O impeachment de Dilma pode significar a salvação de Eduardo Cunha
Réu por corrupção, Eduardo Cunha corre contra o tempo: a investigação sobre sua falta de decoro avança justamente na reta final do impeachment na Câmara. O presidente da Casa quer derrubar Dilma (e ascender o aliado Michel Temer) para livrar seu próprio pescoço
Réu por corrupção, vulgo “Caranguejo” na lista de doações da empreiteira Odebrecht, dramaturgo (a julgar pelas histórias contadas para se defender das acusações), Eduardo Cunha, o presidente da Câmara, merecia mais um epíteto: Senhor Impeachment.
Suas digitais estão por todo lado na tentativa de depor Dilma Rousseff, plano que recebeu sinal verde de um relatório de DNA cunhista prestes a ser votado pelos deputados. Enquanto trama para apressar o desfecho do processo contra a presidenta, o peemedebista esperava desfrutar de certo sossego em seu infortúnio pessoal. Errou.
A investigação sobre sua falta de decoro avança justamente na reta final do impeachment na Câmara, uma coincidência a expor a natureza vingativa da aceitação do pedido de cassação. Pior para os defensores do “Fora Dilma”.
Após meses travado por manobras de Cunha, o Conselho de Ética da Câmara ouviu na quinta-feira 7 o primeiro depoimento no processo contra o deputado. A testemunha foi Leonardo Meirelles, sócio-laranja do doleiro Alberto Youssef, preso na Operação Lava Jato. Meirelles tinha empresas e contas no exterior por meio das quais auxiliava o doleiro a distribuir dinheiro sujo a políticos, entre outros.
Segundo ele, sua participação na engrenagem teria rendido a Cunha 5 milhões de dólares, fruto de chantagem contra um lobista atuante na Petrobras. Graças ao episódio do achaque, Cunha tornou-se réu no Supremo Tribunal Federal.
Meirelles disse ter recebido 5,1 milhões de dólares em Hong Kong em contas de duas offshore, a RFY e a DGX, operado para os recursos em reais chegarem ao escritório de Youssef em São Paulo e ouvido do sócio em um almoço que o dinheiro era destinado a Cunha. Os dólares foram depositados em três parcelas, em 2012, pela Vigela Associated, empresa do lobista Julio Camargo, com quem Meirelles firmara um contrato fictício.
Antigo representante no Brasil de uma fornecedora da Petrobras, a Mitsui/Samsumg, Camargo teria sido achacado por Cunha: ou pagava os 5 milhões de dólares ou haveria uma devassa, por meio da Câmara dos Deputados, em contratos da Mitsui com a estatal.
Uma chantagem supostamente praticada pelo peemedebista a pedido de outro personagem do submundo da petroleira, Fernando Baiano, suposta vítima de um calote do lobista.
A história já fora contada por Youssef e Camargo em delações premiadas. Meirelles é, porém, uma desagradável novidade para Cunha. Ele acaba de fechar um acordo de colaboração, recém-homologado pelo STF, segundo seu advogado, Haroldo Nater, e entregou provas à Procuradoria-Geral da República.
Em setembro passado, após negociar com o juiz Sergio Moro, Meirelles viajou a Hong Kong para recolher documentos bancários que respaldam suas afirmações. O material praticamente completa o caminho dos 5 milhões de dólares até Cunha. Dinheiro de origem “ilícita”, disse Meirelles no Conselho de Ética.
A entrada do doleiro em cena complicou o peemedebista, e não só na Justiça. Ao falar em público sobre o caso, ele aumentou o risco de cassação de Cunha e reforçou a ideia de que o impeachment de Dilma é um ato de vingança do presidente da Câmara.
Entende-se o motivo de o deputado esforçar-se para evitar o comparecimento de Meirelles ao Conselho. O depoente pagou do bolso sua passagem a Brasília, pois Cunha não respondeu à solicitação para a Câmara bancar a viagem, uma praxe.
O pedido chegou-lhe em 31 de março e só na quarta-feira 6 ele tomou uma providência. Mandou o caso ao vice-presidente da Câmara, Waldir Maranhão, do PP.
Cunha também ingressou com um mandado de segurança no STF para tentar barrar o testemunho. Em vão. A ministra Cármen Lúcia, relatora, negou a liminar. Iniciada a sessão, o advogado do peemedebista, Marcelo Nobre, tentou invalidar o depoimento.
As informações de Meirelles, disse, não tinham relação com o motivo de o presidente da Câmara ser investigado, a mentira ou omissão perante os pares e o Fisco a respeito de contas no exterior. Não adiantou. No Conselho, há quem considere ser possível apurar a ética de Cunha sem restringir-se a contas no exterior, caso do líder da Rede, Alessandro Molon.
Para outros, talvez dê para enquadrar o hipotético recebimento de 5 milhões de dólares no escopo “mentira ou omissão”, pois a fortuna não teria sido declarada à Receita Federal, caso de Julio Delgado, do PSB. Até um parlamentar fiel a Cunha, Carlos Marun, do PMDB, admite que o “surgimento de provas robustas” pode ensejar uma ampliação do foco.
