Fascismo: usos e abusos
Leandro Dias*, Pragmatismo Político
É cada vez mais frequente esbarrarmos com o termo “fascista”. Como um coringa, sempre em tom pejorativo, é usado para desacreditar todo e qualquer discurso ou ação. Chamam de fascistas desde os quebra-quebras nas ruas dos Black Blocs, acusados pela esquerda acadêmica, até a truculenta atuação das polícias militares brasileiras, especialmente as do Rio de Janeiro e São Paulo. Embora sejam polos opostos do mesmo combate nas ruas, são taxados pelo mesmo adjetivo. O termo ainda aparece em usos menos ortodoxos, como quando disso acusam a Rede Globo ou quando Collor acusou o Procurador Janot de “fascista”.
É um dos palavrões favoritos de parte da esquerda (mas também da direita), vem sendo utilizado de maneira tão frequente e banal, quer na imprensa, quer nas mídias sociais, que o termo ameaça perigosamente perder o seu sentido original, sua dimensão histórica e política. Funciona como um reductio ad Hitlerum que finaliza o debate dizendo que um “os nazistas também fizeram isso, logo seu argumento é nazista e, portanto, inválido”. A Lei de Godwin também explica: “À medida que uma discussão cresce a probabilidade de surgir uma comparação com os nazistas aproxima-se de 100%”. Tudo que se identifica como ruim, violento ou arbitrário na vida social e política alguém, de alguma corrente ideológica, irá classificar como fascista.
Esse exercício nos leva a uma óbvia conclusão semântica: quando um termo serve para descrever qualquer coisa, ele não serve para nada. E o pior, leva crer que algo realmente fascista pode estar ocorrendo ou se constituir uma prática cotidiana em nossas vidas e, dada a banalidade do termo, se quer a reconhecemos como tal, pois se “tudo é fascismo, nada é fascismo”. Eis que ficar claro o objetivo desta reflexão: tentar entender o que é/foi realmente o fascismo, compreender qual seu real perigo e buscar o porquê de ainda ser importante estudá-lo.
Destarte, o fascismo pode ser entendido como uma tentativa de modernizar o Antigo Regime na Europa. Quando as revoluções liberais burguesas e constitucionalistas do século XIX derrubaram de vez o até então inquestionável “poder divino dos reis” enquanto ideologia de Estado, este ficou destituído de sua “sacralidade”, da mística associada à figura do Rei e de uma Igreja que o legitimava. Numa luta que uniu liberais burgueses e socialistas, derrubaram-se os “donos anteriores do poder” – a monarquia de sangue, a nobreza (especialmente a fundiária) e a aristocracia estatal -, e surgiu nova era constitucional, pondo fim ao governo de privilégios dos nobres e substituindo o súdito pelo cidadão. Foi um salto qualitativo enorme.
Porém, como “tradição democrática e constitucionalista” não pode ser criada por decreto, em algumas sociedades de Antigo Regime tardio (Itália, Espanha, Portugal, Áustria, Alemanha, Romenia e Hungria e, em menor grau, o Brasil), nas quais instituições arcaicas e tradicionais estruturas de poder perdiam a sua razão de existir, o vácuo político e social deixado pela ausência do poder ideológico deste Estado absolutista foi terreno fértil para o protofascismo e o fascismo.
