina do que em toda a sua história. Os índices de produção estão mais altos do que nunca, assim como os de tráfico e violência – segue morrendo gente todos os dias. Essa guerra nunca significou uma diminuição de poder dos cartéis e da possibilidade de negociação das drogas, porque não importa que El Chapo, El Mayo Zambada ou qualquer outro traficante estejam presos se a estrutura criminal segue intocada nas ruas, nos bairros, nas empresas. Esse é o ponto fundamental. Por isso, a captura de El Chapo não significa nada; para que significasse, teriam que acontecer muitas coisas que o governo do México já rejeitou. Quando decide pela extradição de El Chapo para os Estados Unidos, o que está fazendo em relação ao problema? Deixando incólumes as redes criminosas. E isso é muito perigoso, porque, se vai para os Estados Unidos, El Chapo deixa no país seus negócios, amigos, policiais, militares, governadores, todos que o protegem, e estes mantêm a rede criminosa.
Acredita que, com a prisão de El Chapo, o governo mexicano quer passar uma mensagem à população? Se sim, qual seria esse recado?
Penso que falta descobrirmos ainda muitas coisas sobre como ocorreu essa prisão. Há muitas dúvidas e lacunas. Parece-me que estamos diante de uma situação de propaganda política. O presidente enviou a mensagem de que o fato significa uma vitória, mas não é uma vitória – de novo, ele engana a sociedade, fingindo que há realmente justiça e lei no México, quando agiu exatamente no sentido oposto, enviando o criminoso ao governo norte-americano. Não vejo de fato outra mensagem clara a não ser a da impunidade, a mensagem de que “mandamos os criminosos aos Estados Unidos e ficamos aqui com o negócio”.
Em outra entrevista no início deste ano, você defendeu que El Chapo é um homem bastante primitivo e incapaz de “articular grandes ideias”. Como ele conseguiu alçar o Cartel de Sinaloa ao status de maior do México?
Essa é realmente a história importante por trás de tudo isso – e o que os governos do México e Estados Unidos, e de qualquer outro lugar do mundo, não querem abordar. El Chapo é um homem que apenas sabe ler e escrever. As pessoas que assistiram ao vídeo em que ele tenta responder às perguntas de Sean Penn e da atriz Kate del Castillo podem constatar como é: um homem que não formula grandes ideias, que não tem grandes planos na vida, cujo único negócio e solução é produzir milhões de dólares em drogas. O que confere poder a El Chapo e ao Cartel de Sinaloa é a fortuna que têm no México e no mundo, são as redes de corrupção que lhes permitem penetrar qualquer fronteira – do Brasil, Argentina, Chile, Equador, Uruguai, Bolívia, Colômbia – para transportar a droga, lavar dinheiro, estabelecer empresas ilícitas ou legais – porque o cartel tem muitas empresas legais mundo afora. Com milhões de dólares, um personagem tão primitivo quanto El Chapo pode comprar pessoas que pensam por ele, que realmente planejam o tráfico de acordo com as melhores rotas ou meios de transporte, que sugerem “por que não construímos um túnel [para fugir da prisão]?”. El Chapo demoraria toda a sua vida para desenhar um túnel como o que utilizou para escapar, não tem a capacidade mental e profissional para fazê-lo. Há muita gente que vive na legalidade – banqueiros, empresários, engenheiros, advogados, deputados, senadores, governadores, presidente da República – que trabalham para o cartel e criam as ideias que El Chapo, por si mesmo, não pode ter.
Qual a relação entre o narcotráfico no México e a corrupção de agentes do Estado?
O poder e status de El Chapo no México simbolizam a grande corrupção existente no México, são sua face mais nítida. O México é tão corrupto que até um camponês que apenas sabe ler e escrever pode se transformar no traficante mais poderoso do país. E a economia mundial é igualmente tão corrupta que também tem protegido esse homem e o ajudado a ser o traficante mais poderoso do mundo, segundo muita gente.
Em sua análise, a descriminalização e regulamentação do uso de drogas é uma das soluções para enfraquecer o narcotráfico no México e no mundo?
Eu, na verdade, penso que isso não seria o fim dos cartéis. Essas organizações não se limitam ao tráfico de drogas, dedicam-se também ao tráfico de pessoas, à pornografia infantil, à pirataria, a uma gama de negócios criminosos. Se o tráfico cessa, não significa que os cartéis desaparecerão. Além disso, o cartel tem mostrado a capacidade de reinventar seu negócio. Por exemplo: quando, no Colorado, se começou a legalizar a produção, comercialização, distribuição e consumo de maconha, o Cartel de Sinaloa foi capaz de criar pílulas sintéticas que geram o mesmo efeito que a maconha, mas custam muito menos que a droga legalizada – nos Estados Unidos, ela ainda é muito cara. O preço da oferta e a demanda serão um tema que continuará pautando o negócio. A legalização poderia ser um passo importante para combater os cartéis, mas o primeiro combate teria que ser à corrupção, que protege os traficantes, e à lavagem de dinheiro, além da destruição de contas bancárias das pessoas envolvidas no negócio. Depois, viria a legalização, mas primeiro havendo também campanhas massivas contra o consumo de droga. No México, e em muitos países da América Latina, não podem simplesmente implementar a legalização. Isso seria um desastre humanitário e social. Os governos não devem fazer isso. Não podem condenar gerações de pessoas a isso. É preciso ter um plano. É muito triste, mas, quando se fala de legalização, parece que querem proteger o negócio das drogas e condenar a sociedade a um grande consumo, em vez de destruir o negócio ilegal.
