O massacre em Orlando pela ótica de um psicanalista e doutor em psicologia
"Há uma regra básica para a qual nunca encontrei exceções, em mais de 30 anos de clínica. Quando alguém se sente compelido a agir para impedir uma conduta sexual diferente da sua é que, de fato, ele está tentando reprimir seu próprio desejo de se engajar nessa conduta diferente. Quem agride os membros de uma minoria sexual está tentando reprimir nele mesmo um desejo que, às vezes, ele nem sequer consegue reconhecer"
Contardo Calligaris*
Na madrugada de domingo passado, um homem de 29 anos entrou na Pulse, uma boate de Orlando, Flórida, frequentada principalmente por lésbicas, gays, bissexuais e transexuais.
Armado de uma pistola 9 mm e de um fuzil semiautomático, ele matou 49 pessoas e feriu 53, algumas das quais ainda estão por um fio.
Enquanto ele estava na boate, das 2h às 5h (momento da irrupção das forças da ordem), o assassino, de religião muçulmana, ligou para a polícia para se declarar “soldado” do Exército Islâmico.
Se o assassino fosse “apenas” um terrorista islâmico, a gente poderia parar por aqui: 1) lamentar que seja fácil, na Flórida, adquirir um rifle e 2) constatar que o terrorista escolheu um alvo apropriado –se seu ódio for pelo Ocidente moderno, ele atacou mesmo uma das conquistas mais expressivas de nossa cultura: a liberdade de seguir e praticar nossa orientação sexual.
Mas a história do assassino é mais banal e mais inquietante. No domingo, soubemos que ele era um homofóbico indignado. O pai do assassino contou à polícia que, recentemente, seu filho tinha ficado furioso quando, num bar de Miami, dois homens tinham se beijado enquanto o filho do assassino, três anos, podia ver.
Há uma regra básica para a qual nunca encontrei exceções, em mais de 30 anos de clínica. Claro, qualquer um pode discordar do desejo e da conduta sexual de outros; mas quando alguém se sente compelido a agir para impedir ou punir uma conduta sexual diferente da sua é que, de fato, ele está tentando reprimir seu próprio desejo de se engajar nessa conduta diferente.
Quem agride, abusa ou tenta inibir os membros de uma minoria sexual está tentando reprimir nele mesmo um desejo que, às vezes, ele nem sequer consegue reconhecer. E, em geral, quem se dá a pena de legislar em matéria de sexo está tentando reprimir nele mesmo um desejo inconfessado de cair na “gandaia” que ele quer conter.
Quando o assassino de Orlando se indignava porque seu filho veria dois homens se beijando, ele temia, de fato, que o filho visse ele, o pai, beijando um outro homem. Extrapolo?
Desde segunda, sabemos por várias testemunhas que o assassino frequentava a boate Pulse havia anos. Também ele era usuário do Grinder, um aplicativo para encontros sexuais diretos na comunidade gay.
É sempre assim: só odiamos a diversidade que detestamos ou receamos em nós mesmos. Um indivíduo sai atirando para matar algo que está dentro dele e que ele não sabe mais como silenciar.
Será que isso significa que o massacre foi a obra de alguém incapaz de conviver com seu desejo? Só isso? Os corpos amontoados em Orlando gritam para que sejamos menos cautelosos –e mais verdadeiros.
O pai do assassino, tentando se diferenciar do filho, declarou que este errou porque os homossexuais serão punidos no inferno, portanto, não é preciso matá-los agora.
Agora, nenhum membro de uma dita minoria sexual se importa em conviver com um cretino que pensa que sabe como os homossexuais serão punidos no Além. O problema é o efeito que essa frase do pai teve sobre o filho, que, de fato, foi para a boate Pulse para matar aquela parte de si que, segundo o pai, merecia as chamas do inferno. Nesse suicídio de seu desejo “culpado”, ele levou consigo dezenas de inocentes.
Entender essa dinâmica é crucial. O discurso homofóbico é um instrumento de propaganda política e religiosa eficiente porque ele instiga os muitos reprimidos e enrustidos a odiar e silenciar seu próprio desejo –que é o que eles querem. Agora, esses reprimidos e enrustidos, assim instigados, tornam-se assassinos de Orlando: lincham ou massacram qualquer um que se pareça com aquela parte deles mesmos que eles foram instigados a suprimir.
Por isso, atrás de cada infeliz que agride o membro de uma minoria sexual, há outros que são responsáveis e deveriam ser imputáveis tanto quanto o agressor –se não mais.
São os que contribuem para que esse infeliz não consiga tolerar seu próprio desejo: o bêbado do boteco que faz piada de veado e traveco, os pastores e os padres que querem “curar” os homossexuais e pregam contra o casamento gay ou contra a licenciosidade e a libertinagem, os deputados que querem infernizar a vida dos transexuais e por aí vai.
Todos alimentam a violência dos reprimidos contra qualquer um que lhes lembre um desejo que está neles e que eles não se permitem.
*Contardo Calligaris é italiano, psicanalista, doutor em psicologia clínica e escritor. Reflete sobre cultura, modernidade e as aventuras do espírito contemporâneo (patológicas e ordinárias)