O fascista procurava dar significado a uma sociedade à deriva, em crise política, econômica e cultural, num contexto de advento da sociedade de massa do século XX, em que a ideia recém-estabelecida de um governo constitucional, de sufrágio universal e de direitos estendidos era algo inédito e, portanto, dissonante da cultura típica do pragmático “homem do Antigo Regime”: “manda quem pode, obedece quem tem juízo”. Assim, foi em países onde as revoluções liberais e constitucionais fracassaram ou foram parciais que o fascismo veio a triunfar como ideologia de massa. Thomas Mann coloca em seu livro:
[Os fascistas] invocavam um objetivo moral mais elevado, transcendendo o conflito de classes e capaz de “ressacralizar” uma sociedade moderna que se tornara materialista e decadente. Identificavam uma “crise civilizatória” abarcando o governo, a moralidade, a ciência, a ciência social, as artes e o “estilo”. Denunciavam seus inimigos em termos moralistas e altamente emocionais. Os socialistas traziam a “barbárie asiática”, os liberais eram “decadentes” e “corruptos”. A ciência era “materialista”. Uma cultura “degenerada” e “envelhecida” precisava ser remodelada e rejuvenescida. (Mann, p. 113-114)
Podemos então identificar o fascismo em alguns fenômenos mais ou menos bem definidos, embora heterogêneos em suas manifestações pelo mundo:
Síndrome da Era de Ouro: Trata-se da ideia de que o presente é decadente e degenerado, que alguma época do passado representa o que há de perfeito e nesse tempo a sociedade estava “no caminho certo” e todos “sabiam o seu lugar”. O fascista tem uma visão profundamente idealizada do passado – porém, em geral, um passado que jamais foi puro e “imaculado” como prega. É mais uma fantasia romântica que busca resignificar o passado para dar sentido à situação de crise que vive no presente.
Os nazistas reclamavam a glória do “Reich” alemão, em referência tanto ao Sacro Império Germânico (um quebra-cabeça multicultural que dominou a Europa central por 1000 anos) e ao 2º Reich, derrotado na 1ª Grande Guerra. Mussolini invocava o Império Romano, copiava seus símbolos e vestimentas, alimentava também a ideia de uma Itália grande com colônias tal como as potências europeias. Na Espanha, os falangistas de Francisco Franco exaltavam tanto os aspectos do império espanhol (queriam a União Ibérica de volta, por exemplo) quanto um passado visigótico remoto e totalmente anacrônico, proclamando ódio mortal à República dos liberais, anarquistas e socialistas nos anos 1930. Em Portugal, o “clérico-fascismo”, alinhava a doutrina social da igreja com o corporativismo e pretendia restaurar o império colonial português e reacender os elos entre a Igreja Católica e o Estado, como que restaurando a grande Portugal Ultramar em nome de “Deus, Pátria e Família”, lema que roubaram dos integralistas lusitanos.
A mácula do “Outro”: O fascista escolhe um bode expiatório como responsável pela degeneração que alega existir no presente, um “Outro” que corrompeu a sua anteriormente ideal sociedade e levou esta à decadência. No fundo, qualquer grupo social poderia representar este “Outro”: para o nazista, era o judeu e o comunista (“conspiradores em conluio para destruir o seu país”, o “judeu-bolchevismo”); para o nacionalismo italiano, eram os “bolchevistas” com sua importação de “tradições asiáticas” (russas); em quase toda Europa o cigano, “sem solo”, “internacional”, era alvo fácil (foram os primeiros a perecer nos campos de extermínio nazistas ao lado dos comunistas); o negro e o imigrante italiano já foram alvos para o protofascismo da Klu Klux Klan norte-americana; ou, num caso mais próximo nosso, o nordestino já foi o “Outro” para neofascistas paulistanos (agora os haitianos e comunistas/petistas parecem preencher o requisito). (A xenofobia não é elemento raro no caldo fascista; embora culpabilizar um elemento externo pelo que se considera de decadente em sua idealizada civilização não seja exclusividade do pensamento fascista, definitivamente um traço típico deste.)
A ideia que permeia essa rejeição absoluta do Outro é o darwinismo social ligado a um nacionalismo identitário radical. Há um senso de superioridade racial pseudocientífico muito popular no final do século XIX, a partir de uma leitura de Herbert Spencer e da compreensão um tanto equivocada da obra A Origem das Espécies de Charles Darwin, que substituiu o conceito spenceriano de “sobrevivência do mais forte” pelo de “sobrevivência do mais adaptado” na “seleção natural” de Darwin e aplicou-o aos estudos sociais, a serviço de justificar a existência de uma suposta raça superior que tem o “direito natural de dominar” (Hitler, 2004).
