Redação Pragmatismo
Mulheres violadas 23/Fev/2016 às 12:29 COMENTÁRIOS
Mulheres violadas

Uma resposta ao polêmico texto de Fernanda Torres sobre machismo e feminismo

Publicado em 23 Fev, 2016 às 12h29

Em texto publicado na Folha de S.Paulo, Fernanda Torres diz que se irrita mais com a “vitimização do discurso feminista do que com o machismo”. Atriz descreve ainda suas lembranças com uma antiga babá, Irene, que era “um avião de mulher”. Conteúdo provocou discussões acaloradas nas redes sociais

Fernanda Torres machismo feminismo
Atriz Fernanda Torres critica ‘vitimização feminista’ em texto na Folha de S.Paulo e gera discussão nas redes sociais

A atriz e escritora Fernanda Torres gerou polêmica nas redes sociais devido ao seu último texto publicado no blog #AgoraÉqueSãoElas, do jornal Folha de S. Paulo, intitulado Mulher.

Nele, a autora afirma que “Não me incomoda o machismo”, que é contra campanhas como a Chega de Fiu Fiu e que “A vitimização do discurso feminista me irrita mais do que o machismo.” A atriz faz menção às suas memórias e relata a sua relação com uma antiga babá, a Irene, que era “um avião de mulher”.

Para ela, “o assédio [sofrido por Irene] não a diminuía, pelo contrário, era um poder admirável que ela possuía e que nunca cheguei a experimentar […] Já beirando a idade em que nos tornamos invisíveis ao peão da obra da esquina, rejeito as campanhas anti fiu fiu e considero o flerte um estado de graça a ser preservado.”

Na internet, as palavras de Fernanda Torres estão sendo criticadas e suas afirmações estão provocando discussões sobre o tema. “Li um texto da Fernanda Torres que fez meus olhos sangrarem”, publicou uma internauta no Twitter. “Que decepção ler esse texto da Fernanda Torres no #AgoraÉqueSãoElas. Não só pelo que diz, mas por não sacar onde quer chegar”, escreveu outra.

Na plataforma Medium, a jornalista Carol Patrocínio publicou uma resposta ao texto de Fernanda Torres. Reproduzimos a íntegra abaixo:

Refém — uma resposta à Fernanda Torres

Fernanda, preciso te contar uma coisa: estamos em 2016 e a escravidão acabou há 128 anos. Sei que é pouco tempo, mas já deu pra se localizar no contexto social em que vivemos e aprender a olhar o mundo com empatia, ainda mais quando o acesso a informação é tão fácil.

É triste quando mulheres reproduzem o machismo, mas a gente entende. Eu, assim como você, fui criada nessa mesma sociedade machista. Só que quando mulheres cultas, chamadas de intelectuais e com acesso a informação reproduzem um discurso falso é complicado de lidar.

E, olha só, você tem acesso a toda essa informação. Você mesma deixa isso claro no seu texto. E falar que a diferença com que o mundo trata homens e mulheres é biológica é quase criminosa: esse mesmo tipo de teoria foi utilizada para “comprovar” que negros deveriam ser escravizados. Esse é o lado que você escolheu ficar, Fernanda. O problema é que não é apenas nesse ponto que seu texto se mostra além de intelectualmente desonesto, racista e machista.

Que diferença biológica faria com que uma mulher ganhasse um salário menor do que um homem que ocupa a mesma função, tem a mesma experiência e educação? Que diferença biológica faz com que seus pares recebam mais do que você ao escrever um livro ou roteiro? Porque isso acontece, Fernanda. E não há diferença biológica nenhuma nisso.

“Tenho gratidão pelas babás que me criaram e que criaram meus filhos, cumprindo a função da mãe social, que nos tempos da vovó menina era feito pelas tias, primas, avós e irmãs da casa”

Mãe social? Você nota quão escravocrata é isso? Quem cria os filhos das babás? Filhos são feitos por um casal e é esse casal quem tem que arcar com sua criação com a colaboração de toda a sociedade, incluindo o chefe que acha que mulher sai demais quando tá com filho doente. Uma criança é um legado para o mundo.

