É preciso contextualizar o “Escola Sem Partido”. Em primeiro lugar, o movimento não é isento de partidarismo, uma vez que reúne pessoas que partilham de uma mesma ideia. Em segundo, não há nada de novo no “macarthismo” da proposta: trata-se de uma repetição empobrecida de discursos dos anos 1960 que apenas substituiu a fantasiosa “cubanização” pela “venezuelização” do Brasil
por André Luiz Rodrigues de Rossi Mattos*
Na última década, as práticas e as temáticas desenvolvidas em sala de aula, bem como os conteúdos dos materiais didáticos brasileiros, se viram paulatinamente envolvidos no centro de uma nova polêmica: a suposta doutrinação ideológica de esquerda, que segundo o movimento “Escola Sem Partido”, fundado em 2004 por um advogado, vem sendo crônica no ensino brasileiro nos últimos 30 anos.
Para esse movimento, o ensino no interior das escolas públicas e particulares estaria sendo instrumentalizado para fins político-partidários e ideológicos que seriam tendenciosamente “esquerdistas”. Já nos últimos dois anos, o combate contra essa suposta doutrinação evoluiu do discurso e da propaganda para uma série de propostas legislativas que, em teoria, visam impor a neutralidade do ensino nas salas de aula e conter um suposto abuso na liberdade de ensinar.
A questão não poderia deixar de ser polêmica e assim, contextualizada na crescente divisão política pela qual passamos, está mobilizando amplos setores favoráveis e contrários à proposta. Amostra disso é que além do amplo debate que está repercutindo na imprensa escrita, uma enquete pública aberta pelo Senado Federal sobre o tema, em seu site, já bateu o recorde de votação desde a criação da ferramenta online Consulta Pública, em 2013.
Frente a isso, é preciso ser crítico, definir que movimento é esse e contextualizar as motivações que norteiam as propostas do “Escola Sem Partido”, que como pesquisador de movimentos similares entre os anos de 1930 e 1960, gostaria de contribuir com uma breve reflexão em três ou quatro tópicos.
Em primeiro lugar, o movimento “Escola Sem Partido” não é exatamente isento de partidarismo, uma vez que reúne um grupo de pessoas que partilham de uma mesma ideia, lutam por um mesmo ideal, possuem uma mesma interpretação do mundo educacional e colaboram com alguma organicidade entre si. Isso, por si, apenas indica um tipo de movimento social, que como todo movimento, independente de ser ou não diretamente filiado a alguma agremiação eleitoral institucionalizada, toma partido da realidade e assim, absolutamente não possui neutralidade.
Além disso, todo movimento sempre está inserido em um leque de relações que demarcam os limites das suas ideias. No caso do movimento “Escola Sem Partido”, seus relacionamentos passam por concepções radicalmente contrárias as posições consideradas de esquerda, o que indica seu campo ideológico, mesmo quando não se pronuncia favorável a nada. Não por menos, os projetos legislativos inspirados e apoiados pelo movimento foram apresentados por legisladores contrários às concepções consideradas de esquerda que, pela divisão clássica utilizada para distinguir os campos na política, são conservadores de direita.
A leitura dos artigos e dos depoimentos inseridos no site do movimento também são fontes importantes para demonstrar que a sua fúria está voltada ao questionamento da realidade, principalmente com relação às disciplinas de História, Geografia e Sociologia, mas somente quando essas críticas aparentam se identificar com ideias do campo da esquerda. O ideal, assim, é que em primeiro lugar o movimento “Escola Sem Partido” abandone o mito da inexistente neutralidade apartidária e assuma a sua identidade no campo de disputa das ideias sociais e políticas: é um movimento que quer por fim ao ensino crítico, é conservador, é identificado com o status quo, que é alvo dos questionamentos nas salas de aula, e que atua politicamente no campo da direita, conforme o seu leque de críticas e relações indica.
Em segundo, não há nada de novo no “macarthismo” do “Escola Sem Partido” que não uma repetição empobrecida de discursos dos anos de 1960 que apenas substituiu a fantasiosa “cubanização” pela “venezuelização” do Brasil. Entre 1950 e 1960, o anticomunismo conservador, contextualizado pela Guerra Fria, criou uma fábrica ilusório de que o país estaria sendo tomado pelos comunistas e inflamou o Brasil com um grande engodo que se voltou com força para o lado da educação.