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Paramilitarismo, hierarquia e violência: o caminho necessário para a “restauração” da Era de Ouro e o combate ao elemento “cancerígeno” que “destruiu” e degenerou esta sociedade, para o fascista, é a profunda hierarquização da sociedade, em moldes militares. Os fascistas “clássicos” emularam a estrutura militar no interior de suas organizações e, uma vez no poder, expandiram essa lógica para a própria organização do Estado e da vida social. Não por acaso, seus pioneiros na Itália, Alemanha e Hungria, por exemplo, foram ligados a forças militares que lutaram na 1ª Grande Guerra e tinham a “camaradagem da trincheira”, a vida social dura que levaram durante os anos de guerra, como ideia de “socialismo” e integração social através da vida militar. Peter Gay escreve:
A luta de classes é tolice, e a Revolução Alemã, produto da teoria, é tolice também. O instinto alemão, que, arraigado no sangue é verídico, vê as coisas diferente: “O poder pertence a todos. O indivíduo o serve. O todo é soberano. O rei é apenas o primeiro servo de seu estado. (Frederico, o Grande) -. Todos têm o seu lugar. Existem comandos e obediência. Assim, desde o século XVIII, vinha sendo o socialismo autoritário – autoritativer – em essência antiliberal e antidemocrático – isto é, se pensarmos no liberalismo inglês ou na democracia francesa”. O alemão verdadeiro deve reconhecer as necessidades do momento e, submisso a elas, deve transformar o socialismo do século XVIII em socialismo autoritário do século XX. “Juntos, prussianos e socialistas erguem-se contra o inglês dentro de nós contra a visão do mundo que penetrou em toda a existência de nosso povo, paralisou-o, e roubou-lhe a alma”. A única salvação está no “socialismo prussiano”; aí estão a busca […] pela comunidade e a liderança, na linguagem dos acampamentos dos oficiais. (Gay, 1978, p. 103 – aspas no original).
A hierarquização social e a vida militar estão presentes nos principais movimentos fascistas. Os Camisas-Pretas do Partido Nacional Fascista de Mussolini faziam clara alusão à guarda pretoriana da Roma Antiga e o partido emulava inclusive a divisão regimental do exército romano! Os falangistas espanhóis, base militar do governo Franco, não escolheram o nome “Falange” à toa. Hitler elevou a hierarquização ao extremo com o fuhrerprinzip (princípio do líder), organizando a administração estatal de maneira piramidal de modo que cada “pequeno fuhrer” fosse um líder absolutista para todos abaixo dele e um fiel servo de todos que estavam acima, enfatizando o que Umberto Eco colocou como “desobediência é traição” (Eco, 1995, p. 6).
Se o fim era “restaurar a era de ouro” e a “hierarquia militar” era o princípio dos fascistas, a violência era o meio. A exaltação à violência e à guerra era fundamental para a ideologia fascista. Mussolini escreve:
Só a guerra leva toda a energia humana a sua tensão máxima e confere o selo de nobreza aos povos que têm coragem de enfrenta-la. […] O orgulhoso lema do squadrista, Me ne frego [“Não dou a mínima”…], escrito nas bandagens dos feridos, é um ato filosófico […] a educação para o combate, a aceitação dos riscos envolvidos no combate e um novo modo de vida para a Itália […] santidade e heroísmo […] sem a influência de qualquer motivação econômica. (Mussolini, Doutrina do Fascismo, pg 7).
Autoritarismo e violência não são características exclusivas do fascismo. No geral, quase todos os governos autoritários são violentos, pois um dos métodos mais usados para legitimar uma autoridade é o uso da violência, seja ela física ou simbólica. No entanto, a apologia à guerra e à força, expressa no militarismo dos fascistas, serve como reafirmação da “violência como solução de problemas” e como um catalizador da “seleção natural” de Spencer, retroalimentando a ideia darwinista social de que “só os fortes sobrevivem”. E, exatamente por serem os mais fortes, os fascistas tem o direito natural de governar.