“Minha babá era um avião de mulher, uma mulata mineira chamada Irene que causava furor onde quer que passasse. Eu ia para a escola ouvindo os homens uivando, ganindo, gemendo, nas obras, nas ruas, enquanto ela seguia orgulhosa. Sempre associei esse fenômeno à magia da Irene. O assédio não a diminuía, pelo contrário, era um poder admirável que ela possuía e que nunca cheguei a experimentar”

Antes de tudo, você sabe o que quer dizer mulata? Poderia ter dado uma olhada nos textos publicados nessa mesma coluna que você usa para espalhar seu parco conhecimento social e aprenderia com o texto A Mulata Globeleza: Um Manifesto:

“A palavra de origem espanhola vem de ‘mula’ ou ‘mulo’: aquilo que é híbrido, originário do cruzamento entre espécies. Mulas são animais nascidos do cruzamento dos jumentos com éguas ou dos cavalos com jumentas. Em outra acepção, são resultado da cópula do animal considerado nobre (equus caballus) com o animal tido de segunda classe (equus africanus asinus). Sendo assim, trata-se de uma palavra pejorativa que indica mestiçagem, impureza. Mistura imprópria que não deveria existir.

Empregado desde o período colonial, o termo era usado para designar negros de pele mais clara, frutos do estupro de escravas pelos senhores de engenho. Tal nomenclatura tem cunho machista e racista e foi transferido à personagem globeleza, naturalizado. A adjetivação ‘mulata’ é uma memória triste dos 354 anos (1534 a 1888) de escravidão negra no Brasil.”

Eu sei, você não é racista. Nenhum de nós o é. Mas, para dor e desespero de muito, não é a gente que decide isso, mas o outro. É quem olha de fora que pode dizer se você está ofendendo. É o negro que decide. Nós, brancos, não estamos acostumados com negros decidindo nada, mas é assim que o mundo funciona hoje em dia.

Além desse termo horrível, você fala que sua babá, que era negra ou não-branca, ouvia absurdos por onde passava. O que você chama de “homens uivando, ganindo, gemendo”, eu chamo de absurdos. Você imagina como ela se sentia? Você acha que algum desses caras gostaria de apresentá-la para a mãe, levar no almoço de domingo, desfilar com ela pela orla? Não, Fernanda, a maior parte desses homens querem transar com mulheres negras e casar com mulheres brancas.

Infelizmente, no imaginário masculino, até hoje existe mulher para transar e mulher para casar. E continua sendo igual na época da escravidão. Pensamentos como esse corroboram para que esse imaginário se mantenha. Você já pensou em conversar com a mulher que trabalhava para sua família como babá o que ela achava desse assédio? Porque, assim, ela existe, é uma pessoa.

(E sobre esse assunto, tanto da hipersexualização da mulher negra quanto da sua solidão, indico três textos maravilhosos: A carne mais exótica do mercado, A solidão da mulher negra e o racismo cotidiano e Síndrome de Cirilo e a solidão da mulher negra)

Você ainda fala que inveja “o companheirismo dos homens, o prazer que eles sentem de estarem juntos e se divertirem com qualquer bobagem”. Será que o problema são as mulheres ou as relações que você vem travando com outras mulheres? Durante anos eu senti o mesmo que você. Só andava com os caras, queria ser um dos caras, queria ser como eles, ter amizades como as deles. E aí eu descobri mulheres incríveis ao meu redor. Mulheres que não competiam comigo nem eu com elas, mulheres que riam de besteira, dividiam o prazer de fazer nada juntas, que entendiam que tanta coisa nos unia e não valia a pena deixar nada nos separar. Hoje a gente criou a Comum que é um lugar em que a gente aprende que juntas somos mais fortes e podemos materializar esses encontros cheios de risadas, amor e amizade entre mulheres.

