Redação Pragmatismo
Mundo 20/Jan/2016 às 16:16 COMENTÁRIOS
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Por que as 'ameaças' da Coreia do Norte não assustam os sul-coreanos?

Publicado em 20 Jan, 2016 às 16h16

Sul-coreano explica por que a população do seu país se sente mais ameaçada pelos spoilers de 'Star Wars - O Despertar da Força', do que pela suposta bomba de hidrogênio da Coreia do Norte

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Dohoon Kim, HuffPost Coreia

Lá vamos nós de novo. Vários amigos entram em contato comigo por e-mail a cada vez que explode alguma notícia envolvendo a Coreia do Norte. As mensagens geralmente expressam preocupação com o que está acontecendo comigo e na nossa península. Quando saiu a notícia de que a Coreia do Norte tinha testado uma bomba de hidrogênio, amigos de todo o mundo me mandaram e-mails querendo saber como estava o ânimo das pessoas aqui. É claro que estamos preocupados. É difícil não se deixar abater por um fato como esse.

Mas nem por isso deixei de me surpreender ao ver a matéria de capa do HuffPost USA logo após o anúncio norte-coreano sobre a bomba de hidrogênio. A foto mostrava uma nuvem enorme deixada pela explosão de uma bomba de hidrogênio. Nem sequer passou por minha cabeça usar uma imagem desse tipo aqui na Coreia do Sul. Se o tivesse feito, teríamos sido altamente criticados por fazer alarmismo. Se você, como estrangeiro residente na Coreia do Sul há poucos meses, tivesse visto uma imagem e manchete como essas na primeira página, provavelmente teria tomado um tranquilizante e começado a procurar uma passagem para voltar para seu país. Ou poderia ter saído às pressas às ruas de Seul à procura de um supermercado, para se abastecer de alimentos para alguma emergência. Mas teria se espantado ao encontrar os cidadãos cuidando de suas vidas na calma total, como se nada tivesse acontecido. Bem, existem outros que acham as reações dos sul-coreanos muito estranhas.

Lara Pierce, uma editora do HuffPost Austrália, escreveu um texto excelente sobre o que ela mesma testemunhou na Coreia do Sul em 2013, após o teste nuclear da Coreia do Norte. “A Redação continua como sempre, preparando a matéria de primeira página sobre a ameaça de bomba e trabalhando rápido para colocar a matéria no site. Perto da hora do almoço, meus colegas discutem os prós e contras de sushi versus bulgogi. Fico perplexa. Afinal, Seul está a meros 56 quilômetros da fronteira da Coreia do Norte -uma distância mínima para um míssil nuclear ou avião de guerra.” Realmente apreciei esse trecho: achei que Lara captou perfeitamente a atitude dos sul-coreanos em relação à ameaça nuclear da Coreia do Norte.

Estou sentado à minha mesa de trabalho neste momento, tentando prever o que está bombando e o que merece ser noticiado entre todos os assuntos que outros veículos de mídia estão cobrindo. Tirando a notícia de que a Coreia do Sul está reiniciando esta tarde a transmissão sonora com alto-falantes voltada à Coreia do Norte, como retaliação, a questão da bomba de hidrogênio já está sumindo das manchetes. Dou uma olhada nas outras manchetes. A Kara, a maior girl-band de K-pop nos últimos dez anos, está prestes a se desfazer. Elas já não tinham se separado? Quem se beneficiou mais do encarecimento dos cigarros no ano passado, que quase dobraram de preço? Eu não, com certeza, já que sou fumante. Os aluguéis na região metropolitana de Seul estão estratosféricos, e isso também é preocupante para mim, porque o dono do meu imóvel também aumentou meu aluguel.

Já se passaram dois dias desde que a Coreia do Norte anunciou ter explodido uma bomba de hidrogênio, mas muitos especialistas afirmam que provavelmente não foi uma bomba de hidrogênio. Não estou dizendo que o que aconteceu não foi perigoso, mas o fato é que em menos de um dia os sul-coreanos se desinteressaram da notícia. Para ser franco, mesmo no próprio dia em que aconteceu as pessoas aqui na Coreia do Sul não se abalaram demais. Por exemplo, o artigo do HuffPost Korea mais lido nos últimos dois dias foi “Nove coisas que fazem bons funcionários pedirem demissão” (eu, por sinal, acho esse um assunto muito importante, já é que meu dever evitar de antemão quaisquer razões que levem bons editores a pedir demissão).