Rejeição ao Iluminismo e ao Estado Moderno: O pensamento fascista é avesso à ideia do Império da Lei, base da democracia moderna e do constitucionalismo, pilar do iluminismo contra o “poder discricionário dos reis e nobres”, típico do Antigo Regime. Para o fascista, os laços pessoais e a personalidade do líder são mais importantes que a lei. O führerprinzip”, ou “princípio do líder”, exemplificado na frase nazista “O fuhrer está sempre certo”, semelhante ao slogan italiano Il Duce ha sempre ragione, (“O Duce tem sempre razão”). Rejeitando as leis escritas, o princípio dota o comandante da nação e do partido de uma infalibilidade quase religiosa, como se modernizasse o papel do Rei absolutista, numa personificação ainda mais radical do “l’état c’est moi” (“O Estado sou Eu”) do absolutismo clássico. Rudolf Hess, importante liderança nazista, coloca em discurso em 1934: É com orgulho que observamos que um homem é mantido acima de qualquer crítica – o Fuhrer. A razão todo mundo sabe e sente: ele está sempre certo e sempre estará. O Nacional Socialismo de todos nós é ancorado na lealdade acrítica, na devoção ao Fuhrer que não pergunta por sua razão individual, nem o tácito desempenho de seus desígnios. Nós cremos que o Fuhrer está cumprindo uma missão divina para o destino alemão. Essa crença é indisputável! (Hess, 1934, Discurso em Colônia, apud: A teachers guide to Holocaust)
Não foi por acaso que o fascismo buscou na ideologia cristã as bases sociais para seu movimento, emulando a mística religiosa, o apelo emocional e o culto à personalidade e à infalibilidade de seus líderes. Os comícios fascistas eram carregados de alegorias visuais e ritualísticas, que serviam para dotar de misticismo, fé e religiosidade as práticas seculares do Estado, ressacralizando-o. Como numa pregação fervorosa de um pastor, o fascista procurava criar uma “legitimidade tradicional” que, apesar de totalmente nova, parecia antiga e “familiar” à população. Assim, o fascismo clássico se assemelha a uma “religião secular” e “cívica”, que substitui a divindade pela Nação, como aponta Mann:
“O fascismo surgiu em países nos quais as Igrejas haviam desempenhado um importante papel, agora em declínio, nas relações de poder político, o que foi explorado pelos fascistas com a transferência de parte desse sentido do sagrado de Deus para o Estado-nação” (Mann, p. 149).
Corporativismo, sindicalismo e Estado: Em termos econômicos e sociais, o fascismo buscou solucionar a questão social do trabalho, pela transcendência do conflito de classes através de um Estado corporativo. Sob o argumento de que a luta de classes dividia a nação e criava “inimigos entre irmãos”, o fascismo buscava superá-la através do sistema nacionalista de corporações, atrelando empresas privadas e sindicatos ao Estado, formando uma versão moderna das “corporações de ofício” renascentistas. Essa negação da luta de classes foi um de seus viscerais conflitos com os marxistas e uma das raízes do radical anticomunismo do movimento.
Em troca do apaziguamento dos sindicatos e do esvaziamento dos movimentos comunistas revolucionários, o empresariado deu apoio político e financiamento à aventura fascista em seu país. Essa relação de mútuo benefício foi muito clara: apenas um ano depois de chegar ao poder, Mussolini privatizou a seguridade social, quebrou o monopólio estatal da emergente telefonia e passou, por exemplo, a fabricação de fósforos para mãos privadas de apoiadores do partido (Bel, 2009). Qualquer semelhança com o mundo atual não é mera coincidência: os fascistas foram campeões no fatiamento do poder público entre seus aliados privados, são os avós da “corporatocracia”.
Fosse através de grandes obras públicas tocadas por empresas privadas, ou das demandas crescentes da indústria militar (produção de uniformes, botas, pneus, etc.), nos setores onde o capital privado era fraco o Estado entrava com suas próprias recém-criadas estatais (caso da Volkswagen alemã, por exemplo) ou injetando imensas quantidades de dinheiro na indústria privada (caso da Siemens e da Krupp, por exemplo). Os empresários desfrutavam da proteção, da expansão do mercado (inclusive com trabalho escravo, caso da Krupp) e do lucro fácil dos contratos públicos e, em troca, apoiavam econômica e politicamente o governo.
