Está claro que nem a Alemanha de 1933, nem a Itália de 1922, nem o Portugal salazarista ou a Espanha franquista se equiparam ao Brasil de 2016. Há, porém, por analogia, considerando as estruturas vigentes, equiparação no que tange às dinâmicas psíquicas em jogo
Flavio Aguiar, RBA
Claro está que nem a Alemanha de 1933, nem a Itália de 1922, nem o Portugal salazarista ou a Espanha franquista se equiparam ao Brasil de 2016. Mas se pensarmos nas estruturas do que está acontecendo, sim, se equiparam, por analogia, no que toca às dinâmicas psíquicas em jogo.
No Brasil de hoje domina a desfaçatez escancarada dos golpistas “de cima”: Parlamento apalermado, dominado por uma quadrilha de rufiões, liderada por um psicopata, Executivo nas mãos agora de um “sabonete”, como a gente dizia, e seboso, ainda por cima; um Judiciário ocupado por ousados violadores de qualquer lei ou timoratos defensores das próprias rotas togas, não mais que isto; promotores públicos que exercem a magistratura impunemente em proveito próprio e em defesa de privilégios políticos, como os coronéis de 54 e os generais de 64; delegados e policiais federais que exercem o poder do distintivo para intimidar os “conduzidos coercitivamente”; a mídia marrom, que se intitula “grande”, como sempre insuflando nos seus leitores, apesar de serem cada vez menos, o ódio, o preconceito, a mentira, baseada na ideia de que se a mentira é suficientemente repetida ela vira verdade e, se não engana o tempo todo, engana por tempo suficiente para patrocinar os golpes que ela deseja – brancos ou sanguinários.
Não é isso que cola os anos de hoje no Brasil à Alemanha de 1933 e anos seguintes. Pode até aproximar. O que cola, mesmo, são os processos que isso recolhe e deflagra. Inclusive os psíquicos.
A prática disseminada na Operação Lava Jato e seus vazamentos alta e baixamente seletivos para a mídia galopeira do golpe, das “delações premiadas”, induziu fortemente uma prática disseminada entre a direita sequiosa de ter motivos para se livrar das políticas de favorecimento do povo e da afirmação da soberania popular e nacional: as “agressões premiadas”.
Direitistas de todos os matizes, estimulados por jornalistas criminosos, passaram a estigmatizar o que viam como “objetos de descarrego”: a cor vermelha, os petistas, os que criticam a ditadura de 64, de repente comodamente reunidos debaixo do rótulo: “corruptos”. Mais ou menos como se fazia com as bruxas de antanho ou os judeus de menos antigamente.
O raciocínio é mais ou menos assim: a mídia diz que alguns petistas foram corruptos; então, todo o petista é corrupto e todo o corrupto é petista; se não é, não interessa, porque nós precisamos construir um bode expiatório visível, porque a corrupção é algo mais difícil de combater do que os petistas, que a gente pode cercar na rua, bater neles, insulta-los, a partir da cor vermelha, ou de seu retrato.
E a gente pode fazer tudo com eles: se recusar a atender seus filhos, se formos médicos, insulta-los nas ruas, bater nos seus cachorros, expulsá-los de hospitais, de restaurantes, etc. Por que essa agressão é “premiada”? Porque ela é impune. Com “eles”, você pode fazer o que quiser, nada vai acontecer.
Pode extravasar, pode liberar seu ódio, seus preconceitos, tudo. Substitua as palavras “petista”, “esquerdista” etc., por “judeu”, “cigano”, “homossexual”, “social-democrata”, “liberal” “comunista” etc. – a estrutura é a mesma. Só que hoje, como na Alemanha de 1933, ninguém está pensando no etc. Vamos a isso.
Há um romance que deveria ser lido nestes momentos. Infelizmente, não há tradução para o português que eu conheça. Em alemão, ele se chama Jeder starbt für sich allein, que pode ser traduzido mais ou menos por “Cada um morre sozinho e por si“, e é de um autor chamado Hans Fallada, pseudônimo de Rudolf Wilhelm Friedrich Ditzen (1893-1947). O autor teve outro romance traduzido, grande sucesso nas décadas de 1930 e 1940, Kleiner Mann – was nun?, que Erico Verissimo, o tradutor, converteu em E agora, seu moço?, em 1937, e que agora tem uma nova edição, E agora, Zé Ninguém?
