Como semiólogo, ele zombou das redes sociais, dizendo que permitiram a invasão dos imbecis. Como romancista, notou que os velhos jornais “não são feitos para revelar, mas para encobrir notícias”. Além de escrever vários ensaios impagáveis de estética, linguística e filosofia e de criticar em profundidade a midiaesfera global, Umberto Eco foi também autor de ficção best-seller
Pepe Escobar | Tradução: Vila Vudu, Oriente Mídia
Era uma vez na Renascença Italiana, intelectuais sérios erguiam os olhos para o polímata Pico della Mirandola, como “o último homem que sabe tudo”. Em nossa terra pós-moderna devastada, Il Professore (“o professor”) Umberto Eco (1932-2016) foi, pode-se dizer, o último homem pós-renascença que sabia tudo.
Filósofo, semiologista, professor de erudição épica, especialista em estética medieval, autor de ficção e não ficção, Eco oscilou gozosamente entre os papeis de “Apocalípticos e Integrados” – título de um de seus livros seminais (1964). O toque que é sua marca registrada é uma síntese deliciosamente erudita de trágico otimismo – como se fosse, ele, o sonhador erudito supremo.
Não só escreveu vários ensaios impagáveis de estética, linguística e filosofia e criticou em profundidade a midiaesfera global; foi também autor de ficção best-seller, de O Nome da Rosa (1980) – 14 milhões de exemplares vendidos – ao O Pêndulo de Foucault (1988).
Antes de se tornar Il Professore, com status de ícone universal, Eco mergulhou fundo em Santo Tomás de Aquino, deixou de crer em Deus e separou-se da Igreja Católica (“Milagrosamente, Tomás de Aquino curou-me de minha fé.”) A tese de filosofia que apresentou em 1954 à Universidade de Turin – orientado por um mestre, Luigi Pareyson – estudava a estética de Santo Tomás.
Tiradas do caminho a culpa e as crucifixões – Eco estava pronto para se embrenhar pela avant garde. Opera Aperta (Obra Aberta) apareceu em 1962 – uma análise estruturalista da literatura baseada em James Joyce e que virou febre nas universidades de Paris a Berkeley nos anos 1960s e 1970s. O xis da questão era definir a arte. Eco propunha que a obra de arte traz uma mensagem ambígua, aberta a infinitas interpretações, porque muitos significados coabitam num único significante. Assim, um texto não é objeto acabado, mas “aberto”, que o leitor não pode apenas aceitar passivamente. O leitor tem de trabalhar também, para reinventar e interpretar o que leia.
Em 1971, Eco já ensinava ciências semióticas na faculdade de Letras e Filosofia de Bologna. Viu essa ciência experimental – lançada por Roland Barthes – como mais que um método; ela levou-o a experimentar além de todas as intersecções, entre culturas erudita e pop.
Bebendo freneticamente da cultura pop, Il Professore teria de acabar na TV, que se pôs a dissecar com milhão de bisturis; disso veio um coquetel tóxico de kitsch, futebol, cultura das celebridades, publicidade, moda – e terrorismo. O embrião desse frenesi crítico já estava ativado em Apocalípticos e Integrados.
A atitude apocalíptica da mídia-empresa reflete uma visão elitista e nostálgica de cultura; a atitude integrada privilegia o livre acesso aos produtos culturais, sem se preocupar com o modo como são produzidos. E foi o que levou Eco a propôr uma visão crítica de todos os meios da mídia-empresa, a qual, infelizmente, poucos tiveram coragem de aplicar.
Leia, e você viverá 5 mil anos
Eco foi leitor ávido, pelo menos dois jornais todas as manhãs. Adorava jactar-se de que vivia fiel à ideia de Hegel, de que ler jornais era “a oração diária do homem moderno”. E também escreveu para jornais – colunas e ensaios.
Como autor de ficção, foi totalmente pós-moderno. O pós-modernismo – infindavelmente discutido nos anos 1980s a-go-go – tentou estabelecer um pensamento crítico e irônico acima de toda a tradição de intertextualidade. Mas Eco sempre fez questão de destacar o quanto a própria noção de pós-modernismo era, ela mesma, confusa; na arquitetura, o pós-moderno não seguiu Le Corbusier; na literatura, não seguiu o nouveau roman, poderia até converter-se na escola crítica norte-americana aplicada à arte de narrar, baseada em Borges e Garcia Marquez.