Mesmo que alguns não apoiassem sinceramente o regime e fossem apenas oportunistas, sua contribuição foi fundamental tanto para sustenta-lo quanto para sustentarem suas próprias empresas numa crise sem precedente (especialmente pós-1929). Mussolini esclareceu em seu discurso ao Conselho Corporativista Italiano em 1933:
“A iniciativa capitalista quando surgem dificuldades, se joga como peso morto nos braços do Estado. É quando a intervenção estatal começa e se torna mais necessária. É quando aqueles que ignoraram o Estado, agora o procuram ansiosamente”. (Mussolini, IN: A Primer of Italian Fascism, p. 155)
A soma da “solução estatal para a crise” com a repressão incansável a comunistas, conseguiu até apoios inusitados e oportunistas de anti-estatistas ferrenhos como Ludwig von Mises que, apesar de reconhecer o risco de guerra que o fascismo trazia, escreveu positivamente sobre o movimento italiano e austríaco e ainda ficou como conselheiro econômico do líder fascista austríaco Dollfuss de 1932 até sua morte em 34 (Hoppe, 1997), permanecendo como ativo membro da Câmara de Comércio do governo austro-fascista até 1938, quando fugiu pouco antes da anexação nazista (Hullsmann, pg 723). Mises escreve:
“Não pode ser negado que o Fascismo e movimentos similares que miram no estabelecimento de ditaduras estão cheios das melhores intenções e que suas intervenções, no momento, salvaram a civilização europeia. O mérito que o Fascismo ganhou por isso viverá eternamente na história. Mas apesar de sua política ter trazido salvação para o momento, não é do tipo que pode trazer sucesso contínuo. Fascismo é uma mudança de emergência. Ver como algo mais que isso, seria um erro fatal.” (L. von Mises, Liberalism, 1985[1927], Cap. 1, p. 47)
Se até mesmo intelectuais liberais reconheciam algumas qualidades do fascismo para salvaguardar o capitalismo, os empresários – muito mais pragmáticos – estavam facilmente à disposição para serem salvos pelo Estado e tinham tudo a ganhar com essa associação. Os sindicatos por sua vez, precisaram ser flagrantemente traídos e realinhados (no caso italiano) ou violentamente enquadrados (no caso alemão ou espanhol), para então ganharem importância no desenvolvimento do regime fascista.
É importante ressaltar, porém, que o papel do sindicalismo foi fundamental na construção do fascismo.
O sindicalismo radical italiano, de onde vieram Mussolini, Gentile e outras figuras importantes do cenário local, não simpatizava com a ideia do partido e da primazia do Estado que os marxistas defendiam. Acreditava que os sindicatos fossem capazes de gerir a atividade produtiva após a sua revolução numa espécie de “Estado-Sindical” descentralizado, como numa rede de sindicatos interligados e autônomos (o que os aproximava do anarco-sindicalismo como o conhecemos).
Mesmo divergindo neste ponto, por defender, ainda em 1918, jornada de trabalhos menores, melhores condições de trabalho e emprego, o sindicalismo protofascista italiano “roubou” muitos simpatizantes dos sindicatos socialistas e comunistas. Ao chegar ao poder, no entanto, Mussolini deixou de lado seu sindicalismo anterior e se aliou aos capitalistas nacionais, à Igreja e à aristocracia, domesticando os sindicatos que o apoiaram desde o início como condição para obter o apoio dos empresários, e impôs um Estado integral de cima para baixo, anulando qualquer possibilidade da “rede de sindicatos autônoma” de baixo para cima como seus primeiros entusiastas queriam.
O caso alemão foi um pouco diferente – e mais brutal: os antigos sindicatos “infestados de comunistas” foram todos extintos e substituídos por um único sindicato central controlado inteiramente pelo Estado; suas antigas lideranças sindicais, majoritariamente comunistas e socialistas, foram levadas para o campo de concentração em Dachau, ainda 1933 (Bachmann, 2003). O novo sindicato-estatal então, jurou absoluta lealdade ao fuhrer, abdicando tanto de seu clamor por greves e “revoluções” (anticomunismo) quanto de liberdades individuais mais gerais e de assembleias (anti-liberalismo). Em troca exigia expansão do emprego, melhores condições de trabalho e salário. É uma lição que temos que tirar da história: a função histórica mais evidente dos sindicatos sempre foi a de negociar coletivamente com os patrões e não de “superá-los”. Não é uma organização inerentemente revolucionária: quando suas metas são atingidas, seja por cooptação – ou extermínio – de lideranças ou pela obtenção de melhorias reais nas condições salariais e de trabalho, os sindicatos perdem todo seu fervor aparentemente anticapitalista e ficam dóceis, prontos a reafirmar o poder vigente.
