Luis Gustavo Reis*, Pragmatismo Político
“O Brasil tem recursos naturais mas passa fome, é naturalmente rico mas vive endividado, é negro e mestiço mas deseja ser europeu.” Abdias do Nascimento
Este mês rememora-se a Abolição da Escravidão. É daquelas datas que impulsionam um elã emocional que entorpece o país, em que todos parecem comprometidos com uma nação mais justa, fraterna, plural e, sobretudo, revalidam suas profundas convicções nos benefícios da miscigenação. Quanta humanidade em nossos conterrâneos!
Mas o país que exalta sua miscigenação, produz gritantes aberrações. Uma delas é a ausência de pretos e pardos em programas televisivos, assim como em determinadas profissões: professores universitários, pilotos de avião, médicos, engenheiros e – pasme! – técnicos de futebol. Vale a pergunta, caro leitor: Quantos jogadores de futebol pretos você conhece?
Agora reflita: Quantos técnicos de futebol você já viu dirigindo clubes brasileiros? Há um descompasso, não?
Segundo o Censo 2010, pretos e pardos compõem a maioria da população brasileira. Então, por que é tão difícil encontrar essas pessoas nas profissões citadas acima?
Ali Kamel, diretor de jornalismo da Rede Globo, escreveu em seu livro Não somos racistas, o seguinte trecho:
Gostávamos de nos ver assim, miscigenados. Gostávamos de não nos reconhecer como racistas […]. Aqui, após a abolição, nunca houve barreiras institucionais a negros ou a qualquer outra etnia […]. Somos uma sociedade essencialmente diferente no tocante ao racismo – mais tolerante, buscando, ao menos como propósito, a prevalência da crença de que as cores não tornam ninguém melhor ou pior […].
Ao ler as páginas do livro de Kamel, além de ter de enfrentar as escancaradas distorções estatísticas e uma cansativa repetição de argumentos contra as políticas de ação afirmativa, não se tem a sensação de que o autor descreve o Brasil, mas sim algum país imaginário, bastante semelhante ao das novelas veiculadas na emissora onde ele trabalha. O livro, grosso modo, defende as ideias de que compomos uma nação predominantemente mestiça e de que o racismo existe como manifestação minoritária, e não institucional, sendo a pobreza o principal problema do país.
Quanta bobagem, Ali Kamel! O Brasil realmente é um país mestiço, formado pelas valiosas contribuições dos distintos povos que aqui se estabeleceram. Todavia, um dado elementar distingue cidadãos e mutila cidadanias: o corpo, a corporeidade! Somos todos mestiços, mas os de tez enegrecida sofrem cotidianamente as mazelas do racismo.
Ali Kamel alega que no Brasil o preconceito é social, não “racial”. Evidentemente os pobres, sejam pretos ou brancos, sofrem preconceito no Brasil, mas é falta de honestidade intelectual não reconhecer que pretos e pardos são alvos sistemáticos de piadas, achincalhes, violência, vilipêndio e todo tipo de ação velada ou escancaradamente racista disparada por brancos ricos e pobres. Portanto, equiparar o preconceito econômico ao étnico é, no mínimo, despropositado.
Relatórios produzidos por instituições respeitáveis – Anistia Internacional, por exemplo – apontam os desrespeitos sistemáticos aos direitos humanos da população preta e parda. Além disso, denunciam rotineiramente as perversidades de agentes da segurança pública, grandes especialistas em assassinar jovens negros nos distintos rincões de pobreza desse país.
Leia aqui todos os textos de Luis Gustavo Reis
Dizer que gostamos de nos reconhecer como miscigenados e varrer o racismo para debaixo do tapete é de um cinismo covarde. É esse tipo de pensamento, atrelado ao descaso, à hipocrisia e ao desinteresse nacional em debater seriamente a questão, que situa o Brasil no topo do ranking das nações mais racistas do planeta.
Leia também:
Olhos Azuis, a dor do preconceito (documentário recomendado)
Número de negros assassinados aumenta e de brancos diminui no Brasil
Negros têm 2,6 vezes mais chances de morrer do que brancos no Brasil
É preciso nos debruçarmos sobre a questão do racismo com seriedade. Ou mudamos nossas atitudes cotidianamente, passando a valorizar e a respeitar o “outro” como diferente – jamais como desigual – ou não avançaremos. Continuaremos girando em falso, produzindo cansativos e efêmeros discursos, atados definitivamente às conhecidas hipocrisias, tão características em diretores de jornais de grandes emissoras televisivas.
*Luis Gustavo Reis é professor, editor de livros didáticos e colaborou com Pragmatismo Político.
Acompanhe Pragmatismo Político no Twitter e no Facebook