O autismo se manifesta de forma diferente em meninas. É preciso ficar atento: casos mais leves em meninas estão sendo confundidos com outros transtornos, como TOC e TDAH, diz especialista em neurociências e neuropsicologia
Os critérios utilizados para diagnosticar o autismo são baseados nos comportamentos sobretudo masculinos. Assim, casos mais leves em meninas estão sendo confundidos com outros transtornos, como TOC e TDAH.
Até recentemente, o caso da famosa zootecnista americana Temple Grandin, conhecida mundialmente por seu trabalho de conscientização do autismo, era considerado exceção. Afinal, pela visão tradicional do autismo, de cada cinco crianças que apresentam o distúrbio, apenas uma é menina – sendo que, geralmente, nelas os sintomas se manifestam de forma mais severa. Entre as pessoas com autismo e inteligência acima da média, como Temple, a proporção é ainda mais discrepante: somente uma em cada dez é menina. Recentemente, no entanto, a ciência passou a rever essas estatísticas. Estudos mostram que o mais provável é que as meninas que apresentam autismo de alto funcionamento estão escapando do radar dos médicos.
Pesquisadores holandeses investigaram de 2.275 pacientes com o transtorno e constataram, em 2012, que os casos mais leves (conhecidos como Síndrome de Asperger), são identificados em média 20 meses mais tarde em meninas. No mesmo ano, cientistas do King´s College, de Londres, analisaram os diagnósticos de 15 mil pacientes e constataram que as meninas precisam apresentar dificuldades comportamentais ou intelectuais mais severas para serem diagnosticadas, o que diminui consideravelmente a chance de entrarem para a extremidade mais funcional do espectro.
A principal razão para essa dificuldade na identificação dos sintomas nas meninas está no simples fato de que os critérios de avaliação foram feitos com base em padrões essencialmente masculinos. Um dos primeiros sinais buscados por especialistas nas avaliações, por exemplo, é o interesse específico incomum. Enquanto em meninos isso fica evidente, nas garotas passa facilmente despercebido, pois elas tendem a direcionar seu interesse a assuntos que não necessariamente são considerados estranhos para sua faixa etária.
Mas o fator que mais atrapalha o diagnóstico está no comportamento social das meninas com autismo: de forma diferente dos meninos, elas conseguem disfarçar suas dificuldades sociais com sua habilidade especial em copiar o comportamento de outras meninas. Essa camuflagem tende a ser mantida durante a vida acadêmica e mesmo mais tarde, no ambiente de trabalho.
Assim, tentam se ajustar às regras sociais com estratégias mais intelectuais e menos intuitivas. De acordo com as pesquisadoras Judith Gould e Jacqui Ashton-Smith – duas referências mundiais no estudo do autismo em mulheres -, além dessa habilidade de mímica, as garotas do espectro, diferentemente dos meninos, tendem a se envolver quando pequenas em brincadeiras de faz de conta e se engajar em um mundo de fantasia e imaginação com facilidade.
A professora Francesca Happé, do departamento de Neurociência Cognitiva do Kings College, acredita que a camuflagem social típica feminina é um dos principais entraves para a identificação precoce dos casos leves. Ela defende que os médicos investiguem mais profundamente o comportamento entre as meninas, procurando saber o nível de ansiedade e stress que as interações sociais provocam. Happé acredita que fator cultural também possa exercer um papel nessas diferenças, já que as expectativas com relação às interações sociais e comunicação entre meninas é mais alta, o que pode levar a um estímulo maior desde cedo.
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O que acontece com frequência é a interpretação errada de sintomas como ansiedade, problemas alimentares e comportamentos rígidos e repetitivos nas consultas médicas. Assim, muitas garotas atravessam a infância e a puberdade sem saber a real origem de suas dificuldades sociais e sem receber os estímulos adequados para desenvolverem as questões mais desafiadoras. Muito comumente são diagnosticadas com transtorno obsessivo compulsivo (TOC) ou recebem o diagnóstico-curinga de transtorno de hiperatividade e déficit de atenção (TDAH) – que devido a seus critérios amplos e subjetivos é identificado de forma rápida e superficial, o que ajuda a mascarar as reais causas dos sintomas relacionados.
Também é bastante comum que se encaixem no perfil de distúrbios alimentares. Uma meta-análise de 2015 liderada pela pesquisadora Kate Tchanturia, também do King´s College, contatou que 23% das meninas com anorexia nervosa apresentaram sintomas de autismo. Essa relação se dá como consequência de vários fatores: a típica aversão a vários tipos de alimentos, a ansiedade, medo de crescer e sair de perto dos pais, dificuldade em aceitar as mudanças no corpo e busca por mais aceitação social na adolescência.
Segundo Happé, a ciência tem muito a descobrir sobre como o transtorno se manifesta nas mulheres. Afinal, se as meninas da ponta funcional do espectro não estão sendo reconhecidas, também são pouco estudadas. Mas essa escassez de informações está com os dias contatos. Pesquisadores das Universidades de Harvard, da Califórnia e de Washington estão conduzindo uma ampla pesquisa longitudinal para investigar todos os aspectos possíveis de como o autismo se manifesta em meninas desde a infância até o início da idade adulta.
Segundo o cientista Kevin Pelphey, diretor do departamento de Neurociências de Desenvolvimento da Universidade de Yale, os resultados iniciais já estão comprovando que tudo o que a ciência sabia sobre o autismo é verdade apenas para meninos. O fato de autistas usarem áreas diferentes do cérebro para processar informações sociais – como gestos e movimentos oculares – não se aplica entre meninas. O que já puderam perceber é que meninas do espectro apresentam atividade cerebral reduzida, com relação a garotas típicas, em áreas relacionadas à socialização. Mas em um nível que, em meninos, poderia ser considerado dentro da curva da normalidade.
Existem também evidências de que em meninas o fator genético é mais forte – uma conclusão que resulta da constatação de que elas têm uma chance bem maior de ter irmãos com traços autistas que o contrário. Alguns também defendem a relação do transtorno com a exposição a altos níveis de certos hormônios, como testosterona: um estudo sueco de 2015 apontou que mulheres com ovários policísticos têm 59% mais chances de ter um filho com autismo.
A boa notícia é que o assunto emergiu com força e grande repercussão. Hoje, diversos pesquisadores ao redor do mundo, inclusive mulheres com autismo funcional e pais de meninas com o mesmo diagnóstico, estão determinados a desvendar o cérebro autista feminino. Essa nova perspectiva irá facilitar, muito em breve, identificação precoce e, assim, tratamentos mais eficazes e dirigidos às necessidades específicas das meninas.
Michele Müller, Brasil Post
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