Do ponto de vista ideológico, o sindicalismo foi fundamental para dar o caráter “integral” e “social” dos movimentos fascistas, dando as bases reais da concepção de concilio de classes e de harmonia entre capital e trabalho em prol da nação que acreditavam. Servia para estimular atividades sociais do partido-governo, utilizando as sedes sindicais como centros comunitários, usando seus quadros como propagandistas da ideologia do Estado, exaltando os valores nacionais, promovendo jogos e confraternizações entre trabalhadores e membros do partido, enfim, para promover a integração social que o fascismo se dizia defensor. Sem o sindicalismo o fascismo não seria um movimento de massas, seria apenas outro autoritarismo violento.
Conclusão
Várias destas características citadas, isoladamente, não são propriamente “fascistas”. São encontradas nos mais variados movimentos políticos, à direita e à esquerda: autoritarismo, hierarquia e paramilitarismo, sindicalismo e socialismo autoritário e militarizado, romantismo e idealismo, religiosidade e misticismo, corporativismo estatal, violência e rejeição a algum Outro social (racismo e xenofobia) e, não menos importante, anticomunismo visceral e anti-parlamentarismo liberal como duas faces da mesma moeda anti-iluminista. No entanto, a soma destas características, articuladas numa visão de mundo mais ou menos coesa, buscando responder a aspirações populares de suas respectivas sociedades, formam um escopo ideológico fundamentalmente fascista.
Assim, não é preciso ligar muitos pontos para entender porque o Brasil teve um movimento fascista tão forte nos anos 1930 e que nos deixou resquícios até hoje. Somos uma nação sem revolução constitucionalista, parcialmente republicana, e nosso Antigo Regime foi apenas parcialmente superado. Os laços de pessoalidade são fundamentais nas relações institucionais, muito mais do que as leis – que costumam “não pegar” e, a cada mudança de dirigentes e setores que dominam o Estado, o arcabouço jurídico-legal pode mudar significativamente, favorecendo este ou aquele núcleo de poder. O poder discricionário dos indivíduos que controlam o Estado é absurdo, já que a lei varia conforme os núcleos de poder vigentes. Invariavelmente caímos na velha ideia de que “aos amigos tudo, aos inimigos: a lei” e assim vivenciamos uma espécie de “fuhrerprinzip dos trópicos”: cada pequena autoridade é um líder absolutista em seu feudo de poder.
A aristocracia fundiária, herdeira da nobreza, ainda tem imenso poder no nosso país e, embora represente ínfima parcela da população, concentra desproporcional quantidade de propriedade. E as relações mais do que promíscuas entre poder público e privado – a corporatocracia seguidamente denunciada pelos “radicais de sempre” e que as operações Lava Jato e Zelotes vêm apenas confirmar -, estão firme em nossa sociedade. E, curiosamente, no governo PT-PMDB atual, os sindicatos foram mais do que apaziguados e cooptados para trabalhar “juntos em grandes projetos nacionais” e, ainda que de fato tivesse tido positivos resultados para os trabalhadores, é inegável que foi muito mais lucrativo para as grandes empresas que se associaram ao Estado.
Por sua vez a aristocracia estatal ainda se comporta como uma nobreza, se achando a dona “natural” do Estado e no direito de o aparelhar com os seus (como no caso recente de nepotismo do filho do Eduardo Campos, e na indicação da filha do juiz do STF Luiz Fux). O patrimonialismo tão evidente nos casos da Petrobrás, mas também nos desvios de merendas em SP e de medicamentos no RJ, é mero reflexo de uma aristocracia que, na prática, não apenas se sente como tal, mas é de fato dona do Estado.
