Dizer que a gratuidade das Universidades é o problema num país onde a carga tributária incide dolorosamente sobre a classe mais pobre, onde os bancos e empreiteiras batem recordes de lucro e a classe política tem os maiores privilégios possíveis sem nem questionar nenhum desses itens não pode passar de uma piada de muito mau gosto
Saullo Diniz*, Pragmatismo Político
Mesmo sendo um debate muito antigo no Brasil, o tema veio à tona recentemente após um editorial do jornal O Globo o qual se aproveitava da crise para supostamente justificar a necessidade do fim do Ensino Superior gratuito (1). As argumentações em favor de tal política são interessantes – e até convincentes -, só não podemos esquecer de ver os exemplos que a história nos dá.
Se analisarmos a educação pública do período anterior à ditadura, veremos que o Ensino Fundamental e Médio eram prioritariamente públicos, as escolas particulares, em grande parte, serviam pra os alunos que não conseguiam acompanhar o ritmo das públicas (2). Não estou de forma alguma defendendo qualquer regime de exclusão – esse texto tem a finalidade diametralmente oposta -, mas temos de entender que a situação era inversa: a grande maioria tinha acesso a uma educação de qualidade que era gratuita. Certamente estava longe de uma forma “ideal”, até porque não atendia nem metade das crianças em idade escolar (muito por conta do alto número da população que ainda vivia em zonas rurais), mas, se estamos falando de justiça social, era de longe um sistema bem mais justo – mesmo com suas imperfeições.
No entanto, durante os anos da ditadura a política foi voltada exatamente para a privatização do Ensino Público. A partir daí, as escolas públicas passaram a não receber mais investimentos e iniciou-se uma política que priorizava as escolas particulares em detrimento das públicas (3) (4). Os resultados atualmente são mais que claros: o imenso
abismo entre as escolas particulares e as públicas, entre a educação recebida por quem pode pagar e quem não pode.
Novamente vemos o mesmo “filme” passar – Marx, entre o autoritarismo social e a genialidade econômica, já havia destacado em seu O 18 Brumário de Luis Bonaparte que “a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa”. O ano de 2016, por exemplo, já mostrou que a história pode se repetir como farsa quando menos imaginamos, como foi o Golpe orquestrado por Michel Temer e Eduardo Cunha. Agora, no entanto, ele quer nos provar que pode se repetir mais ainda, no caso da privatização da Educação Superior.
O Editorial, muito bem escrito por sinal, se usava da crise para alegar que o Ensino Superior Público era uma “gritante injustiça social” porque servia apenas aos ricos e a população pobre, “com formação educacional mais frágil”, tem que pagar as Universidades Privadas. Assim, a solução seria cobrar mensalidade de alunos com uma faixa de renda alta (que na USP, de acordo com eles, seria em torno de 60% dos estudantes) para “corrigir uma distorção social”, ajudar a equilibrar os orçamentos das universidades e contribuir para o “reequilíbrio das contas públicas”.
Além de toda questão histórica que as privatizações do Ensino Público já mostraram – e que o Editorial negligencia – temos alguns outros equívocos. O Editorial fala de problemas na USP como se fossem problemas corriqueiros, que não poderiam ser evitados, mas o que temos visto nos últimos anos não é isso. A gestão na universidade paulista tem sido problemática há tempos e os alunos têm pouquíssimo poder político nesse sentido, pois a eleição para reitor acontece no formato de colégios eleitorais que são representados majoritariamente pelos professores titulares. Dessa forma, os alunos – que são a grande maioria da universidade – não têm um poder decisório e ficam à mercê da decisão dos professores mais antigos. Não obstante a isso, mesmo após esse injusto sistema, quem decide quem será o reitor é o governador como, por exemplo, aconteceu em 2008 quando João Grandino Rodas, que terminou em segundo, foi escolhido por José Serra.
O pior é que Rodas é envolvido em vários escândalos. Em 2007, por exemplo, quando era Diretor da Faculdade de Direito, requisitou a entrada da Tropa de Choque da PM para acabar com uma mobilização dos alunos. Em 2011 foi chamado pela ALESP para depor sobre a demissão arbitrária de 270 funcionários da universidade – além de ter comprado imóveis por um valor exorbitante – e saiu sem responder os questionamentos. Além disso, desde o fim de 2015, existe um processo pra caçar a sua aposentadoria com o argumento de ter causado “lesão aos cofres públicos” onde quase duplicou os gastos da universidade em apenas 4 anos (5). Será que o problema da USP é realmente o fato de ser gratuita ou estamos – levianamente – querendo colocar a culpa do pênalti perdido na bola?