Eco entendia que, se o pós-modernismo na literatura visasse a uma reflexão irônica sobre a pluralidade dos modos de narrar, a coisa toda teria de ter começado com Tristram Shandy, de Sterne, Cervantes e talvez Rabelais. Mas se James Joyce em Retrato do Artista quando Jovem é “moderno”, em Ulisses e Finnegans Wake/Finicius Revem é definitivamente pós-moderno.
Mais cedo ou mais tarde, Il Professore teria de se ver frente à frente com o Sábio Total, Borges. Chegou à conclusão de que Borges deu significado a uma tradição ainda mais ancestral; a outra face da avant-garde, com, de um lado as rupturas dos futuristas e Dada, pinturas monocromas e abstratas; e, do outro lado, o surrealismo.
O Nome da Rosa é o romance pós-moderno consumado. Eco provoca o leitor a cada página, propondo charadas sem parar, uma alusão, um pastiche ou mera citação, tudo semeado ao longo de uma trama antiga investigada por um monge franciscano, avatar de Sherlock Holmes. O livro pode ser lido de, pelo menos, três modos paralelos: pode-se seguir a intriga; pode-se seguir o debate de ideias; ou se pode seguir as dimensões alegóricas tecidas num jogo múltiplo de citações sobre citações, “livro feito de livros”. E é onde temos Eco, leitor consumado de Borges.
Seu livro mais recente, Número Zero (2015) também é tumulto. Passa-se em 1992 em torno de uma sala de redação imaginária – e dispara dardos por toda a sumarenta história política, jornalística, judicial e conspiracional da Itália moderna – do escândalo Tangentopoli ao Gladio da OTAN; dos escândalos da Loja Maçônica P2 ao terrorismo das Brigadas Vermelhas. Ninguém jamais escreveu um thriller sobre jornalismo vagabundérrimo; é tarefa que teria mesmo de caber a Il Professore. Seu Rosebud: “A questão é que jornais não são feitos para revelar, mas para encobrir as notícias.”
Faz sentido também que, no fim, Eco tenha-se recusado a publicar pelo colosso midiático italiano Mondadori-Rcs. Daí que iniciou uma nova aventura, a editora Nave de Teseo (Barco de Teseu). Il Professore observou que “Teseu é pretexto, um nome como qualquer outro. Teseu não importa. O que importa é o barco.” Mais uma pegadinha semiológica.
Leitor empenhado até o fim, Eco disse certa vez que “quem não lê, aos 70 anos terá vivido uma vida só. Os que leem terão vivido 5 mil anos. Ler é a imortalidade em retrospecto.”
Assim, faz sentido que haja um Eco póstumo – Pape Satan Aleppe –, que será lançado na Itália, dentro de poucos dias. O volume reúne as colunas que Eco publicou na revista L’Espresso interligados pelo tema da sociedade líquida e seus sintomas; como ele mesmo anunciou, “a crise da ideologia, da memória, das comunidades às quais se pertence, a obsessão com a autopromoção.” E o que significa o título? Eco explicou, risonho, que é “citação evidentemente dantesca que nada significa e, assim, é suficientemente ‘líquida’ para caracterizar a confusão de nossos tempos.”
What’s in a Name? O que há num nome?
Depois de, recentemente, receber uma laurea honoris causa em Comunicação e Cultura das Mídias em Turin, Eco provocou uma tempestade midiática, ao ridicularizar as redes sociais.
Disse que elas “deram direito de expressão a legiões de imbecis que, antes, só falavam no bar depois de um copo de vinho, sem perturbar o ambiente social. Agora, têm o mesmo direito de expressão que um Prêmio Nobel. Os imbecis invadiram tudo.”
Estava, claro, certíssimo. Qualquer um submetido aos absurdos da internet reconhece agora o quanto e como “a TV promoveu o idiota da vila, em relação ao qual o espectador sente-se superior. O drama da internet é que promoveu aquele idiota da vila ao status de enunciador da verdade.”
Acrescente isso à “confusão dos nossos tempos” que só se tornarão ainda mais confusos agora que perdemos o Grande Alquimista – homem do riso, agitador, mistura de pensador multiplural, doido pelo texto e leitor perenemente apaixonado. E daí, que nunca lhe tenham dado um prêmio Nobel? Borges também foi ignorado.
A última frase de O Nome da Rosa é “stat rosa pristina nomine, nomina nuda tenemus“. “A rosa que houve agora existe só em nome, só temos nomes nus.” É variação de um verso de De Contemptu Mundi, de Bernard de Cluny, monge beneditino do século 12. Agora, nomes nus ecoam ecos uns dos outros, sob a sombra benigna do Eco dos ecos.
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