De Dilma Rousseff a Marcela Temer, a mulher não pode ocupar outro lugar que não seja o de primeira-dama e isso ficou claro nas reações da mídia corporativa. Quando se ousou sair da regra, o preço foi alto
José Isaías Venera*, Observatorio da Imprensa
Em O estrangeiro, primeira faixa do álbum de 1989, Caetano Veloso canta “o macho adulto branco sempre no comando”. De lá, o comando, no espectro da política nacional, cedeu o lugar temporariamente, mas a reação resultou no recente golpe midiático–empresarial–judicial, para usar a expressão de Juremir Machado da Silva. Golpe escondido na forma (rito) e à revelia do conteúdo.
Quando a forma não mais prescinde do conteúdo, o sentido que se fabrica segue à máxima de que o discurso é que cria o objeto. Basta ter convicção. O jornalismo não foge à regra. A forma no impresso não se define somente pela configuração da mancha sobre o papel que forma as imagens, textos, linhas etc. O próprio formato já se impõe a nós como se fosse o palco pelo qual os elementos da representação emergem para, imaginariamente, se passar pelo representado.
Mesmo dobrado ao meio, o jornal Folha de S.Paulo se destaca nos expositores das bancas de revistas. A diagramação usa a dobradura ao seu favor. Na edição de 6/10, da parte superior do jornal standard, erguia-se uma linda mulher numa imagem vertical – o conteúdo até então produzido por outro periódico era de uma bela recatada e do lar. Ao lado da foto, a chamada da análise de Natuza Nery: “Uso da imagem de Marcela pelo governo Temer veio para ficar”. Parece que a grande mídia comercial, a mesma que impulsionou o golpe, aderiu por completo o lugar de porta voz dos marqueteiros. De Doria a Marcela, o glamour da elite econômica e política tornou-se o meio para ganhar popularidade, seguindo modelo que nos faz lembrar a revista Caras, quando a maioria paga pelo periódico para alimentar suas fantasias. Ou, talvez, o periódico e seus patrocinadores sonham que todo cidadão mediano (versão de medíocre) sonha em ter o status que a concentração de renda e a posição social podem proporcionar.
A abertura da análise – que ocupa um espaço pequeno na página A6 e de destaque maior na capa – é digna de conto de fadas: “Nunca o atual governo sorriu tanto. Fotos e vídeos do discurso de estreia de Marcela Temer pululavam nas redes sociais.” Será que pululam tanto quanto as cifras de investimentos publicitários nos conglomerados de comunicação? Já, na versão online, a foto que decora o glamour do pronunciamento de Marcela impressiona mais pelo sentido figurativo do que literal: “A primeira-dama Marcela Temer participa do lançamento do programa Criança Feliz.” É inevitável ler a palavra criança (na versão online fica bem abaixo de sua imagem) e não associá-la à primeira-dama, que se comporta como uma ninfeta se banhando, pela primeira vez de forma explícita, com o mundo da política.
A fala metálica de Marcela
Mas as pérolas mesmo podiam-se ler nos comentários na versão online, que, mesmo com a advertência de que “o comentário não representa a opinião do jornal”, todos estão na mesma onda de otimismo, o que materializa o lugar discursivo do jornal, mas sem se mascarar numa estilística que beira a breguice. Em um deles: “Não há como negar que é uma bela imagem, bem melhor do que a carantonha enfezada da Dilma.” Ora, atribuir valor pela aparência e expressão não é diferente do que comprar o produto pela embalagem, ou a cerveja tal porque “vai verão, vem verão”.
É este o lugar que a mídia conservadora, machista e elitista atribui à mulher. O comentário está no mesmo sentido atribuído pela Folha à posição de Marcela. Mas há outra perversidade maior que poderia passar despercebida. O internauta relaciona Marcela a Dilma, ou seja, a primeira-dama à presidenta. Isto não foi um erro ao relacionar duas personagens com funções diferentes. Desde a primeira eleição de Dilma Rousseff, a grande mídia questionava a competência da presidenta deixando claro que seria o ex-presidente Lula que governaria o país indiretamente. O melhor exemplo é a capa da Veja, de 03/11/2010, que estampa uma caricatura de Lula de bermuda, com chinelos, boné e segurando uma água de côco. Até aí, tudo bem, não fosse uma tatuagem da faixa presidencial que descia do ombro esquerdo, passando pelo peito, barriga, até sumir no calção, no lado direito. Na manchete da capa: “Ele sairá da presidência, mas a presidência sairá dele?”
De Dilma a Marcela, a mulher não pode ocupar outro lugar que não seja de primeira-dama. Quando se ousou sair da regra, o preço foi alto, mesmo assim, ocupou somente do ponto de vista formal, mas o sentido que se produziu foi de que não passava de uma primeira-dama, na qual se usa e abusa dos interesses econômicos e políticos.
