Delmar Bertuol*, Pragmatismo Político
Por esta a mulher não poderia esperar. Já tava atrasada pra pegar a filha na casa da amiguinha. Depois, teria que voltar em casa e convencer a aprendiz de porquinha a tomar banho pra irem no aniversário da tia. Mas antes teria que insistir pra que entrasse no carro, pelo amor de Deus, e que em outra ocasião as duas amigas poderiam dormir juntas e fazer a noite do pijama. Ocorre que parou na sinaleira. E o trânsito não andou mais. Dezenas de carros parados a sua frente. O mesmo tanto atrás e do seu lado esquerdo. À direita, uma multidão aglomerada. Curiosos que se contorciam pra ter a melhor visão do sinistro. Não havia como fazer qualquer tipo de manobra, tão imobilizado tava o carro.
O dono do mercadinho tratou de fechar as portas. Gostava de movimento perto do estabelecimento, mas tanto assim era um facilitador de furtos e arruaças.
O motorista do ônibus abriu as portas do veículo e sugeriu que os passageiros seguissem a pé. Pelo visto, deu coisa feia e não havia previsão de liberação da avenida.
Do condomínio popular bem em frente descia gente aos grupos. Vinham já levantando opiniões, achismos e suspeitas, num diz-que-me-disse.
Os burburinhos seguiam no arredor. As hipóteses eram várias. Havia os lamentos e as resiliências. O tá-cada-dia-pior era o assunto do momento.
Um considerou como milagre o fato de ninguém mais ter morrido. Sim, pois em pleno movimento de à noitinha duma sexta-feira de verão, em frente ao comércio do bairro, perto do bar onde os trabalhadores tomavam a última antes de irem pra casa e os da noite emborcavam as primeiras de muitas; no mesmo espaço em que os carros andavam em velocidade vagarosa de passeio e a gurizada ia comprar o ingrediente da receita de bolo faltado de ultima hora (vai apurado, pediam as mães-confeiteiras); onde as donas-de-casa iam buscar o necessário pro fim de semana e espiavam as vitrines, acompanhadas, Deus do Céu, pelos filhos pequenos; pouco antes das nove da noite, dezenas de tiros foram endereçadas ao sujeito. Nem todos chegaram ao destino correto, mas os errados não fizeram falta.
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O sangue corria pela sarjeta suja como se fosse de boi de abate. A terra arenosa não deu conta de sugar tudo, formando poças avermelhadas.
O da vez tinha mulher, filho e antecedentes criminais. Não se sabe se nessa ordem. Não se tem notícia se acreditava em Deus, em destino ou em porra nenhuma. Também é desconhecido onde ele tava indo antes de ser interrompido. Já fora preso por porte ilegal de armas, mas não foi encontrado nenhum revólver junto a seu corpo ensanguentado. Mesmo que tivesse armado, contudo, dificilmente conseguiria sequer esboçar reação, pois os homens encostaram o carro, baixaram os vidros e pá-pá-pá pra mais de cinquenta vezes – quase faltou material pra perícia marcar todas as cápsulas, pra investigação que não ia adiantar de nada mesmo -. Tudo isso foi muito rápido, embora os dois minutos da ação parecessem não passar, principalmente para aquele pai que teve que se deitar por cima do filho, num instinto paterno que, passado o susto, lhe encheu dum orgulho velado, mas legítimo de se ter.
Dizem que a esposa trabalhava ali perto e foi contida pelos colegas a não ir ao local. Primeiro, ela não acreditou. Depois, deu um berro de desespero, aí lhe faltou o ar (que nem boi manso quando é sangrado na jugular e jorra sangue pegajoso, tal qual seu marido fazia nesse exato momento). Por fim, não esboçou mais reação. Ficou em estado de choque, a pobre moça, que terá que cuidar sozinha do filho de apenas três anos. Que Deus lhe ajude.
A mulher no carro pega o telefone e liga pra mãe da amiguinha da filha. Iria se atrasar. Estava trancada no trânsito. Ao que parece, mataram alguém logo ali na frente. Desligou o telefone e pesou a mão na buzina.
*Delmar Bertuol é escritor, membro da Academia Montenegrina de Letras, graduando em história e colaborou para Pragmatismo Político
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