As lições do passado e do presente ao PT
É possível chegar ao poder e nele se manter sem fazer alianças escusas, reformas paliativas e flerte com as propostas da direita? Após o turbulento processo de impeachment, independentemente de seu resultado, o PT precisa revisitar o seu passado para rever o seu presente
Cássio Garcia Ribeiro* e Mário Tiengo*, Pragmatismo Político
Revisitando a história do Brasil temos algumas pistas para compreender o cenário político atual. Getúlio Vargas, apesar de ter sido uma figura controversa que recebeu a alcunha de “pai dos pobres e mãe dos ricos”, inegavelmente foi um dos maiores estadistas que o Brasil já teve, tendo sido responsável pela criação da CLT e de empresas estatais importantes como a Eletrobras, a CSN e a Petrobras.
Não obstante tal constatação, sua trajetória à frente da Presidência sofreu oposição ferrenha por parte de alguns setores da sociedade, sobretudo durante seu último mandato, quando foi eleito pela maioria dos brasileiros com direito a voto. A carta-testamento evidencia tal oposição.
Mais à frente, após a renúncia de Jânio Quadros, Jango assume em seu lugar, com certa dificuldade, pois seu nome não agradava os setores mais conservadores da sociedade – os mesmos que, aliás, já haviam criado dificuldades para Juscelino Kubitschek, tentando envolve-lo em escândalos de corrupção. No governo Goulart foi aprovada a Lei 4.131/1962, que restringia “a remessa de lucros do capital estrangeiro”.
Um pouco antes de ser derrubado pelo golpe militar, em um comício na Central do Brasil, divulgou o decreto da Supra, submetendo à desapropriação, para fins de reforma agrária, “propriedades rurais superiores a quinhentos hectares, marginais às estradas federais numa faixa de dez quilômetros”.
Suas reformas de base, que poderiam ter dado um novo rumo ao Brasil, ao conciliar o desenvolvimento com a correção de distorções sociais históricas, também não resistiram ao levante conservador. Alguns dias após o comício de Jango na Central do Brasil ocorreu a “Marcha da Família com Deus pela Liberdade”, ovacionada pelos meios de comunicação da época, capitaneados pelas organizações Globo – com a exceção da Última Hora, de Samuel Wainer.
Os organizadores da Marcha distribuíram o “Manifesto ao povo do Brasil”, que, em linhas gerais, apontava para uma suposta ameaça comunista e reivindicava o afastamento de Goulart da presidência. No auge da Guerra Fria e no calor da Revolução Cubana, era o aval que parte da sociedade civil dava ao golpe militar.
Nos fins da década de 1970, ainda em meio à ditadura militar, o PT surge como resultado da união de trabalhadores, intelectuais e organizações eclesiásticas. Coloca-se na história e conquista espaço como um partido comprometido com a defesa da classe trabalhadora e empunhando bandeiras progressistas.
Após alguns reveses nas eleições presidenciais, a alta cúpula do partido coordena uma guinada pragmática, de modo a tornar seu discurso mais palatável a alguns segmentos da sociedade, os quais historicamente torceram o nariz às propostas petistas. Tal guinada é simbolizada pela Carta aos brasileiros, de 2002. De Lula a Dilma, já se vão mais de 13 anos.
Considerando o viés progressista do partido em seu nascedouro, são legítimas as críticas apresentadas por seus simpatizantes e eleitores mais fiéis pós-eleição de Lula.
O descontentamento perpassa a repetição de vícios do sistema partidário brasileiro (o qual foi incapaz de alterar, mesmo sabendo dos riscos que corria), o conservadorismo da política macroeconômica e a falta de coragem para incorporar na agenda temas que desagradam a casa grande, como a criação de um imposto sobre grandes fortunas, a alteração da política tributária brasileira com vistas a torná-la mais progressiva, a regulação da imprensa, a reforma agrária etc.
Lula colocou em prática uma política conciliatória e, em alguma medida, pode-se dizer que sua estratégia foi exitosa. Cabe lembrar que seu vice era um representante da elite industrial brasileira. Todavia, sabemos que a casa grande repele sua figura e o que ela simboliza – isto é, a ascensão dos mais pobres, o que podemos ver pelo repúdio às classes populares frequentando aeroportos, universidades, shoppings, comprando carros etc.