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O texto também menciona os problemas econômicos vividos pela UERJ, no entanto, o faz da mesma forma extremamente superficial que fez com a Universidade de São Paulo. De acordo com uma reportagem do próprio jornal O Globo, os gastos da UERJ – levando em conta a inflação – praticamente duplicaram entre os anos de 2007 e 2014 (6). Entre 2008 e 2015, o reitor da universidade foi Ricardo Vieiralves que já foi acusado exatamente de improbidade administrativa (7) e que também caracterizou como uma “associação perigosa” o apoio dos alunos aos desalojados da antiga Favela do Metrô que foram desapropriados violentamente pela polícia para as obras da Copa do Mundo (8). Vieiralves viveu fortes pressões por parte dos alunos e professores durante seu mandato exatamente pela péssima administração à frente da universidade. Além do próprio reitor, o Governo do Estado – que dá isenções bilionárias para grandes empresas ao passo que não paga aposentados, terceirizados, suspende auxílio médico e etc. – transfere pouco mais da metade do que a Constituição impõe (9). Pergunto novamente: o problema da UERJ é realmente o fato de ser gratuita ou estamos – levianamente – querendo colocar a culpa do pênalti perdido na bola?
É muito simplista – beirando ao patético – recomendar o fim do Ensino Superior gratuito por conta das dívidas das universidades sem analisar a sua gestão, seus erros, equívocos e etc. Se uma empresa vive uma crise, temos de questionar a gestão, principalmente se forem empresas antigas que dobraram seu orçamento em poucos anos.
O texto ainda apresenta outro equívoco muito comum nas pessoas que têm aquele “complexo de vira lata”. O Editorial argumenta que essa forma de cobrança funciona bem em “países avançados” – mostrando que sua análise se pauta numa linguagem dos anos 80. Aquele velho erro infantil – e absurdamente simplista – de achar que “se funcionou lá, funciona aqui; se funcionou aqui, funciona lá”. O primeiro modelo administrativo do Brasil, ainda quando era colônia, foram as capitanias hereditárias que foram implantadas aqui justamente por já ter mostrado resultados positivos em Cabo Verde e nas Ilhas da Madeira. Em território tupiniquim, das 15, apenas duas conseguiram resultados satisfatórios. Nada impede que sistemas iguais em locais diferentes deem bons frutos, pelo contrário, há muita coisa boa pra ser importada e exportada, mas essa ideia de que só porque teve bons resultados em outros lugares, também o fará aqui é um equívoco porque ele não leva em conta as diferenças – às vezes gritantes – entre os lugares comparados como, por exemplo, todo o processo histórico e seus resultantes culturais e econômicos (como é o caso entre Brasil e os países ditos “avançados” pelo Editorial). Isso tudo, sem levar em conta que países como Alemanha, Noruega e Finlândia possuem um Ensino Superior gratuito, por que eles não mencionaram esses exemplos de “países avançados” também? Fica bem claro que a preocupação é outra.
Além disso, me soa muito estranho o jornal ter falado desses problemas, ter mencionado o sistema tributário sem nem sequer ter tocado na questão da Reforma Tributária. Se achamos injusto uma pessoa com renda alta não pagar pela educação, também achamos que ela deve pagar por outros serviços, não é mesmo? E como fazer com que as pessoas paguem pelos serviços de forma proporcional com que elas recebem? Fazendo a tão esperada reforma tributária! Sem entrar nesse debate – afinal, não é a finalidade deste texto -, temos uma carga tributária muito regressiva e faz com que a população pobre pague proporcionalmente muito mais que a população rica. Um estudo do IPEA apontou que, por conta disso, “10% das famílias mais pobres do Brasil destinam 32% da renda disponível para o pagamento de tributos, enquanto 10% das famílias mais ricas gastam 21% da renda em tributos; já os super-ricos, 0,05% da população brasileira, pagam apenas 6,7% de sua renda em tributos” (10). O próprio Editorial nos dizia que era necessário “idéias nunca aplicadas” para superar tais problemas, pois então.
