Quando ladrões gritam “pega ladrão!”
Um combate ultra-seletivo à corrupção, que deixa de fora uma infinidade de ladrões para gritarem livre e impunemente “Pega ladrão!”, não pode ser levado minimamente a sério
A favor de Lula na Casa Civil: “Considerando a competência constitucional da presidente da República para nomear ministros de Estado e a crise política instaurada no país, suspensão do ato político-administrativo poderá causar graves danos à ordem institucional”. Rodrigo Janot, em 29.03.2016
Contra Lula na Casa Civil: “O decreto de nomeação, sob ótica apenas formal, não contém vício. Reveste-se de aparência de legalidade. Há, contudo, que se verificar se o ato administrativo foi praticado com desvio de finalidade – já que esse é o fundamento central das impetrações -, e ato maculado por desvio de poder quase sempre ostenta aparência de legalidade, pois o desvio opera por dissimulação das reais intenções do agente que o pratica”. Rodrigo Janot, em 07.04.2016
O Intolerável
Laymert Garcia dos Santos, Brazilian Observatory
Agora, que o governo Temer morreu antes de ter nascido;
Agora, que já sabemos que o processo de Lula não deve voltar para Curitiba;
Agora, que o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima, porta-voz da Lava Jato, admitiu que “[…] os governos que estão sendo investigados, os governos do PT, […]” são os únicos que vêm ao caso;
Agora, que ficaram patentes todas as irregularidades e ilegalidades cometidas pela Força Tarefa de Curitiba desde 2006, portanto desde os mais remotos primórdios da Lava Jato, oficialmente deflagrada em 2014.
Agora, que os trabalhadores, movimentos sociais, estudantes, intelectuais e artistas deram corpo e voz ao brado de “Não vai ter golpe”, acrescentando cada vez mais intensamente o complemento “Vai ter luta”;
Agora, que já ficou patente para Deus e o mundo, tanto aqui quanto lá fora, que a democracia corre perigo e que o Estado de Exceção está se instalando e revogando o Estado de Direito, tamanhas são as recorrentes violações à Constituição de 88;
Agora, que cresce o consenso do “Fora Cunha”;
Agora, que até órgãos da grande mídia parecem desembarcar do golpe, apesar de tê-lo fomentado e defendido com unhas e dentes – não por amor à legalidade, é claro, mas por constatarem a sua impossibilidade teórica e prática;
Agora, que foi trincada a sacrossanta imagem do justiceiro Sérgio Moro, revelando a figura do arbítrio despótico;
Talvez seja chegada a hora de indagar, não se teremos paz e poderemos voltar aos nossos afazeres, mas sim que configuração tomará a estratégia da desestabilização do Brasil, a partir do ponto em que chegamos.
É preciso enterrar de uma vez por todas a ideia de que o processo desencadeado teve algum dia ou ainda tem como objetivo efetivo acabar com a corrupção. Porque um combate ultra-seletivo à corrupção, que deixa de fora uma infinidade de ladrões para gritarem livre e impunemente “Pega ladrão!”, apontando para Lula, Dilma e o PT, não pode ser levado minimamente a sério.
E se o Judiciário – particularmente a cúpula do Ministério Público Federal -, assim como setores da Polícia Federal, só aparentemente estão combatendo a corrupção, o que estão fazendo?
Diversos indícios, atos, enunciados sugerem fortemente que se trata de desestabilizar o país a qualquer preço. Preço que, aliás, a esta altura, já é altíssimo, se levarmos em conta 1) o comprometimento de ramos-chave do setor produtivo, particularmente energia, infra-estrutura e defesa, com reverberações em toda a economia; 2) a geração de uma imensa crise social, com seu cortejo de desempregados e a ameaça de regressão da parcela mais vulnerável da população a patamares infra-humanos que pensávamos definitivamente superados; 3) last, but not least, a desmoralização das instituições, a começar por um Parlamento bandido, partidos políticos venais e grotescos, juízes e procuradores que enxovalham as leis em nome de valores espúrios.
A quem interessa tal desestabilização planejada e rigorosamente executada? Seguramente, Sérgio Moro e seus procuradores são apenas operadores de um crime de lesa-pátria; tampouco os agentes da Polícia Federal são algo mais que executores.
É claro que a mídia golpista, os partidos de oposição, os movimentos fascistas continuamente estimulados, a FIESP, a OAB, os inocentes úteis e os oportunistas de plantão, inclusive nas hostes governamentais, são protagonistas empenhados na produção do desastre, cada segmento operando a seu modo.
E pode-se considerar que, em virtude de seu imobilismo e falta de iniciativa, o próprio governo Dilma e o PT contribuíram involuntariamente, até bem pouco tempo, com a desestabilização.
O silêncio das Forças Armadas é notável, até mesmo quando importantes interesses da Defesa, que as afetam diretamente, são feridos.
Mas o que significa o seu não-protagonismo? Se for verdade que Lula não foi sequestrado e levado à força para Curitiba em virtude da discretíssima interferência da Polícia da Aeronáutica em Congonhas, haveria aí uma indicação de que seu papel como garantidor da ordem instituída segue intacto?