Aquele romance ganhou dois nomes em diferentes versões para o inglês: Alone in Berlin e Every Man Dies Alone. É baseado na história real de um casal que, durante a Segunda Guerra, se dedicou a escrever cartões postais antinazistas e a distribuí-los por prédios e ruas de Berlim, meio ao acaso.
Não eram militantes políticos. O que aconteceu a eles foi o trauma provocado pela morte do irmão da mulher no front de batalha. Escreviam, sobretudo, que Hitler mentia, o regime era opressivo, o nazismo era insuportável. Foram pegos, condenados à morte, executados. Depois da guerra, Fallada recebeu os informes sobre o caso e escreveu o romance em 24 dias, antes de morrer de causas naturais.
No romance, o casal original (Otto e Elise Hampfel) se torna Otto e Anne Quangel, e o morto passa a ser seu filho. Ao seu lado, enfrentamos o mundo nazista, feito tanto da operística e bufa tragicidade de seus líderes (no Brasil de hoje diríamos, comicidade trágica) quanto da pequena mesquinhez das injustiças cotidianas: as denúncias, as agressões contra judeus, a soberba dos que acham donos do espaço, e assim por diante, tudo disfarçado ou pintado com as cores de se acreditar na “limpeza da pátria”, mais ou menos como hoje.
Um detalhe importante é que os cartões do casal são, na verdade, inócuos. Deixados em prédios privados ou públicos, escritórios, repartições, são entregues à Gestapo assim que descobertos. Motivo: quem os descobre entra em pânico, pela simples posse deles, e os “descarrega” de imediato para a polícia política. Não basta, por exemplo, destruí-los: é preciso dar mostra de “bom comportamento”. Graças ao que já se chamou de “medo ininterrupto”.
Mas tem mais. O título do romance só se explicita ao se considerar que, ao lado do casal Quangel, o outro protagonista é o policial da Gestapo encarregado de elucidar o caso: o comissário Escherich, um investigador civil que foi parar na Geheime Staatspolizei, mais conhecida por aquela sigla. Até mesmo o número de páginas da edição alemã é equânime: 50% dedicadas ao casal e seu mundo, e 50% ao comissário.
Escherich é um policial metódico. Quer descobrir os autores do “crime” através do método e da investigação sistemática. Mas os seus chefes não. Querem ação, resultados imediatos, pancadaria eventualmente. Isso cria muitas tensões para ele. Diga-se de passagem, que ele não tem a menor simpatia pelos criminosos que investiga. E tem simpatia por sua função, seu método, seu caráter de policial “correto”. Despreza a tortura, como “ineficaz”. Mas termina até se valendo dela, não para obter informações, mas para satisfazer os chefes e continuar no caso.
Com tal personagem, Fallada constrói uma fina paródia de um romance policial. O detetive é, na verdade, o criminoso, o agente do crime que vai ser cometido. Os supostos “criminosos” são, na verdade, as vítimas, e o que vamos assistir é um “assassinato judicial”, perfeitamente dentro da lei, da ordem e dos bons costumes.
Mais ou menos o que está acontecendo hoje no Brasil com a presidenta. A inocente vai para a fogueira, estilo Joana D’Arc (capa do Estadão, que acho que nem se deu conta da canonização que promoveu), a bandidagem é que a condena “legalmente”. Além disto, o casal é que é descrito, naquele mundo, como “anormal”, “psicótico”, “ameaçador”, desequilibrado, por desafiar os poderes vigentes ou por denegar seus ditames.
Há ainda algo mais profundo, que vemos no destino do policial, ao lado dos protagonistas da rebeldia. Para executar suas funções, ele precisa construir uma carapaça extremamente rígida que o proteja da realidade. No seu caso, isso nem se transforma em ódio, mas em desprezo em relação a seus objetos, os investigados. Ele precisa construir uma negação sistemática da realidade, chamar de crime o que não é crime, chamar de loucura o que é razão, chamar de nada o que é tudo, a humanidade dos supostos “criminosos”.
