O mundo das ciências evolutivas está em polvorosa desde que, na última semana, a renomada revista científica PLOS One publicou um artigo que menciona três vezes a "criação divina"
O mundo das ciências evolutivas está em polvorosa desde a noite da última quarta-feira (2).
A renomada revista científica PLOS One publicou o artigo Biomechanical Characteristics of Hand Coordination in Grasping Activities of Daily Living, de autoria de um grupo de pesquisadores chineses liderados por Ming-Jin Liu. O artigo é do escopo da Biomecânica e tem como objetivo investigar as coordenações motoras da mão humana no ato de agarrar objetos. Até então, tudo parece normal, a não ser por três citações que mencionam “O Criador (The Creator)” como provável responsável pela complexidade morfológica desses membros.
Apesar de publicado em janeiro, apenas essa semana o artigo foi amplamente divulgado. O site da revista então começou a ser alvo de críticas pesadas (e extremamente justas), as quais também ecoaram nas redes sociais. Isso porque, de acordo com a Ciência, o Criacionismo é uma vertente pseudocientífica, de base religiosa, que procura forjar ou manipular evidências para contradizer, sem sucesso, a Teoria da Evolução. Acreditar no Criacionismo (ou no seu filho mais recente, o Design Inteligente), é como acreditar que a Terra é plana.
É claro que sites criacionistas começaram a reproduzir, em tom de vitória, o “sucesso” de suas “confirmações”. Felizmente, o que veio a seguir foi uma cascata de eventos vergonhosos para a revista e, consequentemente, para os leitores que compraram essa ideia.
Para começar, a PLOS One emitiu o comunicado pedindo desculpas pelo uso da palavra “Creator”, mencionada três vezes, afirmando que essa passou despercebida pelo corpo editorial e que vai averiguar os pormenores da submissão.
Diversos editores do periódico criticaram o artigo e exigiram a retratação e anulação do manuscrito, além da deposição do editor responsável pela sua publicação, o também chinês Renzhi Han. Houve quem inclusive ameaçasse pedir demissão do cargo, como o matemático espanhol Dr. Angél Sanchez, caso a revista não tome uma postura enérgica. Autores também se manifestaram ameaçando retirar publicações submetidas e nunca mais considerar a Plos One como meio de veiculação de suas pesquisas. (Clique aqui para conferir os comentários).
Para a surpresa de muitos, Ming-Jin Liu respondeu as críticas na seção de comentários da revista e alegou que o uso da palavra “Creator” foi advindo de um erro de interpretação por parte dele e dos demais autores. Por não ter o inglês como língua nativa, ele conta que usou a palavra de modo inadequado e que inclusive havia corrigido na versão final de revisão para a palavra “Nature” (relacionando-a como resultado da Evolução). Ele ainda afirma categoricamente que o artigo não tem qualquer relação com Criacionismo. Entretanto, fica a dúvida sobre a veracidade dessa desculpa. Não consigo imaginar como “Creator´s invention” pode ter sido fruto de erro de interpretação ou tradução. Estranho também terem escolhido C maiúsculo, algo que claramente remete ao Deus cristão. Mais estranho ainda é que o restante do artigo está textualmente bem escrito, o que contraria essa alegada não-familiaridade com o idioma.
Como se não bastasse, o artigo, sob o ponto de vista da discussão evolutiva, é de qualidade bastante duvidosa, mesmo considerando que os autores tenham apenas se enganado quanto à menção divina. O antropólogo evolucionista Dr. Zach Throckmorton, no site da PLOS One, afirma que o artigo não traz absolutamente nada de novo e sim conclusões e devaneios sobre algo já muito bem estabelecido pela Ciência. Os autores ainda usam termos como “superiores” e “bárbaros” para separar primatas humanos de não humanos, expressões consideradas como arcaicas e Pré-Darwinianas.
A polêmica expôs uma grande fragilidade da revista. A maioria dos periódicos científicos possui um corpo editorial reduzido que avalia previamente se o artigo possui robustez suficiente antes de ser encaminhado para dois revisores. Todavia, de acordo com o blog do Dr. Jerry Cole, professor da Universidade de Chicago, a PLOS geralmente suprime essa fase inicial e dá o veredito somente após a revisão dos pares. Com um corpo editorial numeroso, torna-se difícil o controle sobre esse tipo de situação. Outra crítica que recai sobre o jornal e que gera forte desconfiança é o curto tempo entre a submissão (Outubro de 2015), aceitação (Dezembro de 2015) e a publicação do manuscrito (Janeiro de 2016). Para uma revista de impacto tão alto, um artigo que se propõe a esse tipo de afirmação dificilmente é publicado em tão pouco tempo. Houve mesmo quem duvidasse de que o artigo tenha sido de fato lido por revisores.
Importante ressaltar que, para publicar na PLOS One, os autores devem desembolsar uma quantia de US$ 1.495,00 para que o artigo tenha acesso gratuito a todos os leitores. Essa prática já vem sendo amplamente discutida no circuito acadêmico como potencialmente abusiva e esse tipo de ocorrência, como aponta um dos Editores da revista, Dr. Ricard Solé, traz um sério prejuízo para a credibilidade do periódico.
Tantas falhas graves sendo trituradas por uma chuva de críticas obrigou a revista a retirar a publicação. Sem dar muitos detalhes, o corpo editorial pede desculpas e afirma que houve etapas no processo de avaliação que não foram cumpridas corretamente e que em breve soltará um artigo de retratação.
Que esse caso sirva de exemplo para fomentar a discussão sobre os processos de avaliação das revistas científicas e principalmente para enrijecer o cerco contra toda e qualquer tipo de pseudociência.
*Hugo Fernandes-Ferreira é biólogo, doutor em zoologia, e professor universitário, Brasil Post
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