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Se há voz na fala de Marcela, ela vem de outro lugar. Como disse Natuza Nery, “o fato é que a madrinha do Criança Feliz deu ao governo a ideia que pode melhorar a sua própria imagem”. Na prática, Marcela precisa somente aparecer.Sua voz, apenas enunciará outra voz. Isto nos faz lembrar do filme Cidade dos Sonhos (Mulholland Drive, 2001), de David Lynch, em que o espectador vê uma mulher com cabelo azul no palco do Clube do Silêncio (um teatro de ilusões) abrir exageradamente a boca e fala: silêncio. Em outro momento, um ator realiza uma performance no palco: “No hay banda. Silêncio. No hay orquestra. Silêncio”. Só depois que o nome do Clube faz sentido. Eram apenas bocas e gestos em sintonia com as gravações. O show não era a arte da expressão dos corpos e da voz, mas das partes desconectadas e sincronizadas. A sincronia cria uma corporeidade. O silêncio do ator era a exaltação de seu movimento e o som metálico acoplava-se no fluxo de uma organicidade fabricada. De um lado, gestos e movimentos, e, de outro, separado, o som, mas que juntos corporificavam no show.
A gênese da barbárie sempre predomina
Cidade dos Sonhos pode ser, também, interpretado como um filme que trabalha com corpos despedaçados. Diane/Beth para Camila/Rita. Basta girar a chave na caixinha azul, ainda no Clube, para que tudo se inverta, como que se houvesse uma linha divisória, ora recalcando o desejo das personagens, ora deixando escapar suas fantasias pervertidas.
Um filme é só um ponto de fluxo das condições materiais e psíquicas que circulam na sociedade. O que isto quer dizer? Que há um circuito de energia reprimida que atravessa todas as produções, de um filme a um jornal, ou, de peças publicitárias às imagens oníricas que se impõe no lugar da consciência enquanto dormimos.
Marcela funciona neste show da política como um fragmento dessa organicidade em formação. O governo Temer ancorado na grande mídia comercial aderiu a um velho clichê da bela recatada do lar que, agora, pode espalhar sua bondade a todas as criancinhas e, ainda, alimentar a fantasia de uma sociedade recalcada, fundada na violência.
Em Totem e tabu (1913), Sigmund Freud mostra que o umbigo da civilização é um crime original: parricídio. A humanidade se desenvolve após uma revolta dos filhos contra o despotismo do pai. Para Freud, essa história da nossa origem não estaria esquecida, mas recalcada. Não é simplesmente o assassinato do pai da horda primeva (pai de uma tribo primitiva que daria origem à cultura e à religião), mas o ritual que se segue até deglutir o corpo para possuir seu poder. Daí em diante, nasce da culpa e se inscreve o que jamais poder ser realizado (tabu) sob a estruturação de rituais de adoração (totem) a animais ou plantas como portadores do espírito do pai primordial. A moral nasce como correlata às leis que o clã prescreve para que o lugar do pai todo poderoso, agora morto, não seja mais ocupado, instituindo o primeiro tabu, do incesto. As civilizações se diferenciam dos grupos primitivos, sobretudo, pela dimensão simbólica do totem, ou seja, não é mais preciso cultuar um animal, planta etc.; basta, agora, um significante (Deus) que estruture um campo discursivo de um pai, não mais terreno, mas transcendental.
Um grande corpo despedaçado
A moral e as leis funcionam como regras que reprimem desejos que não podem ser realizados. Se há tabu, dirá Freud, há desejo reprimido. Não se proíbe o que não se deseja. Quanto mais tabus, mais desejos amordaçados. Mas quais emoções e paixões se pode explorar para alimentar essa força recalcada? Arrogância, avareza, ódio, vingança, cólera, ciúme. Em resumo: violência. Não à toa, alimentamos nossas neuroses ao consumir filmes, novelas, jornais, ou compartilhando, nas redes sociais da internet, post de violência.
Basta imaginar uma família feliz – dessas que aparecem em comerciais de família – que almoça na sala de estar dourada pela luz solar. Fora dos holofotes, o mais comum é almoçar num ambiente que divide as atenções. Numa parede, não é difícil de imaginar, a representação de um personagem crucificado e, na outra, uma televisão ligada num telejornal que exibe uma desgraça dessas que são notícias todos os dias e, como se não bastasse, cada membro com seu smartphone ao lado do prato, para alimentar a compulsão que fica eletrizante a cada novo post que cai na timeline. Um filho adolescente fissurado por séries assiste com seu fone de ouvido enquanto almoça, ao segundo episódio, WhitBear, da segunda temporada de Black Mirror, quando uma presidiária se torna personagem de um circo de horrores pago por capitalistas que participam, tirando fotos e filmando freneticamente, de um ritual de tortura tão cruel quando uma cena de suplício da Idade Média.
Se o desejo do incesto é reprimido sob a insígnia de um pai morto, sua satisfação pode se dar por outros caminhos, por outras fantasias. É nesse cenário que a “imagem de Marcela Temer pelo governo veio para ficar”, para alimentar as fantasias machistas por outros meios.
Enquanto a grande imprensa mercadológica constrói uma cena fantasiosa com Marcela, outra divide a realidade ao estimular que toda raiva contida pelo desejo não realizado (recalcado), que deve, agora, ser depositada no PT e na figura de Lula. E Dilma Rousseff? Esta nunca deixou de ser primeira-dama, como querem nos fazer crer.
A questão que fica aberta é saber o que restará depois que o corpo fabricado pelo governo e pela mídia – “ao tom emotivo de Marcela” – quando não conseguir mais sustentar a realidade, quando o discurso inventado se deslocar abruptamente (a perda dos direitos trabalhistas, a reforma da previdência, os cortes de investimentos na saúde e educação etc. aceleram esse processo) das pessoas e, então, o que a sociedade perceberá é um grande corpo despedaçado.
*José Isaías Venera é jornalista e professor universitário.
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