Os pacientes do Hospital Colônia eram obrigados a andar nus, defecar no chão em que dormiam e enterrar seus companheiros de internato. Por que esse campo de concentração financiado pelo Estado brasileiro permaneceu ativo durante tanto tempo? Tamanha barbárie jamais deve ser esquecida
Luis Gustavo Reis*
Vários episódios mancharam de vermelho-sangue a história brasileira. Desde que os portugueses aqui aportaram, são reiteradas as iniciativas de desrespeito a um dos direitos mais elementares dos seres humanos: a dignidade.
Foram quase quatro séculos de sistemática exploração da mão de obra escrava. Submetidos a uma rotina exaustiva e ao confinamento nas repugnantes senzalas, os escravizados sangraram no país que, apesar de erigido sobre suas costas, não lhes garantiu credenciais para uma cidadania plena.
Aos povos indígenas, foram imperativos desde sempre a pilhagem e o extermínio, desconsiderando-se suas culturas, tradições e experiências. Em suma, não eram gente, já que não tinham “nem fé, nem lei, nem rei”. O legado da empreitada constitui-se de um poroso rastro de sangue e de uma dívida histórica para com esses povos, mais pesada que nosso planeta.
As iniciativas das autoridades públicas, que em diferentes momentos históricos contaram com a conivência da sociedade civil, construíram um país mórbido. O cimento que amalgamou a chamada “nação brasileira” foi feito às custas do sofrimento de milhões de desclassificados sociais.
Entre os diversos capítulos macabros da nossa história, um ocorreu na fria cidade de Barbacena, Minas Gerais. De 1903 até meados da década de 1980, a cidade abrigou um verdadeiro matadouro humano: o Hospital Colônia de Barbacena.
Conhecido como Colônia, o hospital psiquiátrico recebia centenas de pessoas. Eram alcoólatras, homossexuais, prostitutas, epiléticos, mendigos, mães solteiras, filhas que perderam a virgindade antes do casamento, esposas de maridos que queriam se ver livres delas para se aventurar nos braços de amantes. Em síntese, um lugar onde a sociedade depositava todos que considerava inconvenientes e inadequados para o convívio social.
Não havia nenhum parâmetro para internação no Hospital Colônia. Os indesejados eram enviados a Barbacena no chamado “trem de doidos”, que partia de várias regiões do país. A maneira como os pacientes eram abarrotados nos vagões de carga lembrava os campos de concentração nazistas e os porões dos navios negreiros.
A princípio, o hospital dispunha de 200 leitos, mas chegou a abrigar 5 mil pacientes em 1961, quando ficou nacionalmente conhecido pela forma brutal como tratava seus pacientes.
A maioria das internações era compulsória. Aproximadamente 70% dos internos não tinham diagnóstico de transtornos mentais, mas precisavam ficar confinados, longe das vistas daqueles que os consideravam “loucos”.
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Nas frias repartições do Colônia, os pacientes eram submetidos a bestiais procedimentos: lobotomia, eletrochoque, espancamento, afogamento e práticas diversas de tortura. Foram décadas de repetidos crimes de lesa-humanidade sem que ninguém se comovesse. Havia uma omissão coletiva e quem sabia dos atos violentos, ou participava deles, preferia fingir que aquilo não estava acontecendo. A violência foi naturalizada e o sofrimento dos internos, banalizado.
Enjaulados em pequenas celas, crianças, adultos e idosos dormiam no chão, passavam fome, frio, sede e morriam aos montes. Sem acesso à alimentação adequada, comiam ratos, comida estragada, fezes, ou seja, ingeriam tudo o que podiam para saciar a fome e a sede, inclusive urina e água de esgoto.
Em momentos de superlotação do hospital, morriam 16 pessoas por dia. Seus corpos, quando não descartados em cemitérios clandestinos, eram vendidos para diferentes faculdades, entre elas a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), para servirem de objeto de estudo e treinamento aos futuros médicos.
A pergunta, caro leitor, é: Por que esse campo de concentração financiado pelo Estado brasileiro permaneceu ativo durante tanto tempo?
A resposta é complexa, mas é notório que nenhuma instituição violenta se mantém sem a complacência e colaboração da população. Médicos, enfermeiros, policiais, funcionários, vizinhos e uma parcela significativa da sociedade foram coniventes com o morticínio em Colônia.
Saldo da selvageria: 60 mil mortos e um número incalculável de vidas e famílias despedaçadas. Mais de um século após a inauguração daquele que se tornou o mais brutal dos manicômios, poucos brasileiros se recordam dos horrores a que os internos eram submetidos e, até o momento, os responsáveis por esses crimes não foram punidos.
O genocídio de Colônia é uma chaga entranhada definitivamente em nossa história. Representou um crime hediondo não apenas contra aquelas pessoas mas contra toda a humanidade.
Tamanha barbárie jamais deve ser esquecida!
*Luis Gustavo Reis é professor, editor de livros didáticos e colabora para Pragmatismo Político
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