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Você acredita que juízes são “apolíticos”?

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Nos EUA, todos os ministros da Suprema Corte são vinculados a ideais dos dois maiores partidos políticos. Nas Américas, quem escolhe cúpula do Judiciário de modo mais democrático e transparente é a Argentina

A morte de Antonin Scalia, um dos nove juízes da Suprema Corte dos EUA, trouxe para o debate discussões sobre como, quando e quem será selecionado para ocupar a sua vaga na Corte. Scalia era o fiel da balança republicano que desempatava o placar de quatro juízes republicanos e quatro democratas. Até sua morte, a corte tinha uma maioria conservadora. Agora, Obama tem a chance de deixar mais um legado de sua gestão ao nomear um democrata e reverter a posição política majoritária do tribunal.

Na pauta de julgamento estão casos que questionam políticas implementadas durante a gestão do presidente como aborto, ações afirmativas e imigração. A nomeação de um democrata poderia trazer mais sensibilidade às decisões relacionadas a atos e políticas da atual administração.

Tais casos não são muito diferentes dos que estão na pauta de julgamento da suprema corte brasileira ou de outras cortes constitucionais. São debates eminentemente políticos, decididos por meio de interpretação e aplicação de princípios e regras constitucionais. O sistema estadunidense de seleção para os juízes que integram a suprema corte também é semelhante aos de Argentina, Brasil e México, com a indicação de um nome pela presidência e sua confirmação pelo Senado.

Contudo, a naturalidade da discussão nos EUA sobre se o próximo juiz será democrata ou republicano pode dar um nó na cabeça de quem clama por um judiciário imparcial e independente da política.

Luiz Edson Fachin, último ministro a ingressar na suprema corte brasileira por indicação de Dilma Rousseff, teve muito trabalho em provar para os grandes jornais e ao Senado que, na qualidade de ministro, seria apolítico, mesmo já tendo manifestado apoio ao MST e à eleição da presidenta petista em 2010.

A Assembleia Nacional da Venezuela, por sua vez, foi alvo de críticas ao selecionar 11 juízes para sua suprema corte antes que a nova maioria antichavista pudesse fazê-lo e colocar em risco as políticas implementadas durante a gestão de Hugo Chávez e Nicolás Maduro.

Maurício Macri, novo presidente argentino e claro oposicionista das gestões kirchneristas, tentou nomear, por decreto e sem aval do Senado, 2 juízes para a suprema corte, sob o argumento de urgência para as nomeações. Diante de duras críticas da sociedade argentina, Macri desistiu do decreto e deverá aguardar a aprovação do nome pelo Senado, que possui maioria kirchnerista.

Apesar de ser natural para os Estados Unidos e um escândalo para países da América Latina, a disputa política pela nomeação de juízes para supremas cortes é inevitável e absolutamente compreensível diante do protagonismo político que as próprias constituições exigem dos tribunais [1] [2].

A disputa pode parecer uma afronta à independência judicial, mas defender que quem irá decidir grandes temas da sociedade deve estar alheio à política é voltar a 1789, auge do pensamento liberal clássico, que via o juiz como mero garantidor de liberdades individuais em face do Estado.

Constituições são, por natureza, cartas políticas e permitem interpretações diferentes para um mesmo dispositivo constitucional. Um claro exemplo seria o do artigo 5º, inciso XXII, da Constituição brasileira, que diz: “é garantido o direto à propriedade”. Tal dispositivo pode ser acionado tanto pelo proprietário de terras improdutivas para evitar que elas sejam ocupadas quanto por quem quer ter acesso a elas por não ter propriedade para produzir. Em última instância, ficaria a cargo do STF definir qual interpretação será aplicada.

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Portanto, se a capacidade e a independência de juízes forem avaliadas apenas com base em posicionamento político – ou mesmo apolítico – não será levado em consideração o próprio papel que as cortes constitucionais assumiram há décadas: o de garantirem direitos sociais e avaliarem a constitucionalidade de políticas públicas.

Uma alternativa a esse dilema, ainda presente em países latino-americanos, seria o aumento do controle democrático e da transparência do processo de seleção. E isso já vem sendo pautado por mobilizações que ainda não reverberam na grande imprensa, mas que têm um papel fundamental para o debate.

No Brasil, movimentos sociais, coletivos e organizações não governamentais pautam desde 2011 a regulamentação de um procedimento mais democrático para os processos de escolha e nomeação no STF [3]. Da mesma forma, organizações mexicanas pedem mais transparência nas indicações e uma sabatina mais participativa no Senado.

O sistema de seleção argentino, atual modelo regional de transparência e participação, foi elaborado por diferentes atores da sociedade civil argentina e implementado por Néstor Kirchner em 2003. Por esse modelo são divulgados nome, histórico, motivações e conflitos de interesse dos candidatos sugeridos pela presidência e é dado um prazo razoável para que cidadãos, associações e entidades de classe possam manifestar-se sobre a indicação antes da deliberação do Senado.

A participação da sociedade no processo de nomeação de juízes para a suprema corte é uma dentre muitas demandas que buscam a democratização do Poder Judiciário e não traz riscos para a sua condição contramajoritária em democracias constitucionais.

Observar atentamente o processo estadunidense como um grande embate político é importante, mas não se pode tapar os olhos para esse fato quando o mesmo se passa em países da América Latina. A nomeação de juízes para supremas cortes deve respeitar critérios prévios, claros e objetivos para o processo de seleção, mas não deixa de ser uma escolha política. E, sendo político, a participação social é fundamental, seja para o controle democrático do processo ou pela necessidade de se aproximar o Poder Judiciário da realidade da sociedade na qual está inserido.

Flávio Siqueira Jr., Outras Palavras

Referências

[1] Principalmente quando se trata de constituições que garantem direitos sociais e definem verdadeiros programas de políticas públicas a serem implementadas por governos independentemente de sua convicção política. Ver COUTO, Cláudio Gonçalves e ARANTES, Rogério Bastos. Constituição, governo e Democracia no Brasil. Revista Brasileira de Ciências Sociais,Vol. 21, nº 61, junho/2006. P. 41-62.

[2] O protagonismo é tão presente que importantes pesquisadores chamam o fenômeno de “juristocracia” ou “supremocracia”. Ver VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremocracia. Revista Direito GV, Jul-Dez 2008, p. 441-464.

[3] Desde 2011 a Articulação Justiça e Direitos Humanos – JusDh contribui para a atuação de diversas organizações no acompanhamento e reivindicação de maior transparência e participação social para os processos de nomeação dos integrantes do STF. Em 2014, 50 entidades, movimentos sociais e redes enviaram Carta Aberta à Presidência da República, à Secretaria Geral da Presidência da República e ao Ministério da Justiça reivindicando a regulamentação do procedimento.

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