Sistemas penal e carcerário do país seguem lógica patriarcal e excludente
Andressa Vilela*, Pragmatismo Político
“Parece que quando você sair vai estar tudo do mesmo jeito, mas não. A vida aqui fora anda. Lá dentro, para.” É assim que Lúcia Santana [1], 40, enxerga o tempo que passou dentro do sistema carcerário. Falar de encarceramento feminino no Brasil é falar de um cenário opressor, de discriminação de gênero e da seletividade penal sofrida por mulheres inseridas em um sistema que foi pensado por uma lógica exclusivamente masculina.
Segundo especialistas da área, através de um conceito trabalhado pela pesquisadora Corina Giacomello, as mulheres que se encontram em situação de prisão sofrem um triplo sentenciamento: o primeiro aparece na assimetria de relações sociais entre homens e mulheres, um cenário que existe antes mesmo do contato com a justiça. Num contexto em que 64,7% das prisões femininas ocorrem por delitos ligados às drogas, o sexismo aparece nas funções desempenhadas por essas mulheres na rede do tráfico. Enquanto os homens assumem papeis centrais e de poder, as mulheres estão na ponta da cadeia, no posto mais vulnerável, lidando com pequenas quantidades de drogas, ou até mesmo desconhecendo seu papel da rede, e muitas vezes se envolvem no crime por influência de seus parceiros.
É assim a história de Lúcia, casada por cinco anos com um traficante de drogas que, segundo ela, nunca pediu para que ela fizesse nenhum serviço. Lúcia, entretanto, passou sua vida se doando para todos a sua volta: trabalhava como cuidadora de idosos, cuidava de seus dois filhos e por muito tempo de seu ex-marido. Quando se viu em uma situação nova, queria viver ao máximo aquela emoção da qual nunca tinha ouvido falar. “Eu ia buscar droga porque assim pelo menos ele economizava. Até o dia que eu fui buscar um fumo pra ele porque o rapaz encarregado do serviço não apareceu e ai foi quando aconteceu isso [ser presa]”, conta.
Na análise de Michael Mary Nolan, advogada de direitos humanos e presidente do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), o contexto socioeconômico também pode explicar o grande envolvimento de mulheres com drogas, pois segundo ela, em um momento de crise econômica, é muito mais fácil para o homem encontrar uma ocupação. “A grande maioria [das mulheres encarceradas] não tinha opção, o grande problema é trabalhar fora de casa. O tráfico permite que ela fique em casa e cuide dos filhos”, explica.
Uma vez que a maior parte das mulheres presas está envolvida com droga, a segunda sentença vivenciada por elas diz respeito ao sistema judiciário, que aplica penas desproporcionais a crimes desse âmbito. No país, desde 2006, com a nova Lei de Drogas, a aplicação de penas ocorre de maneira arbitrária, porque a lei não diferencia claramente o traficante do usuário, deixando essa função a cargo da polícia que efetua o flagrante. Para Nolan, a solução seria abolir o sistema penal e encarar a questão de drogas como um assunto de saúde pública.
Seletividade
De acordo com estudiosos da área, o sexismo também existe no momento em que as mulheres estão na frente do juiz, pois é constante a ideia de que a mulher que ali se encontra rompeu com os papeis socialmente esperados por sua feminilidade e deve ser punida por isso. Segundo a pesquisa “Encarceramento feminino, seletividade penal e tráfico de drogas numa perspectiva feminista crítica”, de Luciana Chernicharo e Luciana Boiteux, o sistema penal possui uma estrutura seletiva, que se recusa em olhar para a família das mulheres que prende, não só como núcleo de convivência, mas também no âmbito das relações de poder. Nesse sentido, o sistema age através de uma seletividade de gênero, que reforça o papel que a mulher deveria exercer numa sociedade capitalista e patriarcal.
Lúcia é um exemplo disso: quando foi presa, estava grávida de três meses. Sentenciada a cinco anos de pena em regime fechado, foi preciso que seu advogado e o marido conseguissem um laudo de gravidez de risco para que ela conquistasse a prisão domiciliar. Sete meses depois, entretanto, quando seu bebê tinha apenas 12 dias de vida, Lúcia voltou para o regime fechado, levando consigo o pequeno Tony, que permaneceu com ela seis meses dentro dos muros da prisão.
É dentro desses muros que se encontra a terceira sentença sofrida por essas mulheres: elas passam por formas particulares de discriminação dentro de um sistema carcerário que se recusa a enxergar as especificidades do gênero feminino. Atualmente, 81% das mulheres presas no Brasil são mães e 56% moravam com seus filhos, além da maioria ser solteira, jovem e ser a principal ou única provedora do lar.
Ainda assim, o sistema penal continua encarcerando sistematicamente essas mulheres, sem priorizar alternativas penais que não as privem da liberdade ou pensar especificamente questões como maternidade, saúde e saúde mental, envolvimento com drogas e a importância do contato com a família, uma vez que as mulheres sofrem com um constante abandono dentro das penitenciárias brasileiras.
A história de Lúcia exemplifica a cegueira do sistema carcerário e penal para a questão de gênero. Apesar de ter conseguido permanecer com seu filho conforme a lei prevê, quando esse tempo acabou, foi obrigada a entregá-lo ao pai. Foram seis meses de contato ininterrupto e, de repente, nada. “Naquele dia eu quis morrer, porque ele era meu companheiro, era só eu e ele. Quando ele foi embora, foi ai que eu me senti presa de verdade. Foi o pior momento da minha vida”, conta. Depois disso, durante os próximos dois anos em que passou cumprindo sua pena, Lúcia só conseguiu dormir com a ajuda de calmantes, numa inquietação constante sobre o bem estar de sua família.
Nesse sentido, em março deste ano, foi sancionado no país o Marco Legal de Atenção à Primeira Infância, que regula políticas públicas para crianças de até seis anos. No âmbito da justiça criminal, ele acrescenta mais três hipóteses de conversão da prisão preventiva em domiciliar: gestantes, mulheres com filhos até 12 anos e homens no caso de ser o único responsável.
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Na opinião de Nolan, a aplicação do Marco depende da maneira como a mídia irá mostrá-lo. A advogada, entretanto, é cética em relação à aceitação da população para a prisão domiciliar, assim como acredita que com a atual formação do Congresso Nacional as pautas de direitos humanos ficarão estagnadas. “Numa economia que quer ordem e progresso, cadeia é a melhor maneira de resolver tudo”, afirma.
[1] O nome da entrevistada foi trocado para preservar sua identidade
*Andressa Vilela é graduanda em Jornalismo pela PUC-SP e colabora para Pragmatismo Político
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