Cinismo de FHC sobre o aborto é o mesmo que sustenta a guerra às drogas
FHC sabia que financiava algo ilícito e sabia que não seria pego pois a Justiça brasileira só tem olhos para os pobres, sabia que abusava de sua posição política e econômica e que suas ações iam de encontro a seu cargo, e mesmo assim fazia, talvez não tanto por falsidade hipócrita mas pelo caráter cínico da nossa sociedade
O nome de Fernando Henrique Cardoso bombou nas redes sociais nessa semana por conta das entrevistas da ex-jornalista da TV Globo Miriam Dutra, dadas à revista BrazilcomZ e depois à Folha de S.Paulo, nas quais ela fala sobre o período em que teve uma relação amorosa com o ex-presidente, que era casado e com o qual teria tido um filho, hoje com mais de vinte anos. Nas entrevistas Miriam critica o líder tucano por nunca ter reconhecido oficialmente o filho e revela que recebeu dinheiro e ameaças, além de ter feito dois abortos de outros filhos de FHC.
Claro que é um pouco estranho ela decidir, depois de tantos anos, falar sobre o caso justo agora que Lula, maior rival de FHC, está com a cabeça a prêmio. Claro que as relações extraconjugais das pessoas dizem respeito apenas aos envolvidos nelas. Mas as revelações de que Cardoso teria estimulado e financiado dois abortos – conduta proibida pelo país que ele governava – nos diz muito sobre o exercício do poder e o caráter da lei em nosso país. Vale destacar que o sociólogo não negou nenhuma das afirmações de Dutra, dizendo apenas que nunca enviou dinheiro a ela por meio de empresas de aliados seus.
Inicialmente pensei em seguir Carla Jimenez, colunista do El País, e ressaltar a hipocrisia do ex-presidente. Ela qualifica a divulgação do fato como estarrecedora, “pois equivale a urrar num megafone ‘somos todos hipócritas no Brasil’, diante da informação de que um prestigiado representante da classe política patrocinou o que tenta ser coibido para pessoas simples que também precisam ter essa possibilidade ao seu alcance”. Jimenez cita Eliane Brum, que destaca a realização anual de mais de 1 milhão de abortos por métodos inseguros no Brasil, com o Sistema Único de Saúde fazendo ao menos 200 mil atendimentos por complicações pós-aborto. As mortes por procedimentos mal feitos também estariam na casa dos milhares.
Como define o dicionário Michaelis, a hipocrisia é a “manifestação de fingidas virtudes, sentimentos bons, devoção religiosa, compaixão, etc.” e é também fingimento, falsidade. Termo perfeito, portanto, para descrever a conduta de FHC, que mesmo tendo já se manifestado em defesa da descriminalização do aborto não fez nenhuma ação concreta para tal quando foi presidente. Uma dupla hipocrisia, uma vez que, assim como no caso das drogas, por um lado suas declarações se chocam com suas práticas de mandatário, e por outro suas ações privadas se chocam com sua posição pública de guardião da Lei. Fingimento e falsidade em sua mais pura face, e que só choca menos pelo praticamente unânime nível de hipocrisia e corrupção de toda a política institucional brasileira.
Mas talvez mais preciso seria observar o caráter cínico do ex-presidente. No livro Cinismo e a falência da crítica, Vladimir Safatle define o cinismo como “um regime peculiar de relação à norma”, e cita Slavoj Zizek, para quem “o cínico vive da discordância entre os princípios proclamados e a prática – toda sua sabedoria consiste em legitimar a distância entre eles”. Deste modo, se Marx definia a alienação como “eles não sabem o que fazem, mas fazem mesmo assim”, Zizek define o cinismo contemporâneo como “eles sabem o que fazem, e ainda assim fazem”. FHC sabia que financiava algo ilícito e sabia que não seria pego pois a Justiça brasileira só tem olhos para os pobres, sabia que abusava de sua posição política e econômica e que suas ações iam de encontro a seu cargo, e mesmo assim fazia, talvez não tanto por falsidade hipócrita mas pelo caráter intrinsecamente cínico de nossa sociedade e suas elites, para quem as leis só devem ser seguidas quando interessa – geralmente pelos outros.