Com um Conselho de Ética aparentemente fora de seu controle, um dos poucos espaços livres de seu tacão, não surpreende Cunha ter tentado recentemente um lance ousado. O peemedebista queria mudar as regras internas da Casa para afastar do Conselho o atual presidente, José Carlos Araújo, do PR, o vice, Sandro Alex, do PPS, e o relator do processo, Marcos Rogério, do DEM. A tentativa fracassou. Agora ele que se prepare para novos embaraços públicos e políticos.
Nos próximos dias, Araújo e Rogerio irão a Curitiba ouvir presos pela Lava Jato, entre eles Camargo e Youssef. Os depoimentos foram acertados em reuniões da dupla, primeiro com Moro e depois com o ministro Teori Zavascki, relator no STF da ação penal aberta contra Cunha em decorrência da acusação de achaque.
Além disso, o Conselho pediu a Zavascki, ao procurador-geral da República, Rodrigo Janot, e ao Banco Central o compartilhamento de informações existentes em apurações em curso contra o peemedebista. Todos toparam.
Promessa de um farto noticiário negativo pela frente. Significa que a cassação de Cunha é questão de tempo, talvez em maio, quando se espera uma decisão do Conselho? “Se a Dilma cair, talvez a situação dele melhore, ele terá mostrado força política e vai querer usar essa força em seu favor”, diz José Carlos Araújo.
O cordão umbilical entre o futuro de Cunha e o de Dilma foi destacado pelo advogado-geral da União, José Eduardo Cardozo, na comissão especial do impeachment na antevéspera da divulgação do parecer do relator, Jovair Arantes, do PTB.
O ministro classificou o encaminhamento do pedido de cassação da presidenta como “um clamoroso desvio de poder” por parte do presidente da Câmara, que “usou de sua competência para fazer uma vingança e uma retaliação”.
O peemedebista aceitou o pedido em 2 de dezembro, cerca de quatro horas depois de o PT anunciar voto a favor de sua cassação no Conselho. No mesmo dia, um dos autores do pedido, Miguel Reale Jr., declarou ter havido uma “chantagem explícita”.
Até aqui, sobram digitais de Cunha no impeachment. A rapidez dos trabalhos da comissão especial é resultado de um presidente escolhido com o patrocínio do peemedebista, Rogério Rosso, líder do PSD. Arantes também chegou à relatoria com a bênção do presidente da Câmara.
Apresentado na quarta-feira 6, o parecer pró-cassação foi redigido com o apoio de um advogado da confiança de Cunha, Renato Oliveira Ramos, contratado pelo peemedebista em dezembro para defendê-lo e à Casa em causas perante o STF.
Curiosidade: quando o parecer foi conhecido, o ex-presidente do PTB Roberto Jefferson, condenado a sete anos de cadeia no “mensalão” do PT, foi à Câmara defender Arantes e o “Fora Dilma”. Dias antes, afirmara a O Estado de S. Paulo: “O bandido pelo qual eu mais torço é o Eduardo Cunha”.
A votação do impeachment pelo plenário em um domingo ou em um feriado, dias escolhidos para facilitar a presença de antipetistas em Brasília, também é obra de Cunha. Ele abriu seus planos, até então apenas rumores, ao governador do Distrito Federal, Rodrigo Rollemberg, que na terça-feira 5 foi à Câmara preocupado em saber se teria mesmo de armar algum esquema de segurança especial para o domingo 17 ou a quinta-feira 21.
O rompimento do PMDB com o Palácio do Planalto, jogada infrutífera em suas pretensões de funcionar como “efeito manada” capaz de derrubar o governo, é outro lance anti-Dilma com o dedo de Cunha, em parceria com o vice-presidente, Michel Temer.
Este, aliás, foi protegido por Cunha em um pedido de impeachment idêntico ao que está em curso contra Dilma, baseado na assinatura de certos decretos orçamentários. Temer assinou a liberação de créditos suplementares quando a presidenta estava no exterior.
O engavetamento foi contestado no STF, e na terça-feira 5 o relator do caso na Corte, Marco Aurélio Mello, deu uma liminar que determina a criação de uma comissão para averiguar a denúncia contra o vice.
O presidente da Câmara chamou a decisão de “absurda”. Com aliados, bolou uma forma de driblar a ordem. Líderes partidários afinados com ele não indicarão os integrantes da comissão e na prática ela não será instalada.
No Palácio do Planalto, houve ministro a comemorar a aparente afronta de Cunha ao STF, com a esperança de a Corte agir contra o deputado. Não se alimenta no governo a ilusão de vencer a batalha do impeachment na comissão especial.
Há tempos o objetivo é derrotar a proposta no plenário, hipótese crescente graças às frenéticas articulações com diversos partidos sob o comando do ex-presidente Lula. Esperança que aumenta diante dos novos apuros de Cunha. Na oposição, há quem reconheça que o deputado hoje atrapalha o sonho de tirar Dilma do poder.
Talvez por isso a delação premiada de executivos da Andrade Gutierrez, uma das empreiteiras metidas na Lava Jato, tenha vazado no noticiário com informações a respeito do uso de propina na campanha de Dilma em 2014.
Cassar a chapa Dilma–Temer no Tribunal Superior Eleitoral, onde o ministro Gilmar Mendes se prepara para assumir a presidência, seria uma forma de não ficar nas mãos do “Senhor Impeachment”.
André Barrocal, Carta Capital