O que diriam Rui Barbosa e Paulo Brossard sobre o golpe?
E se o STF recrutasse Paulo Brossard e Rui Barbosa para tratar do atual processo de deposição da presidente? Em tempos de delações seletivas, os comentadores comprometidos com o golpe de Estado corrompem as doutrinas clássicas
Wanderley Guilherme dos Santos, Segunda Opinião
Duas teses passarão a frequentar o Senado federal e as redações midiáticas: a do caráter político do impedimento e a da irrecorribilidade da decisão congressual. Paulo Brossard será apresentado como patrono da primeira e nada menos do que Rui Barbosa patrocinaria a segunda, este quando os golpistas se dão ao trabalho de recorrer a alguma autoridade além de Paulo Brossard. Embrulhadas em rococó diversionista, estas serão as mesmas teses defendidas posteriormente pela maioria do Supremo Tribunal Federal. A primeira delas corresponde a uma interpretação degradada da atividade política, ausente do ideário de Paulo Brossard, e a segunda é totalmente contra a letra e o espírito de um discurso de Rui, dezenas de vezes impresso e citado desde então.
Com ótica parlamentarista, Paulo Brossard concorreu à cátedra de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul apresentando ensaio sobre o impeachment. Contra a doutrina de que o impedimento do presidente da República implicava julgamento criminal, Brossard enfatiza a natureza exaustivamente política da medida: o impedimento “não se origina senão de causas políticas, objetiva resultados políticos, e é julgado segundo critérios políticos (…)”. Lida e ouvida, a opinião será repetida mil vezes como a indicar que o julgamento do impeachment, por ser político, calhe desconsiderar os fatos e a técnica jurídica. Em matéria política, o Congresso tudo pode, asseveram os golpistas. Para exemplo, veja-se o espetáculo de celebração da tese exposto pela Câmara dos Deputados em 17 de abril deste estranho ano de 2016.
Patranhas. A ênfase de Paulo Brossard destina-se a distinguir um processo de impedimento administrativo de um processo criminal, coincidência então defendida por não poucos juristas. Mas seja uma medida estritamente política ou criminal, como pretendiam à época Pontes de Miranda e outros, ela tem que necessariamente expressar um “julgamento que não exclui, antes supõe, é óbvio, a adoção de critérios jurídicos”. Este é o final do trecho acima, sistematicamente omitido pelos defensores da deposição da presidente Dilma Rousseff, encontrado à página 75 da edição de 1992 de “O Impedimento: aspectos da responsabilidade política do presidente da República”. Ou os escrevinhadores não leram a obra ou a amputam, deliberada e, por que não dizer, desonestamente.
Quanto a Rui Barbosa, transcrevo parte de habitual, longa e tediosa intervenção recente do ministro Celso de Mello (ver Luiz Nassif para apropriado retrato do ministro em A falácia do decano, GGN, 21/04), dedo em riste, com certeza, lembrando o antigo e famoso discurso ruibarbosiano. Tratava-se, agora em 2012, do direito de decidir sobre perda de mandato de legisladores, e o ministro declarava que o STF detinha “em termos de interpretação constitucional, e por força de delegação da Assembleia Constituinte, o monopólio da última palavra”. Entender diferente, continuou, equivaleria a pretender “justificar afirmações politicamente irresponsáveis e juridicamente inaceitáveis de que não se cumprirá decisão do Supremo Tribunal Federal”. No arroubo do discurso original, dizia, igualmente, Rui: “Acaso Vossas Excelências poderiam convir nessa infalibilidade que agora se arroga o poder qualquer desses ramos da administração pública, o Legislativo ou o Executivo, de dizer quando erra e quando acerta o Supremo Tribunal Federal? O Supremo Tribunal Federal, Senhores, não sendo infalível, pode errar, mas a alguém deve ficar o direito de errar por último, de decidir por último, de dizer alguma cousa (sic) que deva ser considerada como erro ou como verdade”. Discursava ele na sessão de 29 de dezembro de 1914, conforme se lê no volume XLI, tomo III, das Obras Completas de Rui Barbosa, edição da Fundação Casa de Rui Barbosa, RJ, 1974, página 259.
Claro que nem Celso de Mello, hoje, nem os demais defensores da fuga de que não cabe ao STF apreciar matéria sob a soberania do Congresso recorrerão à lembrança da opinião da dupla Rui/Mello. Em tempo de delações seletivas, qual a surpresa com memorialísticas escolhidas? Mas fica para arquivo da República: os comentadores comprometidos com o golpe de Estado corrompem as doutrinas clássicas.