Então por que exatamente é que os sul-coreanos parecem se preocupar menos que estrangeiros com as notícias ligadas à Coreia do Norte? Hoje, na Coreia do Sul, há muito mais pessoas que nunca viveram uma guerra do que pessoas que conhecem a guerra por experiência própria. Para os sul-coreanos, a Coreia do Norte não é uma ameaça imediata ou física. Ela fica logo depois da fronteira, mas praticamente ninguém a conheceu pessoalmente; ela ainda é uma miragem política, uma miragem que, devido a mais de 50 anos de discurso anticomunista, parece ser apenas ligeiramente ameaçadora. Na década de 1980 eu fui criado ouvindo retórica anticomunista. O ditador norte-coreano Kim Il-sung chegava a ser descrito nas escolas como um porco vermelho.

Além disso, as notícias e informações sobre a Coreia do Norte que os sul-coreanos recebemos ainda são limitadas. Não sabemos quase nada sobre como vivem realmente nossos irmãos do norte. Quando o HuffPost posta fotos da Coreia do Norte feitas por um estrangeiro, as reações das pessoas beiram a consternação, com comentários que variam de “inacreditável” a “então as pessoas realmente dirigem seus próprios carros lá?”. A imagem que um sul-coreano tem da Coreia do Norte deve ser comparável a um canadense que imaginasse que todos os texanos andam em público de chapéu e botas de caubói e com arma em punho.

Também vale notar que todo o mundo aqui já está farto do vizinho ao norte. Os sul-coreanos não ligam mais a mínima quando a Coreia do Norte ameaça converter Seul em um mar de chamas. Em vez disso, pensamos: “Deve estar faltando arroz a nossos vizinhos do norte, eles devem estar querendo que a gente doe“. Imagine um parente mal-humorado e cabeça dura de muito, muito tempo atrás que aparece periodicamente para bater com martelo em seu portão, insistindo que você lhe faça um empréstimo.

Quanto à política, a Coreia do Norte é o bode expiatório favorito do partido conservador sul-coreano, especialmente quando uma eleição se aproxima. Por algum motivo, sempre que chegamos perto de uma eleição parlamentar ou presidencial, a Coreia do Norte acaba lançando ou ameaçando lançar mísseis perto da fronteira. Na última eleição parlamentar (a 19ª), uma coisa semelhante aconteceu, mudando o clima político da época. Haverá outra eleição parlamentar em abril deste ano. As pessoas daqui acham que a agressão da Coreia do Norte ajuda a unir as forças conservadoras, levando-as a receber mais votos. Algumas chegam a difundir teorias conspiratórias, dizendo que o partido conservador estaria subornando a Coreia do Norte para agir de modo beligerante na época das eleições. Muita gente na Coreia do Sul realmente acredita nessa teoria conspiratória.

Como expliquei, ninguém deve se surpreender pelo fato de os sul-coreanos reagirem com tanta calma à suposta ameaça de bomba de hidrogênio da Coreia do Norte. A Coreia do Sul convive há 60 anos com um vizinho/irmão/irmã/ou alguma coisa que periodicamente ameaça pôr fogo a Seul inteira. Eles não têm mais interesse em se preocupar e incomodar com essa chantagem. Então qual é a ameaça física mais real que mete medo nos sul-coreanos hoje? Os spoilers de Star Wars – o Despertar da Força.

Me lembro de quando a Coreia do Norte bombardeou a ilha de Yeonpyeong, no dia 23 de novembro de 2010. Eu estava num shopping gigantesco na periferia de Seul, pensando se devia ou não comprar aquele cachecol. O telão de LCD do shopping se acendeu com títulos em vermelho néon e imagens de mísseis chovendo sobre a ilha de Yeonpyeong. As pessoas ficaram olhando o telão com cara preocupada por algum tempo, mas depois, quando se aproximou a hora de o shopping fechar, começaram a se afastar em bandos. Não, não estavam indo para abrigos, mas para as lojas para fazer suas últimas compras. Também eu voltei para a loja. Comprando o cachecol, falei a uma colega que tinha ido comigo: “Se houver uma guerra, provavelmente vai faltar luz, e já que o inverno vai chegar logo, um cachecol de cashmere será uma boa, não?” Ainda tenho aquele cachecol de cashmere, a resposta perfeita a um inverno nuclear.

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