Segundo o discurso de atores sociais conhecidos na época, como Gustavo Corção, Carlos Lacerda ou a revista anticomunista Ação Democrática, publicada pelo Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), existiria um plano arquitetado por Moscou para doutrinar os jovens brasileiros. Segundo esse plano, professores marxistas estariam supostamente convertendo os(as) estudantes brasileiros, pois, após tornarem-se comunistas, se colocariam a serviço da capital soviética para subjugar o Brasil.
Nesse contexto, a literatura crítica e alguns livros didáticos também se tornaram alvos da censura anticomunista, como o chamado “Livro Único” de Nelson Werneck Sodré, o que fez com que a marcha da família paranaense, que apoiou o Golpe Civil-Militar de 1964, fosse rebatizada para uma lustrosa e contraditória “Marcha em Favor do Ensino Livre”. O mais perigoso do anticomunismo no campo da educação no contexto do Golpe de 1964, é que assim como o “Escola Sem Partido” faz hoje, o professor crítico foi confundido com um suposto doutrinador marxista ou esquerdista, tornando-se objeto de análise criminal que, na Ditadura Militar, foi particularmente perseguido por ser considerado um subversivo perigoso à Segurança Nacional.
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Hoje, o movimento “Escola Sem Partido” está construindo bases ideológicas que lembram esse mesmo contexto: um engodo que propositalmente confunde questionamento com doutrinação e que criminaliza institucionalmente o pensamento crítico.
Em terceiro, é importante constatar que, na prática, as propostas legislativas inspiradas no movimento “Escola Sem Partido” não valem para as escolas privadas, que segundo seu Anteprojeto Federal de Lei, teriam apenas que ter o consentimento dos pais de seus alunos para que ministrassem conteúdos supostamente doutrinadores. Isso quer dizer que as escolas particulares continuarão formando estudantes críticos(as) e com capacidade de reflexão para que consigam protagonizar mudanças sociais e políticas em seu tempo. Já os(as) estudantes da rede pública, para quem de fato a proposta dos “sem partido” vale, serão cerceados(as) de uma lista considerável de temas que os defensores da “Escola sem Partido” erroneamente imaginam como doutrinação.
Desse modo, estudantes da rede pública terão um aprendizado acrítico e sem a multiplicidade de opiniões que marca o corpo docente de qualquer instituição, tornando o ensino público qualitativamente ainda mais distante do ensino privado.
Por último, por ter uma visão fragmentada, obscurecida, tendenciosa e partidarizada da realidade das salas de aula, o movimento “Escola sem Partido” comete um grande equívoco por não perceber que o espaço escolar é múltiplo e plural e que o(a) professor(a) também está incluído nessa pluralidade na relação com seus alunos(as). A escola é um lugar de encontros onde estão reunidos diferentes valores, de diferentes famílias, concepções políticas e práticas sociais e religiosas. Além disso, a escola é uma reunião de culturas, anseios, questionamentos, defesas e angústias próprias da juventude que, em contato, fusão ou disputas com preocupações e normas de outras gerações (funcionários, professores, diretores, etc) formam um corpo social multifacetado.
A relação entre o corpo discente e docente também acontece de modo plural e dinâmico, envolvendo tensões e entendimentos. Assim, não existe um único discurso que emana do corpo docente, mas muitos! Alunos e alunas tem aulas ministradas por professores progressistas, conservadores, religiosos, ateus, questionadores, conteudistas, etc., e, como ninguém é um recipiente vazio, os(as) estudantes questionam o discurso de um(a) professor(a), concordam com outro(a) ou discordam de ambos(as).
O mais importante, no entanto, é que nessa dinâmica, alunos(as) e professores precisam lidar com problemas e novidades todos os dias, se confrontar ou concordar a cada conteúdo, debater, se entender ou desentender. Não existe público passivo em sala de aula, pois alunos e alunas confrontam os conteúdos sociais e políticos que absorveram nos seus mais diversos meios com os questionamentos próprios do ambiente escolar. Isso é parte do aprender, o que só acontece em espaços plurais, críticos e multifacetados que, infelizmente, não são compreendidos por profissionais que não foram formados(as) com esse intuito, assim como o(a) professor(a) pode não dominar os procedimentos médicos ou entender o funcionamento de um tribunal.
*André Luiz Rodrigues de Rossi Mattos é formado em Ciências Sociais, Mestre em História, professor e autor do Livro “Uma História da UNE (1945-1964)” — colaborou para Pragmatismo Político.
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