O 'Evangelho da Mulher de Jesus' é verdadeiro ou uma fraude?
Após minuciosa apuração sobre a procedência do manuscrito, pesquisadora da Universidade Harvard admite, pela primeira vez, que ‘Evangelho da mulher de Jesus’ é, provavelmente, uma fraude
O “Evangelho da Mulher de Jesus” – um misterioso fragmento de papiro de 1.300 anos de idade no qual o próprio Cristo afirma ser casado – provavelmente é uma fraude, admitiu a historiadora Karen King, da Universidade Harvard (EUA) responsável por publicar o texto pela primeira vez.
Revelações sobre o proprietário do papiro, Walter Fritz, um empresário alemão radicado na Flórida, vieram a público num artigo que estará na edição de julho da revista americana “The Atlantic”. A investigação da revista revelou fortes indícios de que Fritz tinha tanto capacidade técnica quanto motivação para forjar o texto.
“Ele basicamente mentiu para mim”, declarou à publicação Karen King, especialista em história do cristianismo primitivo que concordou em analisar o fragmento a pedido do empresário, sob a condição de não revelar o nome dele, e que divulgou seu conteúdo durante uma conferência em Roma, em 2012.
Como era de se esperar, o “Evangelho da Mulher de Jesus” chamou a atenção de milhões de pessoas mundo afora. Em copta, o idioma nativo do Egito na época do Império Romano, o texto (do tamanho de um cartão de crédito) continha frases como “Jesus disse a eles: ‘Minha mulher'” e “Quanto a mim, habito com ela”. Com base em outros textos cristãos antigos, especulou-se que a mulher seria Maria Madalena.
Parecia ser um manuscrito tardio demais para trazer informações relevantes sobre a figura história de Jesus, tendo sido escrito centenas de anos depois de sua morte. Mesmo assim, Karen defendia que a existência do fragmento poderia influenciar o debate sobre sexualidade e celibato nos primeiros séculos do cristianismo.
Para ela, o papiro era um indício de que ao menos algumas correntes cristãs não viam incompatibilidade entre casamento (e sexo) e liderança religiosa.
Logo que imagens do fragmento vieram a público, porém, especialistas questionaram sua autenticidade. Havia esquisitices na caligrafia e no aspecto “limpo” do papiro. E trechos pareciam ter sido simplesmente copiados de outro manuscrito copta famoso, o Evangelho de Tomé, que contém enigmáticos ensinamentos atribuídos a Jesus.
Em 2014, essas dúvidas receberam um golpe quando a Universidade Harvard anunciou o resultado de testes de carbono-14 (método padrão de datar matéria orgânica antiga, o que inclui o papiro) e de análises da tinta. O papiro em si teria sido produzido por volta do ano 750 da Era Cristã, e a tinta era semelhante à encontrada em manuscritos típicos da época entre os anos 400 e 800 d.C.
Isso, porém, não calou os críticos: não seria impossível que um falsificador tivesse comprado um papiro antigo e criasse uma tinta caseira com características semelhantes às usadas entre o fim da Antiguidade e o começo da Idade Média para tentar enganar os especialistas.
COPTA E PORNÔ
Disposto a desfazer o mistério, o repórter Ariel Sabar, da “Atlantic”, passou a rastrear como o papiro teria sido passado de mão em mão ao longo das décadas, e o resultado foi uma trama bizarra envolvendo egiptologia, misticismo e pornografia caseira que parece ter saído do best-seller “O Código da Vinci”.
Walter Fritz dissera ter comprado o papiro de seu conterrâneo Hans-Ulrich Laukamp, dono de uma pequena fábrica de peças automotivas que também se mudara para os EUA. Laukamp, por sua vez, teria mostrado o fragmento, nos anos 1980, a dois egiptologistas da Universidade Livre de Berlim, que assinaram cartas dizendo ter identificado trechos de antigos textos cristãos no papiro.
Acontece que Fritz não guardou os originais de nenhum desses documentos – só cópias ou fotografias. Além disso, ele declarou à historiadora que era só um colecionador curioso e que não tinha ligações com a comunidade acadêmica.
Não era verdade, descobriu o repórter do “Atlantic” após viagens para a Alemanha e para a Flórida. Fritz fizera mestrado em egiptologia na Universidade Livre de Berlim (poderia, portanto, forjar o texto).
Laukamp, suposto dono original, era um sujeito simples que nunca se interessou por antiguidades ou cristianismo primitivo, segundo seus parentes –mas foi sócio de Fritz, que poderia ter forjado a assinatura do ex-sócio no contrato de venda.
Como se não bastasse, a mulher de Fritz é autora de um livro de “escrita automática” no qual afirma receber revelações místicas de anjos, e os dois mantiveram durante anos um site pornô caseiro no qual o alemão exibia filmes dela fazendo sexo com outros homens (cerimônias com sexo grupal teriam sido parte das tradições de antigos grupos cristãos não ortodoxos, segundo seus detratores).
Em entrevista à “Atlantic”, Fritz alegou ter sido abusado sexualmente por um padre na infância e defendeu que os Evangelhos gnósticos –que costumam dar papel de destaque a Maria Madalena– seriam historicamente mais confiáveis do que os da Bíblia, opinião que quase nenhum especialista adota hoje. Fritz ainda convidou o repórter da revista a escrever um romance no estilo de “O Código da Vinci” em parceria com ele.
Tudo isso levou Karen King a admitir que “a balança agora pende a favor da ideia de falsificação”, já que Fritz omitiu todas as informações relevantes sobre si mesmo. “Nunca mais concordarei em fazer esse tipo de estudo com base num doador anônimo. Aprendi minha lição”, declarou ao jornal “Boston Globe”.
Para o frei Jacir de Freitas, franciscano que é um dos principais especialistas do Brasil em textos cristãos apócrifos –que não foram incluídos na Bíblia–, o aparecimento de falsificações desse tipo é natural, considerando o imenso interesse do público sobre o que teria realmente acontecido durante a vida de Jesus.
Por outro lado, isso não altera o fato de que a participação das mulheres na Igreja primitiva provavelmente foi muito intensa, lembra. “Certamente havia mulheres com papel de liderança ativa, e Maria Madalena se tornou uma espécie de símbolo para elas”, afirma.
Reinaldo Lopes, Folhapress