Homossexualidade, maconha e feminismo na máquina do consumo
É surrado o argumento de que os signos culturais produzem o modus operandi de toda e qualquer relação humana e tendem a se metamorfosear conforme novas articulações e insígnias batem à porta. No entanto, revisitá-los e reescrevê-los faz-se necessário para compreensão de alguns processos de nosso tempo.
Neste sentido, entre o assombro estupefato e a excitação do excesso, a contemporaneidade presencia transformações constantes e irrefreáveis em inúmeros níveis, agudizando tudo o que se refere ao comportamento humano.
O ato de fumar e os papéis da mulher na esfera social e no campo simbólico – mote central aqui – estão nesse balde há quase um século. Quando desse fenômeno cultural, nos idos de 1930, este era um modelo pouco usual e de fato muito profícuo para a época, diferente do contexto atual em que a rearticulação do comportamento coletivo pela mídia se faz à exaustão.
Este cenário constante de sobreposições imagéticas, convém retomar, é algo que foi acirrado nos últimos 20 anos, não escapando em nenhuma medida à lógica do capital e às suas mais orgânicas peripécias para construir a noção do que é consumir e existir de tempos em tempos.
Das orgias gastronômicas – que passam pela gourmetização e pela glamourização do corriqueiro ato de se alimentar – às normas estéticas do corpo e da autoindulgência – defendendo a metamorfose das cirurgias plásticas e o consenso de direito individual e irrestrito ao excesso –, o hipercapitalismo pós-moderno vem se apropriando de todos os raciocínios e construindo, por vias midiáticas, produtos e comportamentos que atendem a todo e qualquer estrato social. Para rever estes movimentos, faz-se necessário olhar para trás e observar no passado alguns nós com os do presente.
Uma nova feminilidade
Uma postulação precisa de Michel Foucault (2003) refaz caminho semelhante utilizando-se de outros “produtos” e do poder da comunicação de massa para direcionar o onisciente coletivo. Nos idos do século 19, havia um claro obscurantismo sobre a sexualidade, como tentativa de extirpar do discurso o prazer do indivíduo e mantê-lo focado para a lógica do trabalho – atendendo às demandas da Revolução Industrial. Naquele período, escreveu o autor, o contexto do sexo era encoberto e somente manifesto num espaço mais “utilitário e fecundo: o quarto dos pais”.
“Um princípio de explicação se esboça por isso mesmo: se o sexo é reprimido com tanto rigor, é por ser incompatível com uma colocação no trabalho, geral e intensa; na época em que se explora sistematicamente a força de trabalho, poder-se-ia tolerar que ela fosse dissipar-se os prazeres, salvo naqueles, reduzidos ao mínimo, que lhe permitem reproduzir-se?”
Há trajetos semelhantes em nosso tempo, a exemplo da lobotomia prescrevida recentemente, na virada de 2014, para a liberação do uso recreativo da maconha no estado estadunidense do Colorado. Tirada das sombras, a cannabis sativa movimentou filas em postos autorizados e chegou aos hospitais por supostas superdosagens dos entusiastas, assim que a lei foi aplicada. A coqueluche daqueles que consomem a planta, contudo, pareceu irrisória se comparada à do mercado financeiro. Em meados de 2013, empresas que já comercializavam a erva para uso medicinal e demonstravam interesse na recente empreitada do uso recreativo registraram grande aumento de suas ações na Bolsa de Valores. Em alguns casos, a alta superou 1.500% e alargou os sorrisos dos investidores do setor.
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A nova indústria, estimam analistas, deve superar as cifras e movimentar US$ 120 bilhões anualmente. O mercado de álcool é avaliado em US$ 263 bilhões; o de tabaco, em US$ 75 bilhões. Nesse contexto, o Colorado elevou sua previsão de receita tributária dos usos recreativo e medicinal da cannabis, em 2014, para US$ 134 milhões – frente à especulação anterior de US$ 67 milhões. Somente no primeiro mês da venda, a soma do faturamento chegou a US$ 14 milhões e os cofres públicos levaram US$ 2,9 milhões em impostos.
Não por menos, os significantes começam a ganhar elasticidade e a maconha sai do limbo dos viciados e decrépitos para abocanhar os cifrões do mercado financeiro – deslocando, naturalmente, o discurso social do que é consumir maconha. Movimento, necessário mencionar, que ocorreu de forma idêntica com o setor de bebidas alcoólicas num passado não tão longínquo.
Estatuto de mesma estirpe tornou-se concreto quanto a produtos e serviços destinados a gays, lésbicas e transexuais. Até o início dos anos de 1990, a própria OMS (Organização Mundial da Saúde) nomeava a homossexualidade como doença, porém o equívoco começou a perder força e o tema passou a figurar nos planos de marketing das mais conservadoras corporações. A Parada do Orgulho Gay, que em 2015 comemorou sua 19ª edição em São Paulo, movimenta mais de 2 milhões de pessoas e é a maior do mundo – tendo excluído do pódio até mesmo o milionário circuito de Fórmula 1. O mercado que era tabu e sinônimo de “patologia social “deixou tangível seu potencial de negócios e ganhou o abraço do capital, que conta cada vez mais entusiasmado os dividendos do pink money.