Resta, então, a cúpula do Judiciário. Excluindo-se as conhecidas posições de Gilmar Mendes, que dispensam comentários, é inquietante constatar que ainda não se sabe ao certo em que direção o
Supremo Tribunal Federal vai se mover, tendo em vista a emissão de sinais contraditórios e as dúvidas que suscita quanto ao papel predominante da corte, se Corte Constitucional ou Corte de Apelação.
Mais graves ainda são os atos e as palavras do Procurador Geral da República, Rodrigo Janot. Acompanhando e mapeando o desenrolar do jogo nos diferentes tabuleiros de xadrez da crise, o jornalista Luiz Nassif percebeu nitidamente que o Ministério Público Federal era o “Alto Comando” do golpe. A designação é extremamente forte, mas há razões para o emprego do termo.
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Entre elas, a visita inexplicada de Janot ao Departamento da Justiça em Washington para levar às autoridades americanas documentos sobre a Petrobrás; sua inapetência para investigar Aécio Neves; sua defesa intransigente de Moro e da Força Tarefa da Lava Jato, apesar das ilegalidades cometidas; sua demora para denunciar Cunha junto ao STF, dando a este todo o tempo para sublevar a Câmara dos Deputados contra o governo Dilma; e finalmente sua autorização para que Moro divulgasse os grampos ilegais das conversas da presidenta com Lula, do Ministro Jacques Wagner com Rui Falcão e dos advogados do ex-presidente.
A cartografia de Nassif confere inteligibilidade à desestabilização e, sobretudo, ao papel do Alto Comando. Mas ao longo do tempo, e da publicação dos posts, fica a impressão de que o jornalista se assustou com sua própria descoberta e passou a explicar a conduta de Janot e dos procuradores sob a ótica exclusiva do “corporativismo”.
Assim, o Ministério Público Federal não compartilharia da lógica que move os outros protagonistas golpistas, já que estes estariam mais interessados na luta de poder do que no combate à corrupção, obsessão que o MPF supostamente quer cumprir, “doa a quem doer”.
Voltamos, portanto, à cruzada contra a corrupção. Mas se ela é seletiva e se a sociedade brasileira inteira já está pagando um preço exorbitante pela Lava Jato, faz sentido acreditar em Janot? Se já sabemos quem perde com a desestabilização, não seria melhor indagar quem ganha com ela?
Tudo se passa como se a lógica da Lava Jato obedecesse à estratégia de desqualificação absoluta do Brasil na cena global, no âmbito dos BRICS, no âmbito do Mercosul e aos olhos dos próprios brasileiros; vale dizer: à estratégia de redução do país a uma condição neocolonial.
A desestabilização visa a inviabilização do Brasil como país. Mais ainda: a estratégia nem parece ter sido elaborada aqui, na medida em que repete e retoma métodos, procedimentos e tecnologias jurídicas, policiais e políticas do terrorismo de Estado norte-americano, em sua guerra contra os países “inimigos”, principalmente aqueles que detêm soberania em termos de energia e que, por isso mesmo, precisam ser “neutralizados”.
A estratégia busca criminalizar o governo Dilma, Lula, o PT e todos aqueles que resistem à implementação da agenda neoliberal e neocolonial, equiparando-os a “terroristas”, que precisam ser eliminados da cena política.
A estratégia obedece à lógica da terra arrasada, de preferência levada a cabo pelos próprios autóctones, sem intervenção externa direta e sem interferência militar.
Uma guerra não-declarada na chamada “zona cinzenta”, onde os justiceiros locais fazem o serviço sujo, manejando as armas do Estado de Exceção e, em sintonia com a mídia golpista, detonando bombas informacionais com impacto calculado sobre a opinião pública e sobre as instituições.
Moro e os procuradores de Curitiba são os soldados da desestabilização. Janot e os procuradores de Brasília são o Alto Comando.
Eles formam a espinha dorsal de um dispositivo de destruição da política como forma de entendimento do coletivo.
Treinados em seminários e colóquios pelos especialistas em “cooperação”, aprenderam as novas tecnologias jurídicas, políticas e policiais do “contra-terrorismo”, importaram e implementaram a estratégia do caos.
E não podemos sequer alegar que não fomos alertados: Snowden, em 2013, havia revelado os grampos da NSA contra Dilma e contra a Petrobrás; mas não sabemos se o que a espionagem apurou na petrolífera forneceu material para a Lava Jato.
Por outro lado Wikileaks nos informa que Moro e procuradores participaram entusiasticamente, já em outubro de 2009, de uma conferência no Rio de Janeiro, na qual pediram treinamento aos americanos da Coordenação do Contra-Terrorismo – treinamento multijuridicional, prático, inclusive com demonstrações sobre como preparar uma testemunha para depor.
Nas palavras do próprio documento vazado: “Treinamentos futuros devem focar áreas como força tarefa sobre ilícitos financeiros, que podem se mostrar a melhor maneira de combater o terrorismo no Brasil”.
Sabemos que no Brasil não há terroristas e sabemos quem ganha com a criminalização da esquerda. Já sabemos, portanto, quem quer a desestabilização.
Por isso, para além da defesa de uma Presidenta eleita e de um ex-Presidente caçado injustamente, está em questão a defesa da democracia e da soberania.
Quer dizer: da construção do futuro. Daí, a pergunta: Vamos continuar tolerando o intolerável?
*Laymert Garcia dos Santos é professor Titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Campinas – Unicamp