Somos também uma sociedade inerentemente violenta. Nós nos matamos e nos matamos muito. No estado de brutalização em que nos encontramos, somos capazes de “tomar uma cervejinha” com um cadáver a dez metros de distância; ou de tentar seguidamente justificar a morte de pobres nas periferias associando-as ao tráfico ou qualquer crime, ou a assumindo como efeito colateral de uma guerra justa. De tão natural que está a pena de morte aqui, a mera suspeita de culpa por algum crime é justificativa suficiente para matar o sujeito, ou linchá-lo. Nossas polícias matam e morrem como nenhuma outra, desnecessário até dar exemplos.
Mas o que nos separa realmente do fascismo são diferenças qualitativas fundamentais.
Não há uma preocupação em sacralizar e mistificar o Estado. Nossas instituições se assemelham muito mais a uma “administração colonial” do que a um Estado fascista e não há discurso autoritário querendo transformá-la em algo além. Não há porque mistificá-las e dotá-las de uma sacralidade religiosa ou dar um “grande propósito” a este Estado. Não precisamos de um Grande Líder para modernizar o nosso Antigo Regime perdido, pois ele ainda está bem vivo numa espécie de absolutismo parlamentar, em que as oligarquias político-econômicas mais proeminentes negociam entre elas como irão dominar por completo a sociedade. Como dizia o ditado: “nada mais conservador do que um liberal no poder”, isto é, trocam-se as oligarquias, mas o modelo de governo permanece, seu único propósito é o mesmo de um Estado colonial: manter uma lógica econômica extrativista e rentista através de uma plutocracia econômica dominando o governo, “mandando porque pode mandar” numa população submissa e deseducada e sem propósitos maiores, que “obedece porque tem juízo”.
Nossa violência é desorganizada e não pretende estruturar militarmente a sociedade. O objetivo da violência do Estado é manter vastos contingentes populacionais sob controle e medo, seja pela sua presença: a truculência da polícia, a intransigência e discricionariedade da justiça; ou ainda seja pela sua ausência: a perpétua e proposital negligência das periferias, deixando-a sob domínio de violentos Estados paralelos controlados por traficantes ou milícias.
Nosso racismo não é o pseudocientífico de leituras de Spencer, justificado por elaboradas taxonomias de raças humanas e superioridades, baseadas em estapafúrdias análises racistas da história social. Nosso racismo é de base “tradicional” e vem do “direito natural de mandar” do branco europeu pré-iluminista, fundamentado em tradições do colonialismo europeu. O objetivo não é explicitar que essa ou aquela raça é superior por causa desta ou daquela “razão científica”, mas apenas manter a hierarquia social “como sempre foi”, com os negros e mestiços “em seu devido lugar”.
Por fim, o que nos separa de um fascismo de verdade é muito mais a falta de um projeto de Estado coeso (ainda que totalitário) do que qualquer outra coisa. Temos várias características que foram tipicamente fascistas; no entanto, para a sociedade brasileira ser realmente fascista requereria um tanto de organização, um projeto integral e um punhado de objetivos nacionalistas grandiosos, para além do nosso já conhecido autoritarismo, da corporatocracia, da violência e do racismo. No entanto, nossas oligarquias dirigentes não têm projeto e nem objetivos nacionalistas grandiosos, portanto, não precisam de organização integral, disciplina ou militarização da sociedade para alcança-los. Estão contentes com o domínio extrativista-colonial que conseguiram manter mais ou menos intactos por séculos, mesmo com a parcial modernização da economia.
Se nossa sociedade parece ter traços fascistas é muito mais pelo fato de o próprio fascismo ter tentado resgatar e modernizar aspectos do Antigo Regime que se perderam, mas que nós praticamente nunca superamos, do que por uma particularidade ou projeto autoritário brasileiro dos últimos anos. Teríamos de superar nosso arcaico Ancien Regime de vez para então levarmos a sério devaneios de tentar resgatá-lo.
*Leandro Dias é formado em História pela UFF e editor do blog Rio Revolta. Escreve mensalmente para Pragmatismo Politico.
Referências Bibliográficas
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