O dia em que o STF negou pedido de um juiz que exigia ser chamado de ‘doutor’
Após ser chamado pelo porteiro do prédio onde mora de “você”, juiz solicitou diretamente ao funcionário que se dirigisse a ele como “doutor”. O porteiro rejeitou o pedido e o magistrado ingressou na justiça para que a exigência fosse cumprida sob pena de multa diária
Ainda em 2007, escrevi sobre a história do juiz Antonio Marreiros da Silva Melo Neto.
Vou refrescar a memória dos leitores: ele é um que queria obrigar o funcionário de seu condomínio a chamá-lo de “doutor” e “senhor”. Como não conseguiu fazer isso por meio da simpatia, pura e simples, apelou à máquina do judiciário (que conhece bem, por ser juiz), para tentar obter o tratamento à força.
Lá foi o juiz Marreiros entrar para a história do judiciário brasileiro, como um desexemplo. Não sei quanto a vocês, mas me lembrarei para sempre do nome dele. E, se um dia vier a encontrá-lo em minha frente, farei questão de chamá-lo de “você” — ou, mais mineiramente, de “cê”. Acho o caso tão anedótico e, ao mesmo tempo, tão absurdo, por chegar à mais alta esfera do judiciário — o STF — depois de longos dez anos de tomada de tempo e dinheiro do nosso sistema judiciário, que tenho convicção de que ele deve ser estudado nas boas escolas de direito do país. Se não é, pelo menos vale um belo post para este blog. Recomendo a leitura até o fim, queridos leitores, porque trata-se de uma verdadeira fábula:
CAPÍTULO 1 – DA BRIGA DE CONDOMÍNIO
Tudo começou com um vazamento no prédio. Ele pediu a ajuda do porteiro para resolver o problema, que, por não ter a autorização da síndica, negou o socorro. Os dois discutiram e o porteiro passou a chamar Marreiros sempre de “você” e “cara”, enquanto chamava a síndica de “dona” (daí surge a ofensa maior, reparem bem!). Como se vê na própria apelação do juiz, ele chegou a interfonar para o porteiro e insistir em várias ocasiões que fosse chamado de “senhor” e “doutor”. O empregado, antipatizado, respondeu: “Não vou te chamar de senhor não, cara!” e acrescentou: “Fala sério!”. Marreiros retrucou que “não é cidadão comum, mas juiz”. Pneus de seu carro começaram a aparecer furados. Enfim, típico barraco de condomínio.
CAPÍTULO 2- DO COLEGA QUE CONCORDOU COM O JUIZ
Inconformado com as ofensas do displicente porteiro e com o dar-de-ombros da síndica, Marreiros decidiu entrar com uma ação na Justiça, em setembro de 2004 — um mês depois do início das discussões — pedindo para ser tratado por “senhor” e “doutor”, sob pena de multa diária que seria fixada, e pedindo ainda indenização por danos morais, a ser paga pela síndica e pelo condomínio, no valor de no mínimo 100 salários mínimos (o que, em valores de hoje, daria mais de R$ 70 mil). Leia a petição inicial dele.
A juíza Simone Ramalho Novaes, da 7ª Vara Cível de São Gonçalo, negou o pedido de liminar, e Marreiros recorreu. Na segunda instância, o desembargador Gilberto Dutra Moreira concordou com Marreiros e concedeu a liminar, decidindo: “Tratando-se de magistrado, cuja preservação da dignidade e do decoro da função que exerce, e antes de ser direito do agravante, mas um dever e, verificando-se dos autos que o mesmo vem sofrendo, não somente em enorme desrespeito por parte de empregados subalternos do condomínio onde reside, mas também verdadeiros desacatos, mostra-se, data vênia, teratológica a decisão do juízo a quo ao indeferir a antecipação de tutela pretendida. Isto posto, defiro-a de plano. Oficie-se, inclusive solicitando as informações e indagando sobre o cumprimento do art. 526, do CPC. Intimem-se os agravados para contra-razões, por carta.”
