A história de Sofia é igual a de outras milhares de brasileiras que, como ela, foram abusadas — independentemente de sua classe social. O que muda, no seu caso e de outras mulheres que vivem nas periferias é a forma como podem reagir a esses abusos. Elas têm de lidar com a violência de traficantes e milicianos e com a indiferença de policiais que, na maioria das vezes, constrangem e culpabilizam a vítima
Sofia* sofreu um baque quando descobriu há dois anos que a sua filha Laís*, então com 12, vinha sendo abusada sexualmente pelo padrasto desde os seis. Jamais desconfiou de seu então marido, mas imediatamente decidiu se separar e denunciar o caso para a polícia. Decisões difíceis, mas tomadas para dar à sua filha a proteção que ela nunca recebeu durante a sua infância. Quando também era criança, Sofia foi estuprada pela primeira vez. Também dentro de casa. “Perdi minha mãe com quatro anos, mas logo depois uma moça me pegou na rua para criar. Fui crescendo, até que aconteceu. Fui abusada na casa dessa moça pelo marido dela. Não tinha como ficar lá e voltei para a rua”, conta esta dona de casa, moradora de uma favela de Niterói, cidade vizinha da capital Rio de Janeiro.
Uma vez fora de casa, começou a usar drogas e a se prostituir para sustentar o vício. Para não morrer, sofreu calada vários estupros coletivos de traficantes que ocupam comunidades de Niterói. “As meninas caem muito fácil na conversa dos meninos. Querem se sentir mais importantes na favela, que as outras fiquem com inveja. Eu também era assim”, explica. “Mas eles eram muito violentos, forçavam a barra. A gente tinha que fazer. Se não fizesse, eles matavam”.
Hoje, com 33 anos, vive em uma casa própria com seus quatro filhos — dois deles de seu ex-marido violador. Sua história até aqui é a história de outras milhões de brasileiras que, como ela, sofreram abusos repetidas vezes tanto dentro como fora de casa, tanto por familiares como por estranhos — independente de sua origem ou classe social. O que muda no caso de Sofia e de outras mulheres que vivem nas periferias brasileiras é a forma como podem reagir a esses abusos. Elas têm de lidar com a violência de traficantes e milicianos que fazem e aplicam a lei nas comunidades, com a indiferença de autoridades policiais que na maioria das vezes constrangem e culpabilizam a vítima, e com a falta de amparo e de conhecimento de suas respectivas famílias — principalmente quando o agressor é um parente ou o próprio companheiro. Em suma, essas mulheres têm de percorrer um cruel labirinto em que, a cada saída, se deparam com perigosas armadilhas.
“Existe a questão de gênero para todas, mas na favela ela se mistura com a questão de classe e de etnia. São fatores que potencializam a violência. Na pirâmide social, a mulher negra, jovem e pobre é a mais vulnerável. O acesso à informação e serviços é mais precário. Então a maneira como está inserida na sociedade faz diferença na hora de lidar com a situação e até de ser atendida em uma delegacia”, explica a assistente social Erika Carvalho, coordenadora do Centro de Referência de Mulheres da Maré Carminha Rosa, no Rio de Janeiro. Em 2015, o Estado do Rio registrou 4.128 estupros, segundo os dados da Secretaria de Segurança divulgados nesta semana. A maioria das vítimas são menores de 14 anos. Já um estudo do IPEA realizado em 2014 estima que ocorrem cerca de 527.000 estupros por ano no Brasil, mas que apenas 10% são notificados à polícia. Além disso, cerca de 70% dos abusos são cometidos dentro de casa por parentes ou companheiros. “Por isso nosso trabalho é principalmente o de informar, orientar e conscientizar sobre seus direitos”, acrescenta Carvalho.
Sofia estava ciente sobre o que tinha de fazer, mas demorou algumas semanas até tomar coragem para denunciar o estupro de sua filha Laís para as autoridades. Tinha – e ainda tem – medo de que “os meninos” fizessem alguma maldade caso ela abrisse a boca. “Quando souberam da história, vieram para cima de mim. Disseram: ‘Era para você ter falado, você sabe que essas coisas não é para esconder!’. Mas não queria que matassem meu ex-marido, só queria que ele respondesse pelo crime que cometeu”, conta a dona de casa, que não pode trabalhar fora porque seu filho mais velho, em suas palavras, “nasceu especial”. Sua renda é um salário mínimo que recebe do Estado para cuidar do menino e a pouca pensão que o ex-marido violador é obrigado a enviar. “Então quase não saio. Tenho medo que me expulsem da comunidade. Não tenho família, então o que vou fazer com os meus filhos? Vou para debaixo da ponte?”
A assistente social Marisa Chaves, fundadora da ONG Movimento de Mulheres de São Gonçalo, para onde o caso da filha de Sofia foi encaminhado, explica que os traficantes normalmente fazem justiça com as próprias mãos em casos como esses, mas não por possuir um senso de justiça ou um código moral de conduta. “Eles não querem que ninguém chame a atenção das autoridades. Querem tranquilidade e estabilidade no território deles. Qualquer pessoa da comunidade que coloque isso em risco está ameaçada”, explica.
Quando o caso de estupro coletivo de uma adolescente de 16 anos no Rio ganhou visibilidade em todo o país há algumas semanas, muitas vozes questionaram se de fato o crime ocorreu. O principal argumento era o de que em áreas controladas pelo tráfico não existe este tipo de crime devido a este suposto código de conduta imposto.
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Cristina Fernandes, psicóloga e coordenadora do Centro Integrado de Atendimento à Mulher (CIAM) Márcia Lyra, o mais antigo do Rio de Janeiro no atendimento às mulheres vítimas de violência, rechaça veementemente essa ideia: “É uma falácia. A violência sexual está camuflada, e em todo lugar é assim. Trata-se de uma violência intimista, não há testemunhas. Acontece no ambiente familiar, mas também é cometida pelo próprio tráfico ou milícia, ou por pessoas autorizadas por eles. Mas ninguém enxerga”.
*Os nomes dos personagens são fictícios. Suas identidades foram preservadas por motivos de segurança.
Felipe Betim, El Pais
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