Delações falsas e o que nos pode ensinar o Caso Tortora da Itália: o perigoso jogo dos “colaboratori di Giustizia”
Alfredo Copetti, Michela Petrini e Alexandre Morais da Rosa, Empório do Direito
A delação/colaboração premiada está na moda. Já esteve na Itália. Trinta anos depois, o paradigmático Caso Tortora, ocorrido na Itália na década de 1980, deixa marcas e cicatrizes, e serve para mostrar os equívocos cometidos em série pela Justiça Italiana na condução daquilo que foi, segundo Giorgio Bocca, o maior exemplo de açougue judiciário a granel do nosso país (aqui).
Nem magistrados (Juízes e membros do Ministério Público), nem falsos colaboratori di giustizia foram responsabilizados pelo eloquente erro de delação premiada que manteve Enzo Tortora por 1185 dias nas mãos da justiça italiana.
Acordado às 4 (quatro) horas da madrugada no Hotel Plaza di Roma, onde estava hospedado, e levado em custódia pelos Carabinieri, Enzo Tortora achou que se tratava de uma situação homônima e que tudo se resolveria em poucas horas. O tempo passou e o que de fato ocorreu foi uma carnificina midiática inimaginável em torno de sua prisão. Fotógrafos e redes de televisão, acompanhados de curiosos de todos os gêneros, esperavam Tortora sair do quartel general dos Carabinieri, para ser transferido, a fim de incrementar a neve na avalanche que se formava. De um momento ao outro, aquele que era o Galã da Televisão Italiana se transformava, nas palavras dos presentes, em “Farabrutto, pezzo di merda, ladro”. Como se não bastasse, a opinião pública, alimentando-se do sangue que escorria no canto da boca de alguns, em um ato covarde, fez coro à prisão do já condenado e subumano Tortora: “se alguém é preso no meio da noite, algo deve ter feito” disse a Jornalista Camilla Cederna. Aliás, se não fosse pela voz solitária, inaudita, mas de extrema importância de Enzo Biagi, que levantou a hipótese “E se Tortora fosse inocente?” os apressados censores já não tinham mais um pingo de dúvida acerca do caso.
Para além das especificidades do caso, que produz espanto ainda hoje à comunidade jurídica, as instituições responsáveis – e seus agentes, sobretudo – não foram desacreditadas, pelo contrário, foram promovidas. Por exemplo, Luigi Sansone, o Presidente do Tribunal que condenou Tortora em primeiro grau a dez anos de reclusão e 50 milhões de Liras à época, hoje é o respeitado presidente da sexta secção penal da Corte de Cassação, bem como Diego Marmo, o membro do Ministério Público, que no processo de primeiro grau, referiu-se a um dos advogados de Tortora (no momento eleito deputado radical ao Parlamento Europeu) de modo bastante espetaculoso: “Doutor Coppola, o senhor deve moderar seus termos! Lembre-se que seu cliente foi eleito com os votos da Camorra. Vocês não tem nenhum respeito pela vida humana”, acabou a carreira como Procurador Geral da República do Tribunal de Nocera Inferior.
Acusado e imediatamente preso, Enzo Tortora, considerado um dos pais fundadores da televisão italiana, foi protagonista de uma colaboração de justiça envolvendo a alta cúpula dos chefes da máfia napolitana, a Camorra. Com base nas delações de Giovanni Pandico, Giovanni Melluso e de mais de uma dezena colaboradores – dentre os quais o pintor Giuseppe Margutti, que para se autopromover, por uma jogada de marketing, declarou ter visto o apresentador vender drogas dentro da sede de uma rádio, a Antenna 3 –, Tortora foi condenado em 1983 por associação mafiosa e tráfico de drogas com base no art. 416 bis do Código Penal Italiano.
Os pentiti di giustizia, nome dado aos delatores, multiplicaram-se no caso. Com base inicial na Lei Cossiga do início dos anos 80, pensada emergencialmente para derrotar o terrorismo na Itália, seja aquele de direita como aquele de esquerda (basta lembrar o Caso Aldo Moro) e posteriormente expandida para a luta contra a delinquência de tipo mafioso, por meio da Lei 726/82, os delatores conseguiam um privilegiado tratamento processual, desde a diminuição da pena até um amplo sistema de proteção. Na verdade, todo colaborador, a qualquer título, estaria a priori beneficiado pelo sistema delatório (ver a evolução legislativa).
Aliás, desde o Código Fascista de 1930, o chamado Código Rocco, já existia a possibilidade, na tradição jurídica italiana, de se condenar alguém pelas declarações de outrem: a dita “chiamata in correità”, provocou incertezas interpretativas até hoje não sanadas. Muitos magistrados, com base nessa tradição, no início dos anos oitenta, empenhados em combater a máfia, introduziram novas formas de intervenções premiais com o intuito de fragilizar a criminalidade organizada, para além do terrorismo político.
Por conta disso, o dilema do Caso Tortora se instaurou do modo mais espataculoso, surreal e kafkaniano que se poderia imaginar. No âmbito das investigações preliminares, havia sido encontrada uma pequena agenda na casa de um camorrista, Giuseppe Puca, na qual estava escrito um nome que parecia ser aquele de Tortora, junto dele um número telefônico, que não tinha nenhuma ligação com o apresentador. Passaram-se meses até os magistrados se convencerem de que o nome escrito não era Tortora e sim Tortosa, referente a um depósito de bebidas perto de Nápoles.