O machismo não incomoda enquanto ele não é uma bela água batendo na sua bunda pelada. Uma água de banheiro público que esfria sua bunda quando você menos imagina. Aí ele incomoda. Mas existem contextos em que é fácil viver numa boa com o machismo e achar que ele se resume a ser machão. Machismo mata. Violenta mulheres. Acaba com vidas. Diz que tudo bem abandonar um filho. Faz parecer besteira a gente querer andar pela rua sem ser desrespeitada, seja verbal ou fisicamente. O machismo não é apenas um cara que gosta de transar, coçar o saco e falar besteira. Tudo isso a gente também gosta, inclusive de coçar.

“O Brasil está entre um e outro”

Infelizmente, Fernanda, o Brasil está mais perto da Índia e seus estupros coletivos que contam com a vergonha da mulher em denunciar do que da Alemanha e sua vontade de se distanciar da história de terror do seu passado. O flerte não é um problema, mas o flerte não é o assédio, não é a cantada de rua, não é a cultura do estupro que nos convence de que mulheres existem para servir os desejos sexuais dos homens.

“Uma vida de indiferença, onde todo mundo é neutro, não falo igual, digo neutro, sem xoxota, sem peito, sem pau, bigode, ah… é uma desgraça”

Não consigo entender de onde as pessoas tiram essa ideia. Quer dizer, entendo pessoas com pouco acesso a informação, que assistem programas em emissoras opressoras, acreditarem no que escutam ali, mas gente chamada de intelectual… As pessoas continuam tendo vaginas e pênis, seios, bigodes… Continuam transando, paquerando, dançando até o chão e talvez no colo do coleguinha. A diferença é que essas diferenças só existe ali, em mais nada. Adoro um pênis. Uma vagina também. Mas nada disso me importa na hora de contratar uma pessoa. Não me importa na hora de pagar bem quem oferece um serviço de qualidade. Não me importa quando alguém sofre violência. Não faz diferença nenhuma se tem peito, pinto, buceta, bigode. Ou se tem peito com pinto. Ou buceta com bigode. Vê a diferença? É sutil, mas está ali.

“A vitimização do discurso feminista me irrita mais do que o machismo. Fora as questões práticas e sociais, muitas vezes, a dependência, a aceitação e a sujeição da mulher partem dela mesma. Reclamar do homem é inútil. Só a mulher tem o poder de se livrar das próprias amarras, para se tornar mais mulher do que jamais pensou ser”

A parte mais importante desse trecho do seu texto é o MUITAS VEZES. Porque quando você o usa está assumindo que não é sempre assim. E aí falta empatia. Você não é uma má pessoa, mas comete o erro mais comum de todos: mede o mundo por você. A você falta essa vontade de ser livre? Essa força para lutar contra todas as amarras que você acha que precisa manter para ser “feminina”, “desejável”, “ter sucesso”? Porque, Fernanda, você não precisa. Você é refém de tudo isso. E é a exceção, aquela que comprova a regra. No final das contas você apenas está fazendo com que tudo o que a gente diz se prove ainda mais verdadeiro.

A gente não tá se sujeitando, tá apenas seguindo as regras que dizem pra gente que são as certas. Até o dia em que a gente abre os olhos, escolhe a pílula certa entre a vermelha e a azul, aguenta o clarão passar e começa a enxergar o mundo com mais objetividade, sem vendas nos olhos, nem as de renda que só deixam tudo meio confuso. E nesse dia a gente entende uma coisa incrível e que vai totalmente de encontro ao que você diz em seu texto:

“Nunca fui mulher o suficiente para chegar a ser homem”

O que eu te digo é que eu descobri que sou mulher o suficiente para não querer ser homem. E isso me torna completa, forte, plena e pronta para levar luz a assuntos que incomodem quem adora sentar no topo da montanha de privilégios.

Machistas não passarão. Racistas não passarão. Independente se são homens ou mulheres. Você ganha a minha sororidade – a tal amizade entre mulheres, sabe? — porque eu sei que não é fácil sair desse fluxo de obrigações femininas e silenciamento, mas não espere uma mão sendo passada pela sua cabeça: você é mulher o suficiente para ser melhor do que isso.

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