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O exemplo da privatização do sistema de saúde é uma grande lição de que isso é muito pior para a população mais pobre. Enquanto uma pequena parte da população tem condições de pagar os melhores Planos de Saúde, a grande esmagadora maioria, ou fica refém dos mais populares (de péssima qualidade), ou do SUS. Já temos um grande exemplo que não deu certo. No entanto a situação ainda fica pior porque apenas metade do orçamento da Saúde vai para o SUS, a outra metade vai para o setor privado, ou seja, para uso das classes mais abastadas (metade do orçamento vai para os – péssimos – Planos de Saúde e não para as pessoas).
Por fim, não podemos cair no comum engano de achar que uma entidade estatal é necessariamente pública, assim estamos perdendo totalmente o significado da “coisa pública”. O Brasil é um grande exemplo onde instituições estatais não têm nada de público, ou seja, onde o público em si, não tem nenhum poder, não participa em nada – ou quase nada – do processo decisório. Se vivemos um problema de gestão das universidades, devemos debater qual universidade queremos, não somente os alunos, mas toda a população local. A melhor gestão é a autogestão. O que não podemos é colocar o processo decisório nas mãos de algumas pessoas – às vezes muito mal intencionadas – que afundam as universidades em dívidas. Temos que debater a participação ativa de professores, alunos, funcionários e da população na tomada de decisões da universidade, aí sim caminharemos rumo a uma Universidade, de fato, Pública. Esse tipo de gestão nos previne de um problema muito típico aqui: o sucateamento das instituições estatais com fins a privatização (é o que estão querendo fazer, inclusive, com as universidades mencionadas no presente texto).
O “canto da sereia” da privatização nos é sedutor, mas muito perigoso, temos de estar atentos ao exemplo do Ensino Fundamental e Médio – e também ao da Saúde -, ambos usaram discursos parecidos. Se nosso objetivo é universalizar o Ensino Superior, privatizar é usar o caminho inverso. Me lembro bem das palavras do grande geógrafo David Harvey numa palestra em 2013 no Teatro Rival, no Rio de Janeiro, quando ele afirmou que quando privatizamos itens básicos à vida humana como saúde e educação, tornamos eles um produto. Dessa forma, os poucos que podem, compram os melhores, pra grande maioria sobram os piores, ou não sobra. A Educação não pode ser um produto, ela é um direito (muito antes de ser um direito constitucional é um direito humano básico).
Devemos sempre desconfiar quando pessoas que apoiaram golpes, atacaram todo e qualquer tipo de movimento social, foram – e continuam sendo – contra direitos trabalhistas, se silenciaram frente a genocídios e demais injustiças surgem com discursos privatistas em nome da população que eles sempre renegaram. Dizer que a gratuidade das universidades é o problema num país onde a carga tributária incide dolorosamente sobre a classe mais pobre, onde os bancos e empreiteiras batem recordes de lucro e a classe política tem os maiores privilégios possíveis sem nem questionar nenhum desses itens não pode passar de uma piada de muito mau gosto.
As Universidades Públicas são realmente muito elitizadas, mas o caminho para a democratização do acesso não é pela privatização, muito pelo contrário. Quando queremos que uma entidade pública, independente de seu caráter, seja mais acessível, a primeira atitude a se fazer é não se cobrar o acesso. Assim, temos de lutar por uma universidade verdadeiramente pública, onde a população – e não um editorial simplista e retrógrado – discuta a universidade que quer. O primeiro passo para um sistema mais justo é a sua universalidade.
Universidade. Universalidade.
*Saullo Diniz é graduando em Geografia pela UFRJ e colunista em Pragmatismo Político
Referências:
1. http://oglobo.globo.com/opiniao/crise-forca-fim-do-injusto-ensino-superior-gratuito-19768461
2. http://www2.uol.com.br/aprendiz/n_colunas/a_gois/
3. http://www.cartaeducacao.com.br/reportagens/nao-se-fez-%E2%80%A8tabula-rasa/
4. http://www.espacoacademico.com.br/066/66mechi.htm
6. http://oglobo.globo.com/opiniao/mitos-verdades-sobre-crise-na-uerj-18468940
7. http://blogs.oglobo.globo.com/ancelmo/post/vieiralves-vanderbilt-da-uerj-546378.html
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