Porém, uma história de centrini di seta (toalhas de crochê que se põe ao centro das mesas) foi o fio condutor para estabelecer a ligação de Tortora com a Máfia Camorrista, na verdade de um de seus chefes, Giovanni Pandico, então preso na penitenciária de Porto Azzurro. Tortora recebeu alguns centrini di seta de um detento, Domenico Barbaro, em seu programa Portobello, com a finalidade de que fossem levados à mídia e atingissem ampla divulgação. Não vendo nenhum resultado, Barbaro começa e enviar cartas ameaçadoras a Tortora – escritas pelo seu colega de sela Pandico, pois Barbaro era analfabeto –, que as responde de forma bastante seca, afirmando que encaminhará as cartas ao departamento jurídico da emissora italiana Rai. Enquanto isso, os centrini se perdem e a Rai reembolsa os detentos em 800 mil Liras.
A questão parecia estar resolvida, mas não para o chefe da Máfia Italiana “La Camorra”, Pandico, que em uma negociação com a justiça, a fim de alcançar benefícios de pena e de tratamento, explica aos magistrados que “centrini di seta” na verdade era um código para indicar um carregamento de cocaina avaliado em 80 milhões de Liras, que o apresentador, segundo ele um “camorrista ad honorem”, teria embolsado e não dividido com os demais partícipes. Esta é a primeira prova para a acusação apresentada em juízo, a qual os advogados de Tortora desmontam em um instate, apresentando toda a correspondência trocada entre Barbaro e o programa Portobello. A resposta dos magistrados é extremamente rasa: “pois trata-se de um outro Barbaro”.
Tortora acaba condenado por tráfico de drogas e associação mafiosa. Antes da sentença o apresentador vem eleito como deputado no Parlamento Europeu pelos Radicais, com 451 preferências. Ele renuncia ao cargo de Deputado, recorre ao Tribunal de Apelação e desafia o juri: “Eu sou inocente, espero de todo o coração que vocês também o sejam”. Em setembro de 1986 Tortora, finalmente, é absolvido de ambas as acusações pela Corte de Cassação Italiana.
Diante disso tudo, o mais impressionante é que Tortora foi condenado sem nem mesmo a sombra de um controle bancário, uma interceptação telefônica. Luigi Sansone assina uma sentença de duas mil páginas, em seis volumes, um exclusivamente dedicado a Tortora, com uma frase medievalesca inacreditável sob o ponto de vista do ônus da prova no Estado Democrático de Direito: “O imputado não soube nos explicar o porquê de uma conspiração contra ele”. Como se não bastasse, Diego Marmo, o representante do Ministério Público, desponta de modo kafkaniano ao dizer que Tortora “era um homem da noite, bem diferente de como parecia em Portobello”.
Houve, por parte de Tortora, um pedido de indenização contra os magistrados no valor de 100 milhões de Liras, que foi arquivado pelo Conselho da Magistratura; também foi arquivado um referendum, criado por conta do caso, sobre a responsabilidade civil dos magistrados.
Sob a base de fontes orais de criminosos profissionais, extremamente interessados nos desdobramentos dos caso, em vista dos benefícios recebidos, são expedidas 855 ordens de captura, das quais 216 são erros quanto à pessoa, sendo, portanto, 640 acusados formalmente e 120 absolvidos em primeiro grau. Em segundo grau, são 114 absolvidos de 191 acusados.
O que salta aos olhos, nesse caso, é a banalizado do instituto da delação premiada na Itália. Não há dúvidas de que os movimentos premiais foram determinados pela lógica utilitarista e, em alguma medida, vingativa, sobretudo por conta da extensão do instituto do Crime de Terrorismo para o Crime Organizado. Se por um lado, o terrorista, pentito di giustizia, vem induzido a colaborar diante da compreensão estabelecida acerca da derrota – e na maioria das vezes do equívoco – de sua estratégia de subversão política; por outro, o mafioso, vinculado à criminalidade organizada, vale-se da delação para inescrupulosamente conquistar benefícios quanto à pena e ao tratamento.
Nesse sentido, no início dos anos 80, boa parte da doutrina processual penalista apontou para o grave problema de se estender a delação premiada para os pentiti di máfia, pois, amplamente, poderia desencadear incontáveis fenômenos de delações falsas, repercutindo diretamente sobre cidadãos honestos, como de fato ocorreu. Não obstante isso, os capi di mafia, por terem acesso irrestrito a informações privilegiadas dentro da organização, receberiam prêmios, como a diminuição de pena, muito mais favoráveis do que aqueles colaboradores que, por estarem em um nível hierárquico inferior na organização, não teriam tanto a delatar aos magistrados. Aliás, outra questão levantada à época foi acerca da função da pena, pois que esta não estava condicionada, por exemplo, à periculosidade do agente, como dogmaticamente se estabelece, mas somente à verificação e à relevância das informações dadas pelos colaboradores.
Porém, o que mais se destacou no início dos anos 80 no que consente aos instrumentos premiais, processuais e investigativos destinados aos delitos de máfia foi a opção institucional de se desenhar uma espécie de ordenamento paralelo, externo à estrutura de código existente, que por si já possibilitava hipóteses de colaboração. Na verdade, a sistematização da instituto da delação premiada somente veio na década seguinte, com o advento da Lei nº 82/91 e, talvez, tenha sido esta falta de sistematização, dentre (a falta de) outras questões de cunho garantistas que levou o Estado Italiano, na ânsia de resolver as ameaças decorrentes do poder terrorista e, depois, mafioso, a condenar Enzo Tortora e cometer um dos maiores equívocos jurídicos da sua história democrática.
Quem sabe possamos conhecer o caso Tortora e repensar o que se faz no Brasil, embora tenhamos a certeza de que a maioria das pessoas que estão engajadas no combate ao crime pensam na lógica de que erros acontecem. São até esperados. A reputação de um sujeito é destruída em nome de uma causa. A história, todavia, dirá quem é quem. Esperemos.
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