A segunda morte das Diretas Já. O arranjo social do atraso preconiza uma sociedade submissa ao rentismo
Luiz Gonzaga Belluzzo, CartaCapital
Os deputados brasileiros se esmeraram em oferecer a seus compatriotas um espetáculo degradante na votação do impeachment. No subsolo da pobreza de ideais e ideias corria o esgoto da hipocrisia. Papai, mamãe, filhinhos, ói eu aqui com a graça de Deus. O PMDB puxou a fila, liderado pelo vice-presidente da República, Michel Temer.
Pois o PMDB, vale lembrar, nasceu das entranhas do MDB de Ulysses Guimarães, Franco Montoro, Tancredo Neves, Mário Covas. Numa peculiar reviravolta genética, nada sobrou da honrada bravura dos grandes homens no DNA dos pigmeus que hoje controlam o partido. Os nanicos não se envergonham de usurpar a memória de Ulysses ao manter o seu nome na Fundação que deveria abastecer o partido de debates e ideias. Fundação Ulysses Guimarães, um deboche à memória de um grande liberal-democrata brasileiro.
Em um domingo paulistano, logo após a derrota das eleições diretas, Ulysses reuniu mais uma vez em sua casa os que estiveram com ele no combate persistente contra a ditadura. Vou invocar aqui o testemunho dos meus amigos João Manuel Cardoso de Mello, Luciano Coutinho e José Gregori. Não me recordo da presença de Fernando Henrique.
Ulysses levantou-se e respondeu aos que imaginavam convencê-lo das conveniências da disputa no Colégio Eleitoral. Dentre tantas guardei as frases que provocaram lágrimas em sua mulher, Dona Mora, sentada num sofá mais distante da pequena aglomeração de companheiros de seu marido. “Para o Colégio Eleitoral eu não vou. Seria uma facada nas costas do povo que se mobilizou nas praças e nas ruas para participar dos comícios pelas Diretas Já. Digo a vocês, a conquista da democracia não será completa sem a manifestação da vontade popular.”
A campanha popular das Diretas foi derrotada com a cumplicidade de muitos que estavam na oposição, mas temiam a “radicalidade” de um governo eleito pelo povo. Por isso, os náufragos do regime militar conseguiram chegar até a praia, acolhidos pelo bote salva-vidas capitaneado pela turma do deixa-disso.
Apesar da campanha pelas Diretas ter conseguido forte mobilização popular, não foi capaz de vencer as casamatas do poder real que, desde sempre, comandam a política brasileira. Essa turma não tem o hábito de dar refresco ao inimigo. Em suas fileiras abrigam-se os liberais que vivem dos favores do Estado, as burocracias supostamente meritocráticas que mal toleram a soberania popular. A democracia do patriciado e de seus acólitos estabelece limites para as liberdades e respeito aos princípios jurídicos. Eles devem ser respeitados se o povaréu não botar as manguinhas de fora.
Às vésperas das tentativas do segundo assassinato da soberania popular, não posso negar ao improvável leitor as palavras de Ulysses Guimarães na sessão de promulgação da Carta Magna: “A sociedade foi Rubens Paiva, não os facínoras que o mataram. Foi a sociedade, mobilizada nos colossais comícios das Diretas Já, que, pela transição e pela mudança, derrotou o Estado usurpador. Termino com as palavras com que comecei esta fala: a Nação quer mudar. A Nação deve mudar. A Nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança. Que a promulgação seja nosso grito: Mudar para vencer! Muda, Brasil!”
Há quem diga que o Brasil, ao promulgar a Constituição de 1988, entrou tardia e timidamente no clube dos países que apostaram na ampliação dos direitos e deveres da cidadania moderna. Submetidos ao longo de mais de quatro séculos à dialética do obscurecimento que regia as relações de poder numa sociedade marcada pelo vezo colonial-escravocrata e, depois da Independência, pelo coronelato primário-exportador, os brasileiros subalternos deram na Constituinte passos importantes para alcançar os direitos do indivíduo moderno.
A democracia contemporânea, seus direitos e contradições são conquistas muito recentes. Digo contradições porque, no apogeu do liberalismo, o sufrágio universal era apenas uma aspiração das mulheres e dos não proprietários. O direito de votar foi alcançado por todos com muita luta e sacrifício entre o fim do século XIX e o começo do século XX.
Ah, a “democracia”! Essa palavra circula nas rodas nada circunspectas dos Senhores da Terra Brasilis com a desfaçatez que os perpetua no privilégio e no exercício da demofobia. Ocorreu-me relembrar que a vitória na Constituinte não conseguiu eliminar as consequências da derrota na campanha pelas Diretas. O arranjo social do atraso preconiza uma sociedade submissa ao rentismo, refém da estagnação, prisioneira da defesa da riqueza estéril alimentada pelo fluxos de “hot dollars”. Imobilizados nos pântanos do parasitismo, os bacanas e sabichões acovardam-se diante dos azares da incerteza, avessos aos riscos de construção da nova riqueza.
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Aí está desvelado, em sua perversidade essencial, o “segredo” das reivindicações antissociais dos vassalos do enriquecimento sem esforço cevado por taxas de juros absurdas. Clamam pelo aumento do desemprego e proclamam a necessidade de mais “sacrifícios”. Quem viveu 73 anos a ouvir essa patuscada dos que sonegam impostos, fogem para os paraísos fiscais e se orgulham de resolver tudo com dinheiro, sabe que o sacrifício vai ser extirpado daqueles que sempre “pagaram o pato”. Este é o alto preço que o presente agrilhoado ao passado cobra do futuro.
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