Tais rearticulações sígnicas dão cabo exatamente ao mesmo simulacro que construiu o casamento mulher e tabaco nas telas do cinema no início do século 20. O movimento cíclico e sine qua non para o capitalismo abraçou o esboço do que era uma nova feminilidade – livre, fumante e independente –, dando respaldo para as caixas fortes da indústria tabagista.
A promoção da beleza de se ser fumante
Apesar de ser o cinema o grande disseminador do protótipo fálico feminino atrelado ao cigarro, um fato social, com respaldo midiático, inaugurou esse movimento. Conhecido como “o pai da sociedade de consumo”, Edward Bernays assinou tal processo. Sobrinho de Sigmund Freud, Bernays utilizou as teorias do tio relacionadas à cultura das massas para atingir as mulheres e para ampliar os dividendos da indústria do tabaco. Embasado na leitura de que o cigarro não era apenas produto, mas também agente fálico, o relações públicas promoveu uma campanha em que contratou modelos para fumar numa passeata, como se elas fossem “militantes femininas” – com entrelinhas de desafiar o “poder masculino”.
A encomenda vinha da Corporação de Tabaco Americana, cujo objetivo era dobrar o consumo de cigarro naquele país. As mulheres, metade da então população norte-americana, eram mal vistas se fumassem e tal significante precisava ser recomposto. No dia 1º de abril de 1929, em meio ao desfile de páscoa de Nova York, o grupo de modelos contratadas se reuniu para dar cabo à ação. O publicitário avisou jornalistas de toda a cidade dizendo que as moças eram militantes feministas e estariam protestando em defesa do direito da mulher a voto. Em meio à algazarra, dezenas de repórteres estavam a postos quando, juntas, as figurantes sacaram cigarreiras de suas meias-calças e fumaram em público.
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A medida ficou conhecida em pouco tempo e, no dia seguinte, o frenesi chegou a jornais de todo o mundo, com a inscrição do cigarro como símbolo da determinação feminina. Não demorou uma semana para que as vendas disparassem e a indústria tabagista atingisse seu real objetivo.
Na contemporaneidade, em meio à elasticidade do olhar imposta ao indivíduo, a ação do publicitário seria só mais uma na overdose de angústias marqueteiras que inundam a mídia. Entretanto, dado o cenário de 1930, tudo soara como transformação. Como escreveu Valter Hugo Mãe, “era uma ideia razoável de quem fora sempre mulher e nunca percebera o mundo longe dos desígnios falocráticos de uma sociedade tão musculada”.
A propagação de atrocidades
Em nossa sociedade do espetáculo, o poder capitalista está disseminado por toda a vida social, na qual há simultaneamente produção e consumo de mercadorias e de imagens. Por isso, os corpos também se compõem como objetos e, mais especificamente, corpos de alguns seres “escolhidos”, conhecidos da mídia, vão pautar o que é esta imagem.
Daí a função das muitas atrizes de cinema em talhar o que seria este corpo erotizado e preso ao fetiche, exposto em conjunto à imagem fálica do cigarro. Necessário mencionar ainda o papel da sétima arte e a sedução exercida por este tipo de mídia, que se transformaram em coqueluches sociais; uma vez que nossas faltas e feridas narcísicas se exasperam a cada instante na busca de uma imagem condizente que dê conta de nos representar.
Todos queremos nos sentir inseridos, singulares, alternativos, especiais, transgressores da ordem vigente – e, se este imperativo rege tais aspectos num cigarro, tanto para homens quanto para mulheres, por que não atendê-lo? É aqui, precisamente, que incidem os meandros de como todas as formas de disseminação da informação têm seus públicos-alvo.
Evocar o discurso de uma liberdade prometida e merecida, da proximidade de novas ordens e leis, da miragem de um futuro que é uma deliciosa sobremesa depois engolir a indigesta refeição da vida – eis o que, sem eira, nem beira, sustenta a obstinação do capital de tirar a maconha, a homossexualidade, o cigarro atrelado à imagem feminina, enfim, toda e qualquer hipocrisia social do toupeirismo, atribuindo a estes significantes um novo valor mercantil.
Não faça cara de pasmado caso o incesto, a comercialização de órgãos, a pedofilia ou a mutilação humana ganhem o discurso do politicamente correto e se agrupem ao capital. Para propagar tais atrocidades, toda e qualquer mídia pode ser recrutada, a exemplo do cinema e suas inúmeras potencialidades de devaneio.
Dênis Matos, Observatório da Imprensa