Raquel Muniz viu a Polícia Federal bater na porta da sua casa para prender seu marido um dia depois de exaltá-lo em rede nacional, na votação do impeachment, como exemplo de homem público íntegro. Agora, a própria deputada passa a responder inquérito no STF por lavagem de dinheiro, falsidade ideológica, sonegação fiscal e estelionato
Ramon Brandão*
Quem não se lembra da deputada federal Raquel Diniz (PSD-MG), parlamentar que rasgou elogios ao marido e prefeito de Montes Claros, Ruy Muniz (PSB-MG) na votação que culminou no afastamento da presidente Dilma Rousseff e que, um dia depois, o viu ser preso, acusado de prejudicar voluntariamente hospitais públicos da cidade para favorecer um hospital privado gerido por sua família?
Na ocasião da votação, a deputada afirmou: “Meu voto é […] pra dizer que o Brasil tem jeito, e o prefeito de Montes Claros mostra isso para todos nós com sua gestão”.
No entanto, a dissimulação da deputada acerca das práticas do marido não impediu que a investigação chegasse a ela. O Supremo Tribunal Federal (STF) investiga a deputada, suspeita de – junto ao marido, que cumpre prisão domiciliar – comandar uma organização criminosa responsável por crimes como sonegação fiscal, falsidade ideológica, estelionato, fraude contra credores e lavagem de dinheiro.
Segundo o Ministério Público, foi descoberto um esquema em que a Soebras (Sociedade Educativa do Brasil), entidade filantrópica comandada pela deputada e o marido, auferia e distribuía lucros e rendas por meio de transferências a entidades presididas pela parlamentar, exercendo, portanto, atividade empresarial. A procuradoria apontou que a deputada e o marido assumiram o comando da Soebras com a finalidade de fazer uso do certificado de beneficência, colocando sob administração escolas particulares e cursos preparatórios de propriedade da família para que, então, essas empresas gozassem de imunidade e isenção tributária.
Ainda segundo a Procuradoria Geral da República, as seguintes práticas irregulares foram identificadas: abrir uma filial da Soebras no mesmo endereço da instituição privada a ser incorporada; transferir todo o patrimônio da instituição privada para a Soebras; alterar o quadro societário da instituição para incluir pessoas da família (como filhos e irmãos do casal); manter a inscrição no CNPJ da empresa privada incorporada, movimentando recursos e beneficiando-se de imunidade tributária.
Para o Ministério Público, a operação consiste em distribuir os dividendos destas instituições para os chefes da organização criminosa, fora a blindagem patrimonial dos bens de uso privado do casal.
A Soebras, controlada pelos investigados, possui nada menos que 125 instituições de ensino e saúde, todas detentoras de certificados de benemerência que lhes conferem isenção tributária.
Segundo o ministro Luís Roberto Barroso, relator do inquérito, “o primeiro exame apresenta elementos de participação direta da parlamentar e seu marido (Ruy Muniz) nos fatos narrados. Não se está diante de notícia sem qualquer apoio indiciário ou de notícia fundada somente em denúncia anônima, devendo-se das prevalência, diante disso, ao interesse da sociedade em ver esclarecidos os fatos”.
O ministro autorizou, assim, a quebra do sigilo fiscal das empresas componentes do grupo econômico controlado pelo casal.
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Gostaria de compartilhar uma reflexão com o leitor:
A alguns meses me deparei com um texto – escrito por um americano que, depois de se casar com uma brasileira, viveu aqui durante alguns anos – que transmitia a seguinte mensagem: se você conversar com algum corrupto no Brasil (seja ele um político, um policial, um empresário, etc.) e perguntar a ele o porquê daquilo, ou seja, perguntar como ele pode ser propositalmente corrupto, mesmo sabendo que essa prática prejudica – direta ou indiretamente – milhares de pessoas, ele responderá algo do tipo: “faço isso por minha família” ou “faço para dar melhores condições de vida a minha família”.
Em outras palavras, isso significa que ninguém – ou quase ninguém – é corrupto porque simplesmente goste de fazer o mal. Existe uma ideia que, do ponto de vista do indivíduo corrupto, justifica sua conduta. E o pior: muitas vezes esse tipo de conduta (“faço qualquer coisa por minha família”) ganha uma veste nobre, como se este suposto “sacrifício” fosse, no fundo, um gesto altruísta.
Eis aí, portanto, a gênese do problema: essas pessoas não percebem que altruísmo, que gesto altruísta é, na ampla maioria das vezes, abrir mão de seus próprios interesses para beneficiar um estranho. Eles não compreendem que trabalhar em causa própria, respondendo aos seus próprios interesses, não vai além do puro e simples egoísmo e que, em sociedades desenvolvidas, o senso de cidadania é muito maior e mais importante do que toda e qualquer individualidade.
Moral da história: de hoje em diante, sempre que assistirmos a um parlamentar dizer que faz suas escolhas pela família, por Deus ou “pelo norte de Minas, por Montes Claros, por Minas Gerais, pelo Brasil”, tal como Raquel Muniz e tantos outros o fizeram, que tenhamos claro que isso não passa de uma patologia crônica que se veste de altruísmo moralista, corroendo qualquer imaginário de futuro próspero para o Brasil.
*Ramon Brandão é mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e colabora para Pragmatismo Político
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