Como analisa a entrevista de Sean Penn a El Chapo e a reação que causou nas pessoas e autoridades?
Não está claro com que propósito Sean Penn tentou fazer essa crônica. Ele tentou explicar publicamente, mas me parece que suas explicações são bastante ambíguas. Ele tem o direito de escrever o que quer e de se reunir com quem deseja, mas eu definitivamente não chamaria isso de entrevista. O que ele publicou é uma crônica de sua aventura com El Chapo, essa é a minha impressão. O escândalo que o fato suscitou me parece totalmente desproporcional. É muito grave que os meios de comunicação, sobretudo no México, estejam mais preocupados com o encontro entre Sean Penn, Kate del Castillo e El Chapo do que com os militares e governadores que protegem o narcotraficante. Porque não são Sean Penn e Kate del Castillo que protegem El Chapo, o ajudam a escapar da cadeia e se esconder do governo. É evidente que a reação foi inflada por diferentes meios. E o substantivo dessa história não é a crônica escrita por Sean Penn, mas sim a rede de proteção que está por trás de El Chapo, todos os crimes que cometeu com a cumplicidade de muitos funcionários públicos – não só no México, em várias partes do mundo. Evidentemente, Sean Penn não conhece a fundo o tema do qual trata sua crônica. Eu, como leitora e conhecedora do tema do Cartel de Sinaloa e da guerra às drogas, tenho a impressão de que Penn não comunicou o que queria, nada do que escreveu é novo. O texto não acrescenta nada ao debate sobre as drogas, não desnuda o poder de El Chapo nem o que está por trás dele.
Muitos jornalistas têm dito que a entrevista não serve ao interesse público, mas apenas para divulgar e mitificar ainda mais a figura do narcotraficante. Além disso, afirmam que Sean Penn esteve a todo o momento nas mãos de El Chapo, já que as respostas foram gravadas e que o entrevistado escolheu as questões a que queria responder. Qual é sua opinião sobre isso?
A crônica sobre a aventura [de Sean Penn com El Chapo] não traz nada novo. Para as pessoas que vivem no México e todos os dias são vítimas do cartel, para os jornalistas que desempenham um trabalho de investigação de anos, as informações trazidas por Sean Penn não representam nenhuma novidade – são na verdade bastante superficiais. O erro maior do artigo é sua superficialidade, não aprofunda nada.
Qual é a condição dos jornalistas que, como você, investigam os cartéis e o narcotráfico no México? Você já foi ameaçada de morte – poderia contar um pouco mais sobre essa situação?
No México, há centenas de jornalistas que têm feito um trabalho exemplar, que arriscam a vida para investigar as cumplicidades dos governos com o narcotráfico, para denunciar os negócios dos traficantes. Eu, particularmente, investigo o Cartel de Sinaloa e El Chapo há 15 anos, e não sob esse ponto de vista sensacionalista, de inflar um personagem, induzir as pessoas a pensar que El Chapo é um criminoso brilhante, um gênio do crime. Já falei com sua gente, li suas cartas, conversei com quem sei que ele conversa todos os dias, e sei que é um homem primitivo, um violador, que consome drogas, que para ele tudo pode ter um preço. Quando publiquei Los Señores del Narco, fui ameaçada de morte não por El Chapo, não por seus sicários, mas por gente que trabalhava no governo de Felipe Calderón e, ao mesmo tempo, para El Chapo. Este é o ponto fundamental do meu livro e do narcotráfico: são mais perigosos os homens que, sim, têm inteligência, poder político, militar, policial e que estão a serviço dos traficantes do que os próprios traficantes. Pode-se liquidar El Chapo com uma bala, mas as redes de corrupção são integradas por centenas de pessoas que andam uniformizadas ou como empresários. Esses são mais perigosos porque podem se mimetizar, se esconder entre cidadãos normais, enquanto cometem crimes terríveis. É sobre isso que trata meu livro, e por isso é tão sensível no México. Por isso as ameaças de morte não são de El Chapo, mas de funcionários públicos que o protegiam. Está provado no México que os jornalistas são mais atacados pelos funcionários públicos corruptos do que pelos próprios traficantes, a quem não importa o que dizem os jornalistas. São os agentes estatais e os empresários os cúmplices que estão na legalidade e têm muito a perder com esse tipo de denúncia.