O “Lulinha paz e amor” conciliador de classes é “pago” com investigações e mais investigações, condução coercitiva e presunção de culpa – uma nova figura penal que não encontramos em nossa legislação.
Dilma, por sua vez, em seu segundo mandato, resolveu pedir “bença” ao mercado, ao se engajar em uma guerra santa pelo ajuste fiscal, incorporando o discurso de seus opositores. Esforço em vão que a distanciou de sua base eleitoral.
Apesar disso, não é aceita no clube, ao contrário, é tratada com uma má vontade acachapante por parte da grande imprensa e, em seu segundo mandato, o país perdeu o grau de investimento mesmo seguindo à risca a cartilha ortodoxa. Portanto, apesar de todas as concessões realizadas atualmente (e durante toda a era PT), o partido chegou ao limite de seus próprios erros, vide o risco de impeachment, os achincalhes e a ameaça de receber em definitivo a pecha de partido corrupto e maldito, comprometendo seriamente a viabilidade eleitoral futura de seus quadros.
Cabe aqui a pergunta: por que essa perseguição ao PT, Lula e Dilma, se o partido amenizou seu discurso e calibrou sua agenda para não desagradar as elites políticas e econômicas do país? Podemos sugerir uma resposta: a luta de classes posta à mesa está intrinsecamente ligada aos “trabalhadores” que o PT carrega em seu nome.
Para além disso, a era PT deixou importantes legados à classe trabalhadora, tais como: a valorização do salário mínimo; as políticas de redistribuição de riquezas; a inclusão das famílias pobres no consumo; a criação de universidades e programas para acesso a elas; o financiamento habitacional; a geração e a formalização de empregos; as políticas afirmativas e a redução da miséria; o Mais Médicos.
A partir desse percurso entre Getúlio e Dilma, é possível identificar duas importantes lições do passado e do presente: 1ª) Se lembrarmos do Getúlio “pai dos pobres e mãe dos ricos” e do “Lulinha paz e a amor“, podemos inferir que a política de conciliação, quando enraizada em concessões e na disponibilidade da maioria de seus programas históricos, quando descolada das reformas estruturais básicas, pode garantir viabilidade eleitoral e alguma governabilidade, mas tal estratégia tem prazo de validade; 2ª) Obstáculos impostos pelas estruturas políticas, econômicas, de poder e de imprensa brasileiras.
Decorrente da primeira lição, as barreiras para uma possível hegemonia de partidos e governantes comprometidos com algumas políticas de caráter progressista são evidentes e não é necessário ter ocupado a cadeira presidencial para saber que confrontar tais estruturas não é tarefa fácil.
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Com base nessas duas lições e ao término do desgastante e turbulento processo de impeachment e independentemente de seu resultado, a reconstrução do PT se impõe. Não apenas pelo partido em si, mas pelo que ele representa à esquerda e às políticas públicas progressistas no Brasil e, consequentemente, à população brasileira mais vulnerável, que viu nesses governos uma oportunidade de existir.
Tal processo passará pelo enfrentamento das contramarchas conservadoras que o contaminaram desde a carta ao povo brasileiro. Já que essa política de conciliação está com sua validade vencida, pois seus aliados de ontem “desembarcaram” (o noticiário político no Brasil é tão manipulador e rasteiro que trair a confiança, apunhalar pelas costas àquele do qual usufruiu por tanto tempo, virou desembarque), a saída é rechaçar com veemência a conciliação improdutiva, aquela que não traz efeitos estruturais e que, de fato, não permitem uma sociedade sustentável e harmônica no futuro.
É hora do PT passar a limpo seu presente pragmático, olhando para o seu passado progressista, defensor do protagonismo do Estado e intransigente na defesa aos direitos dos trabalhadores. O Partido precisa reintroduzir uma pitada de esquerda em sua agenda de governo, para reanimar as forças dispostas a defender o mandato da presidenta Dilma, mesmo com todas as adversidades, que vão desde reações raivosas e violentas dos opositores ao descontentamento em relação aos rumos do governo.
Chegar ao poder e se manter, a partir de alianças escusas, reformas paliativas e flerte com as propostas da direita, afastará o PT do seu eleitor e de sua importante missão no espectro da esquerda brasileira e mundial, bem como no que diz respeito à emancipação do trabalhador.
*Cássio Garcia Ribeiro é professor do Instituto de Economia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e Mário Tiengo é especialista em Governança Pública e colaboraram para Pragmatismo Político.