Na época, o presidente da OAB-RJ, Octávio Augusto Brandão Gomes, repudiou a decisão, dizendo: “Todos nós somos seres humanos. Ninguém nessa vida é melhor do que o outro só porque ostenta um título, independente de ter o primeiro ou segundo grau completo ou curso superior”.
Apesar disso, em março de 2005, a 9ª Câmara Cível do TJ confirmou a decisão do desembargador Gilberto Dutra Moreira, por 2 votos a 1.
CAPÍTULO 3 – DA AULA DE BOM SENSO
Pouco depois, em maio de 2005, Marreiros teve sua primeira grande derrota: o juiz Alexandre Eduardo Scisinio, da 9ª Vara Cível de Niterói, foi decidir o mérito da ação, não só a antecipação de tutela (que tinha sido favorável a Marreiros até então). E sua decisão foi um poço de sabedoria e bom senso. Ela pode ser lida na íntegra AQUI, mas seguem alguns trechos:
“Embora a expressão “senhor” confira a desejada formalidade às comunicações — não é pronome —, e possa até o autor aspirar distanciamento em relação a qualquer pessoa, afastando intimidades, não existe regra legal que imponha obrigação ao empregado do condomínio a ele assim se referir.”
“O empregado que se refere ao autor por “você”, pode estar sendo cortês, posto que “você” não é pronome depreciativo. Isso é formalidade, decorrente do estilo de fala, sem quebra de hierarquia ou incidência de insubordinação.”
“Tratamento cerimonioso é reservado a círculos fechados da diplomacia, clero, governo, judiciário e meio acadêmico”
“Mas na relação social não há ritual litúrgico a ser obedecido. Por isso que se diz que a alternância de “você” e “senhor” traduz-se numa questão sociolingüística, de difícil equação num país como o Brasil de várias influências regionais. Ao Judiciário não compete decidir sobre a relação de educação, etiqueta, cortesia ou coisas do gênero, a ser estabelecida entre o empregado do condomínio e o condômino, posto que isso é tema interna corpore daquela própria comunidade.”
UM BREVE PARÊNTESIS
(Se ele realmente tivesse conseguido uma decisão judicial favorável, de que adiantaria? Será que o funcionário iria cumpri-la? Se não cumprisse, ainda mais antipatizado com o magistrado depois dessa peleja jurídica, quem o iria punir? Ele seria preso? Multado? O juiz andaria com um gravador para mostrar que ele descumpriu a determinação? E quantos anos depois conseguiria a execução da “pena”? Enfim, fico só a pensar.)
EPÍLOGO
Marreiros ficou inconformado com esta sentença e apelou para o TJ de novo, “dizendo que a conduta da síndica é pior do que um soco na face”. Perdeu. Em 2006, enviou Recurso Extraordinário ao STF, dizendo que o caso diz respeito à Constituição “por envolver os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade”.
No dia 22 de abril de 2014, o ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo, pôs fim à novela, negando o pedido de Marreiros, apenas poucos dias depois de o STF julgar o caso de um ladrão de galinhas que já havia até devolvido as aves furtadas. Leia a decisão de Lewandowski.
MORAIS DA HISTÓRIA
1) Nosso sistema judiciário precisa de reforma urgente. Não é cabível que se despenda esforço, equipe, dinheiro e tempo (dez anos!) para julgar uma rixa de condomínio. Não é cabível que se despenda o mesmo por um furto de galinhas. Num Brasil de mensalões petistas e tucanos, de operações lava-jatos, castelos de areia, satiagrahas, sanguessugas, navalhas, caixas de pandora, etc ad nauseam, não é possível que nosso judiciário tenha que perder tempo para acalmar o incômodo de um juiz que ficou #chatiado.
2) O juiz Marreiros terá que se conformar em ser chamado de você. Ou pode fazer duas coisas:
a] se mudar de condomínio, para um no qual seja melhor atendido pelos síndicos e porteiros, com os quais poderia até travar alguma amizade;
b] fazer doutorado na área de linguística (após esses dez anos de aula forçada que ele teve que tomar na área), para ser chamado de doutor onde esta forma de tratamento funciona bem: no meio acadêmico.
*Kika Kastro é jornalista, formada em Comunicação Social pela UFMG