Algo parecido acontece hoje com os que negam a existência de um golpe. Esgrimem uma má-fé que vai terminar por engoli-los. Uma parte vai esgrimir essa má-fé até o fim da vida, inutilizando sua capacidade de pensar, mais ou menos como acontece com os hoje “saudosos de 64”. Outra parte vai cair na ressaca, quando as tragédias começarem a ser vomitadas nas suas portas, inutilizando seu pensamento também por longo tempo. Qual será o percentual de ambas as partes? Impossível saber.
Escherich confronta seu destino em dois capítulos. No primeiro, é brutalizado por seus superiores por sua “ineficiência”. Apanha, rola escada abaixo, sangra. Para continuar no caso, desce mais um degrau na escala humana, denunciando um inocente como culpado, só para se manter no caso, que quer elucidar.
No segundo, que é o verdadeiramente demolidor, confronta-se com o verdadeiro “culpado”, Otto Quangel. O reconhecimento do quanto Quangel (que está longe de ser um herói, é muito mais um anti-herói) manteve sua humanidade intacta é insuportável para ele, e a constatação de que toda a negação que construiu em relação à realidade externa terminou por atingir sua realidade interna, corroendo-a e destruindo-a. E ele se mata. Seus superiores o consideram um mero “desertor”.
Claro: trata-se de um romance. O policial real, que investigou o caso e descobriu o casal, chamado Püschel, sobreviveu à guerra, mas depois dela desapareceu. Confinou-se a um anonimato. O que pode ter sido uma condenação pior do que o destino de Escherich, como personagem.
Um outro aspecto a considerar está naquilo que chamei de “assassinato judicial”. Era o método nazista, de Roland Freisler, mas não só. Era também o do estalinista Andrei Vychinsky, e o de Joseph McCarthy. Consiste em fazer uma usurpação de papeis, em que o “camisa nera” de Curitiba, os promotores do Ministério Público, o Procurador Geral da República e até mesmo a PF se tornaram mestres, senão doutores. Assim: o juiz passa a ser promotor também; o promotor passa a ser juiz; o Procurador passa a ser tudo isto junto, e os policiais mais ainda. O parlamentar passa a ser carrasco antes do julgamento.
A partir daí qualquer um em mesa de restaurante, saguão de hospital ou meio da rua se arvora a ser tudo também, juiz, policial, promotor, júri, tudo. E se dá o direito de vaiar, expulsar, bater… ou prender.
Querem ver?
Examinemos o comportamento do comandante da TAM que ontem (10) foi confrontado por manifestantes antigolpe de um lado, e uma reclamação por parte de dois deputados golpistas no voo, de outro. Que fez ele? Liberou os deputados e deteve as manifestantes até a chegada da PF, que as re-deteve por mais uma hora. Ou seja, ele julgou o caso, e deu sentença. Libertou as “vítimas”, na verdade os culpados, deteve as “infratoras”, na verdade as vítimas de um estupro legal de seus direitos.
Em conjunto, esse processo de negação da realidade se volta primeiro para fora. Nega a realidade e a humanidade do outro. Mas ele tem um preço para dentro, que termina por ser cobrado. O psicopata clássico é o que volta ao local do crime porque acha que não foi ele que cometeu o crime ou que o que fez não foi um crime, embora dentro dele bruxuleie uma culpa que o arrasta à autocondenação.
Este psicopata político do século 21 brasileiro está assassinando o país que lhe deu berço e não vai ter para onde voltar. Não sei qual destino antever, se o de Escherich ou o de Püschel. Que nenhum deles lhe seja leve.
Aqui na Alemanha houve muitos Püschel. Tanto que um dos temas das revoltas de 1968 foi a pergunta: “Papai, mamãe, vovô, vovó, tio, tia, onde estavam e o que fizeram durante o nazismo?” Uma capa de silêncio envolvia tudo.
Da mesma forma haverá a pergunta: onde vocês estavam em 2016? E ela vai vir muito mais rápido. Talvez no ano que vem.
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