O massacre em Orlando, o estupro coletivo no Rio de Janeiro e a individualização da violência. Para além da barbaridade e da comoção pública, os dois casos têm mais em comum do que muitos imaginam
Orlando, madrugada de 12 de junho, 50 pessoas são mortas em uma boate LGBT e tantas outras saem feridas. Rio de Janeiro, entre os dias 21 e 22 de maio, uma jovem indicou que foi estuprada coletivamente por cerca de 33 homens.
O que esses dois casos têm em comum, além da barbaridade e de atrair a comoção pública? Muito, e a forma como lidamos com esses casos diz muito de como compreendemos a violência.
No caso do Rio de Janeiro, em pouco tempo já começaram a circular fotos da vítima, print screens de posts do seu Facebook e uma série de informações sobre sua personalidade. Aos poucos, também se descobriu quem eram os estupradores e o mesmo aconteceu com eles: suas informações foram divulgadas para que toda a população soubesse quem foram as pessoas cruéis que cometeram a barbaridade.
No caso de Orlando não foi diferente. Rapidamente todo o mundo ficou sabendo quem era o assassino, que ele era muçulmano, havia jurado lealdade ao Estado Islâmico e mais no final do dia circulou o boato de que era frequentador da casa noturna e que possuía perfil no Grindr, um app de “pegação gay“.
Todo esse volume de dados pessoais sobre as vítimas e os agressores são levantados por duas razões. A primeira razão é a combinação entre a vontade de saber da população e a vontade de vender da mídia, que produz freneticamente informações para a população que deseja vorazmente consumir tudo sobre o novo escândalo global. A segunda razão – e a que me interessa aqui -, é que esses dados são levantados para explicar por que a violência aconteceu, para que as pessoas tentem dar algum sentido a barbaridade e descubram de quem é a culpa.
A partir dos dados levantados, pelo menos, duas teses são frequentemente formuladas. A primeira, de que a vítima é culpada pela violência. Seu comportamento, sua forma de vestir, tudo levava para aquele resultado. A segunda tese, de que o agressor era doente ou uma pessoa com sérios desvios, como no caso específico, o suposto fanatismo religioso islâmico.
Acredita-se que ao investigar a pessoa será possível explicar a violência, mas será mesmo?
Acredito que não.
A busca por informações pessoais da vítima e dos agressores talvez interesse ao sistema penal e suas regras de dosimetria da pena, mas não deveria interessar para o debate público, pois promete explicações que não consegue dar e desvia o foco para o sujeito, quando deveria estar em outro lugar.
Outro ponto em comum entre os dois casos é o fato de que eles não são casos isolados. Com certeza são casos extremos e com dimensões que fogem do comum, mas o estupro de meninas e o assassinato de pessoas LGBT acontecem diariamente, com uma frequência muito maior do que gostaríamos de admitir.
Há uma regularidade perversa nesses casos, que acontecem frequentemente, com requintes de crueldade e tirando esses casos que se despontaram na mídia, tendem a ter uma certa aceitação social. Isso porque não é uma simples violência arbitrária, mas um tipo específico de violência que só pode ser entendido se pensarmos de forma sistêmica e não individual: o caso bárbaro de Orlando, guardadas as devidas proporções, não é diferente do assassinato de uma travesti na avenida de Belo Horizonte. Há fios que conectam todas essas violências e que precisam ser expostos, nomeados e enfrentados: o machismo e a LGBTfobia*.
A LGBTfobia e o machismo são formas estruturais de opressão e a violência física é apenas uma das formas com que se expressam. Essas formas de opressão atravessam e influenciam toda a nossa vida, desde a forma como andamos (“anda como homem!”), nos vestimos (“essa roupa não é adequada para uma mocinha”), quais empregos podemos ter, se é que podemos ter um emprego.
Elas são tão arraigadas em nossa sociedade que ganham uma aparência de “natural”, de modo que, na maior parte do tempo, nem vemos a opressão, ela se torna invisível. A violência física e o estupro são ferramentas que essas opressões têm para nos dominar, para garantir que a opressão estrutural permaneça e se reproduza, para punir aquelas pessoas que ousam fugir dos padrões.
É por isso que a pergunta pelas características individuais dos envolvidos no caso pouco ajuda, pois não dá conta da dinâmica coletiva e sistêmica. Se queremos explicar essas violências, devemos olhar para a nossa cultura que diz incansavelmente que mulheres, gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais são inferiores, que manda tacar pedra na Geni, que chama torcedor de Maria.
Devemos olhar para nosso Estado que pouco faz para interromper essa violência e também para os políticos que se unem para retirar “gênero” dos planos de educação. A individualização desses casos não apenas erra em explicar, como serve de mecanismo para manutenção da opressão como invisível.
Por último, é importante lembrar que se uma violência é sistêmica e estrutural, a resposta não pode ser individual e pontual. Punir esse caso é como tapar apenas um dos buracos de um encanamento todo furado, a água simplesmente continuará a vazar por outros pontos. As respostas devem ser complexas, atravessar todas as dimensões de nossa vida e articular ações no plano coletivo e individual. Para que a mudança ocorra, no plano individual, a reprodução da cultura machista e lgbtfóbica precisa ser interrompida.
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Isso significa um compromisso cotidiano com coisas aparentemente banais, como não tolerar mais uma piadinha lgbtfóbica no grupo de família do whatsapp, por exemplo. No plano institucional, é fundamental exigir do Estado uma série de medidas educativas, preventivas e punitivas como, por exemplo, inserir discussões sobre gênero nas escolas, criar abrigos para pessoas LGBT expulsas de casa, fomentar a produção cultural LGBT, impulsionar a empregabilidade de pessoas trans, investigar e punir os mais variados atos discriminatórios e violentos.
Não quero saber quem era o atirador, a menina ou os 33 homens, os detalhes de suas vidas não me interessam. Na verdade, todos nós criamos as condições para que esse tipo de tragédia continue a acontecer e por isso todos nós precisamos agir para que casos como o do Rio ou de Orlando nunca mais aconteçam.
*O movimento LGBT decidiu na 3ª Conferência Nacional LGBT por adotar oficialmente o termo LGBTfobia para abranger a homofobia, a lesbofobia, a bifobia e a transfobia. Acredito que o termo ainda é inadequado, mas para não perder o foco evitarei esse debate.
Thiago Coacci, Brasil Post
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