Ainda segundo Zizek, vivemos uma ordem que ri de si mesma, que não precisa mais tentar sufocar ou ridicularizar as críticas, conseguindo na verdade incorporá-las ao sistema através do que Safatle chama de “insatisfação administrada”. Neste contexto, somos incitados a operar um modo de ser muito peculiar de “suspensão de conflitos”: basta que as normas possam ser flexibilizadas para que os conflitos sejam suspensos. “Basta que sejam seguidas de maneira cínica, fazendo com que justifiquem o contrário do que pareciam indexar”. Claro que pra isso acontecer você tem que estar numa posição de poder.
Na opinião de Safatle, essa relação cínica tende a se tornar hegemônica em contextos históricos em que há “imperativos de satisfação irrestrita” tendo que conviver com “expectativas normativas que aspiram à validade universal”. Ou seja, seria uma postura típica dos atuais tempos capitalistas, que seguem reprimindo e controlando os instintos e os corpos das pessoas mas com a novidade de agora também os estimularem a todo tempo, num bombardeio publicitário/midiático/educacional/cultural em defesa do individualismo e do prazer. A mesma sociedade que oprime e fiscaliza a livre expressão da sexualidade também está a todo tempo incitando e falando sobre sexo, o mesmo sistema que demoniza as drogas celebra e promove a busca pelo prazer e pelo risco. As regras e os indicativos morais estão aí e muitas vezes podem entrar em conflito nosso prazer, e pra quem pode a saída é adaptar as regras.
O cinismo de Fernando Henrique Cardoso em relação ao aborto é o mesmo que construiu e sustenta as políticas de drogas proibicionistas, afinal elas existem tanto por dinheiro, racismo e controle social quanto para controlar os corpos, o direito ao prazer – o que Foucault chamava de “ortopedia social” e “sociedade de normalização”. O Estado busca controlar não o que fazem os indivíduos, mas suas potencialidades, o que eles podem fazer com seus corpos e desejos. Mesmo que se trate de um “crime sem vítimas”, como no caso do uso de drogas, ou de evitar milhares de mortes anuais, como no caso do aborto, a defesa da vida e da saúde comuns acaba sendo (cinicamente) reivindicada, com consequências terríveis para a saúde e a vida de muita gente.
Leia também:
De que cor são as vestes da moral?
Mirian Dutra: “Não quero morrer e levar isso comigo”
Ser contra ou a favor do aborto?
850 mil mulheres realizam aborto no Brasil por ano
A feminista há muito escreveu a respeito da sobrevalorização da sexualidade em nossa sociedade. O mesmo acontece com as drogas. Orientações, ações e preferências sexuais, e uso de drogas, não só são condutas do âmbito privado como são apenas uma pequena parte dos inúmeros hábitos e atividades do cotidiano humano e social. Ao buscarem controlar, reprimir ou extinguir as relações sexuais e o uso de (algumas) drogas, os moralismos acabam por dar a estas condutas uma atenção e um valor muito maiores do que deveriam ter, e os fins são geralmente tão duvidosos quanto os meios, os efeitos de tais procedimentos.
Muita gente não deixa de usar – e vender – determinadas drogas por conta da proibição. Muitas mulheres e médicos não deixam de praticar abortos por causa da proibição. Em ambos os casos, a proibição não vale para todo mundo, e todo mundo sabe disso: quem tem dinheiro pode usar e até traficar droga que nunca será preso, a mulher que tem condição pode pagar um aborto limpinho e seguro e quem sabe voltar no mesmo dia pra casa, e não ser enterrada numa vala comum como as que não tiveram a sorte – ou o azar – de serem namoradas do presidente. Também nos dois casos o problema segue existindo e a proibição, apesar de dar a alguns a sensação de que algo está sendo feito, na verdade só agrava o problema.
São proibições hipócritas de consequências cínicas, que explicitam e aumentam a gigantesca distância entre lei e justiça nesse país. Para Fernando Henrique Cardoso podem ser motivo de conflito interno ou arranhão de imagem: pra muita gente é questão de vida ou morte.
PS Sim, Lula, Maduro, Fidel e mais um monte de gente supostamente de esquerda também são hipócritas sobre drogas e aborto. Isso não faz nenhum tucano melhor, só o mundo pior.
Júlio Delmanto, Diplomatique