Só sairemos do turbilhão em que vivemos, e do redemoinho que estamos prestes a entrar, através da conscientização do que de fato aconteceu, do que está verdadeiramente acontecendo e do que poderá acontecer se atarmos os braços.
Certa vez escreveu José Honório Rodrigues: “Não é possível compreender a sociedade e a política, partindo delas, mas sim de seus próprios desenvolvimentos históricos”. Portanto, se engana quem acredita compreender o estado das coisas sem olhar para trás. A esquerda brasileira, contudo, deve refletir sobre o passado sem se arrefecer.
Hoje saímos às ruas contra um iminente golpe branco orquestrado pelos setores mais retrógrados da sociedade. São os mesmos que num passado não muito distante, deflagraram a queda de João Goulart e seu projeto de nação. Os inimigos são os mesmos. Os companheiros, não.
Em meio e após o caos, carregando o fardo que a História nos relega, será imperativo explicar aos velhos e novos movimentos populares, coletivos, intelectualidade e classe artística, entre tantos outros companheiros de luta, que o processo histórico brasileiro foi durante séculos uma teia social fortemente fiada pelos andares de cima – pactos de conciliação se fizeram abater sobre as classes subalternas, subjugadas, pisadas e castradas desde o seu início. Nunca sem resistência, deixemos claro.
Por isso, esclareçamos: Dilma não é Goulart. Este golpe não é, ou será como aquele. E o cenário vai além da falta de flores e canhões…
Ainda somos o país das grandes permanências e das poucas rupturas estruturais. Quando uma fatia da classe dirigente, corporificada por um fazendeiro rebelde, um antropólogo revolto e um trabalhista sem papas na língua ousaram reformá-las – e não as revolucionar! – sofremos um grande golpe que nos escureceu a vista, nos fez regredir, nos torturou e nos fez calar. Hoje, onde estariam os ousados?
Em um trecho assustadoramente atual, José Honório continua: “Num país que tem vivido em estado mercurial, este vazio e os falsos líderes agitadores, intranquilos e dominados por sentimentos de vergonha e culpa, aumentaram as dificuldades de superar as crises […]”. O texto ao qual me refiro, Aspirações Nacionais, foi publicado em 1965. Onde estariam as rupturas?
O Partido dos Trabalhadores, o olho do furacão, também construiu o próprio pacto para governar. Pacto com as elites financeiras e empresariais, grande parcela da classe dirigente à direita e indivíduos de pouca honradez. Nos últimos meses, o grande pacto se rompeu. Está em frangalhos.
Mesmo assim, é bom que se diga: a História jamais deixará de rememorar seus êxitos e significativas mudanças que proporcionou às classes que um dia abraçou. Mas seus antigos aliados políticos jamais deixarão de recordar, com pesar, as chances irrecuperáveis.
Sobre “ataduras malfeitas”, José Honório também escreveu: “os remendos dos fósseis são culpados da ressurreição dos problemas”. Cá estamos cheios de problemas. Agora, o maior temor daqueles que almejam um país justo e igualitário, a ampliação de direitos e a concretização das grandes reformas necessárias, será construir um projeto alternativo ao que lentamente agoniza. A diferença e angústia maiores é que aqueles que espernearam “Fora Dilma”, “Lula na Cadeia” e “Estamos com Moro” vestidos com suas camisetas verde-amarelas, pouco desassociam um projeto de nação à esquerda com as insígnias petistas.
O que foi feito da Reforma Agrária? Os conflitos no campo permanecem, assim como extensos latifúndios.
E a taxação das grandes fortunas? Os endinheirados permanecem intocados, talvez ainda mais ricos e sonegadores.
E a mídia nativa, oligopólios da informação seletiva? Permanecem publicando o que bem entendem, difamando e espalhando o ódio.
E as corporações policialescas, restos de 1964? Permanecem matando, sem dó ou piedade.
O que faremos pelos direitos mais básicos das mulheres, dos indígenas, dos negros periféricos nas enormes favelas?
Quem tem olhos que veja: a Casa Grande e a Senzala permanecem carcomidas, sim, mas resolutas.
Em meio a lutas e resistências, quiçá pelas vias do velho radicalismo, a esquerda brasileira terá de se reconstruir. Só sairemos do turbilhão em que vivemos, e do redemoinho que estamos prestes a entrar, através da conscientização do que de fato aconteceu, do que está verdadeiramente acontecendo e do que poderá acontecer se atarmos os braços. É chegado o momento de evitarmos novas conciliações e pactos que nos são forçados pelos andares de cima.
Será apenas sob o comando de minorias criadoras que o tempo da mudança chegará, parafraseando o já citado José Honório. Que assim seja.
*Luís Felipe Machado de Genaro é historiador, mestrando pela UFPR e colaborou para Pragmatismo Político
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