O escândalo dos Panama Papers fez mais do que tirar do anonimato atividades de pessoas e empresas que mantêm contas em paraísos fiscais. Expôs as manobras dos ricos e poderosos de todo o mundo para ocultar seu dinheiro e, em muitos casos, evadir impostos
O escândalo dos Panama Papers – o vazamento de mais de 11 milhões de documentos da firma panamenha Mossack Fonseca – fez mais do que tirar do anonimato atividades, legais e ilegais, de pessoas e empresas que mantêm contas em paraísos fiscais.
A exposição das manobras dos ricos e poderosos de todo o mundo para ocultar seu dinheiro e, em muitos casos, evadir impostos reacende o debate sobre a proporção entre as contribuições fiscais de pessoas em situação econômica mais privilegiada e o tamanho de sua fortuna.
Organizações internacionais apontam para um grande desequilíbrio na América Latina – na região, os 10% mais ricos concentram 71% da riqueza, mas pagam apenas 5,4% de seus rendimentos em impostos, em média, segundo dados da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal).
De acordo com a Cepal, entre os principais países do continente, apenas o México tem os mais ricos pagando mais de 10% de imposto – o Brasil aparece com um percentual em torno de 6% – e em muitas nações alíquota pode ser tão baixa como 1%.
Em países desenvolvidos, o percentual é bem mais significativo – 14,2% nos EUA, 25% no Reino Unido e 30% na Suécia, por exemplo.
“Na época do boom econômico da América Latina, este tema poderia ser menos urgente, mas com a crise atual e a dificuldade de gerar recursos, a questão requer uma solução muito mais clara“, diz Ricardo Martner, diretor da Unidade de Assuntos Fiscais da Cepal.
Há três grandes razões para esse desequilíbrio fiscal na América Latina:
1. Estrutura fiscal regressiva
A estrutura de impostos que financia os gastos públicos se baseia em impostos diretos (sobre rendimentos e imóveis) e indiretos (consumo).
Os primeiros favorecem a equidade, sob o princípio de quem mais tem mais paga mais, ao passo que o imposto sobre o consumo baseia-se no princípio exatamente oposto: ricos e pobres pagam o mesmo valor sobre o preço de um produto ou serviço, como é o caso do ICMS no Brasil.
Apesar de a arrecadação fiscal ter crescido mais de 42% nos últimos anos na América Latina e atingido a marca histórica de 21% do PIB da região, apenas um terço dessa carga de impostos é de taxação sobre a renda. A maioria da arrecadação vem dos impostos sobre o consumo.
“O aumento da arrecadação tem seguido esse esquema. Há maior pressão tributária, mas a maior parte vem de aumentos no imposto sobre valor agregado“, explica Martner.
2. Evasão fiscal
A evasão fiscal é um problema crônico na estrutura fiscal da América Latina. Com um exército de contadores e advogados à disposição, bem como uma rede internacional de paraísos fiscais, empresas e milionários conseguem “fugir do Leão”.
E os Panama Papers são um claro exemplo desse labirinto financeiro e legal. Segundo a Cepal, a evasão de impostos sobre a renda pessoal, corporativa e consumo custa à América Latina mais de US$ 320 bilhões por ano – ou 6,3% do PIB regional.
A ONG Global Financial Integrity, com sede em Washington, publicou no ano passado um estudo em que três países latino-americanos – México, Brasil e Venezuela – estão citados entre as nações com mais fluxos ilícitos de capital do mundo.
Dessas transações irregulares participam não apenas milionários buscando ocultar sua fortuna para pagar menos impostos, mas também empresas multinacionais. Segundo a Global Financial Integrity, corporações são as principais fontes desses fluxos, em especial por meio do subfaturamento de suas exportações.
3. Incentivos fiscais
Um dos mecanismos favoritos das elites político-econômicas são as exceções fiscais. Há uma diferença entre o valor teórico que deveria ser pago e o valor realmente pago – a contribuição efetiva após deduções, exceções e isenções.
Para os ricos e corporações, esse regime foi justificado durante muito tempo como um estímulo para investimentos, que em teoria beneficiaria o resto da sociedade.
“Mas incentivos tributários não são suficientes para criar um clima (favorável) para investimentos. Isso depende de outros fatores que têm a ver com o investimento em bens públicos essenciais, que requerem mais arrecadação“, explica Martner.
Consequências
Essas três razões têm consequências significativas para as economias da região:
1. Deficit fiscal crescente
Em época de vacas magras, o deficit fiscal (quando governos gastam mais do que arrecadam) médio na América Latina está em alta. No ano passado, foi de 3%. Mas os ricos não são os únicos responsáveis por esse panorama. Os níveis alarmantes de trabalho informal na região e a queda no preço das commodities também tiveram impacto na arrecadação.
O resultado é que os gastos sociais têm estagnado ou retrocedido em pelo menos metade dos países da região – isso depois de um aumento médio regional de US$ 801 por habitante nos anos 90 para para US$ 1.841 no biênio 2013-14.
E há disparidades regionais fortes: Bolívia, Guatemala, Honduras e Nicarágua, por exemplo, gastam US$ 300 por cabeça, enquanto Brasil, Argentina, Chile e Uruguai, por exemplo, apresentam investimentos superiores a US$ 2000.
Para a Cepal, o deficit fiscal está gerando uma restrição de gastos sociais e redução de subsídios aos que mais necessitam deles. E um exemplo vem da Argentina, onde o novo presidente, Mauricio Macri, promoveu aumentos substanciais nas tarifas de energia elétrica, transporte e outros serviços básicos.
De acordo com o centro de estudos argentino Observatório da Dívida Social, as reformas de Macri teriam devolvido mais de 1,4 milhão de pessoas à pobreza desde 10 de dezembro, quando começou seu mandato.
2. Desigualdade
O coeficiente Gini, que mede a desigualdade econômica, teve melhoria de 11,6% na União Europeia por causa do imposto de renda. Mas na América Latina o avanço foi de apenas 2,1%. Para Julian Vealerdi, ex-economista do Banco Central Argentino, a desigualdade tem tido um alvo pouco notado: a classe média.
“A classe média é fundamental no setor assalariado, porque é deles que se desconta diretamente o imposto de rendimentos. É a mais forte e segura do sistema fiscal. Ela sente mais fortemente os aumentos que tentam cobrir a queda na arrecadação fiscal“, diz Velardi.
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Marcelo Justo, BBC Mundo
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