Mulheres violadas

Mulher, você se sente segura em São Paulo?

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Imagem: Mayara Paixão – Jornalismo Júnior

Mayara Paixão, Jornalismo Júnior

Frequente pauta nas discussões a respeito da equidade de gênero, a desigual participação de homens e mulheres nas cidades tem sido cada vez mais um tema debatido pelos profissionais da área. No percurso da discussão, evidencia-se como o ambiente urbano não foi, desde seu início, projetado para o uso feminino.

Já no final do século XIX e início do século XX, quando São Paulo vivenciava uma industrialização e urbanização crescentes, o espaço público não era destinado às mulheres. Enquanto consumidoras ou acompanhantes de uma figura masculina, como o pai ou marido, elas eram bem-vindas. Caso contrário, não.

Apesar dos avanços, a vivência feminina e os estudos acadêmicos mostram que muitos entraves ainda são depositados no caminho da mulher que ocupa os espaços que são seus por direito. “Em princípio, a cidade não é democrática, pois o espaço construído é a expressão das relações sociais, econômicas e culturais”, reflete Terezinha Gonzaga, arquiteta, autora de ‘A cidade e uma arquitetura também mulher‘ e uma das pioneiras nos estudos de gênero e arquitetura no Brasil. “Como a sociedade é desigual, estratificada em classes sociais, com culturas diversas e não respeitadas, racista, sexista e homofóbica — salvo muitas exceções —, o tecido urbano é o retrato destas mazelas todas.”

A desigualdade se evidencia, por exemplo, pela escassa representatividade feminina nos espaços públicos. Segundo levantamento realizado pelo MedidaSP, apenas 5.000 logradouros da cidade, de um total de quase 70.000, têm nomes de mulheres. Nomes de homens aparecem em 27.500. Ao analisar por tipo, percebe-se que os nomes femininos aparecem em logradouros menores, como ruas particulares e vielas. Já os nomes masculinos são a grande maioria nas avenidas, rodovias, viadutos e praças.

A cultura machista também atua sobre a mulher vítima de violência, como diz o pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, Marcelo Nery. Em muitos casos, quando a mulher é vítima de alguma violação ou crime, grande parte da sociedade ainda argumenta que ela teria feito algo para se tornar vítima daquela ocorrência, como se fosse passível de justificativa.

Dentro de um recorte racial, dados do Mapa da Violência de 2015 revelam que, enquanto o número de homicídios de brancas caiu 9,8% de 2003 a 2013, os homicídios de negras aumentaram 54,2% no mesmo período.

Breve histórico da segurança em SP

Em enquete realizada através do formulário online “Mulher, você se sente segura em SP?”, que coletou respostas de 682 mulheres, a resposta mais recorrente à pergunta sobre o que deveria mudar na infraestrutura da cidade para aumentar sua segurança foi o policiamento. E não é sem motivos que as mulheres — e os cidadãos paulistas como um todo — valorizam a presença e a ação policial como medidas imediatas para a promoção da segurança.

Arte: Igor Soares – Jornalismo Júnior

A política de segurança pública é entendida de maneira conservadora, de enfrentamento e aprisionamento”, diz Marcelo Nery. Esse pensamento tem correlação com o tradicional conservadorismo do estado de São Paulo, que apoia politicamente esse modelo de segurança pública. Há também os resquícios do regime militar, não sendo à toa a alta estatística de encarceramento na região.

Até meados da década de 1970, a violência não era entendida como um grande problema social ou tida como objeto de estudo no meio acadêmico, conta o pesquisador. Além de o registro de ocorrências criminais ser relativamente baixo, o contexto de São Paulo contava com uma cidade pouco urbanizada e um regime que tentava, a todo custo, silenciar as violações de direitos.

Arte: Igor Soares – Jornalismo Júnior

Quando a gente chega na década de 1980, isso se torna um dos principais problemas, não só de São Paulo, mas do país”, conta Nery. As taxas de homicídio começam a crescer rapidamente e tanto os gestores públicos quanto a academia passam a se debruçar sobre o problema. Um grande investimento em segurança pública também foi feito por parte do Estado. No entanto, em vez de propor ações de prevenção, o principal recurso foi o de equipar e contratar policiais, fazendo com que o sistema penitenciário crescesse a galope e São Paulo chegasse, em 2014, à maior população carcerária do país.

A promoção da segurança pública é uma função estadual. Mas, como explica o pesquisador, no decorrer do tempo, ela foi entendida como uma questão do poder público em todas as instâncias, como a municipal. “A polícia é importante, mas não é menos importante, por exemplo, a iluminação e o transporte — aspectos urbanos que aumentam ou diminuem o risco da violência em certo lugar”, diz.

Em se tratando de violência, muitas diferenciações são cabíveis. As mulheres não são, numericamente falando, as maiores vítimas de crimes no espaço público (e sim da violência domiciliar e intrafamiliar). Mesmo assim, além de levar em conta o fato de que muitas cidadãs não denunciam a violência sofrida, o próprio pesquisador aponta que “há uma diferença entre violência real e sensação de insegurança”, à qual as mulheres, em geral, estão submetidas diariamente. Isso, no entanto, “não é desculpa para não tomar as ações que deveriam ser tomadas.” Existem várias medidas que poderiam ser desenvolvidas com uma política de segurança de longo prazo, de modo a tornar a insegurança ao público feminino nas ruas expressivamente menor.

Mulheres: a segurança pública invertida

Certa vez eu estava voltando pra casa à noite e passou um carro de polícia com vários policiais homens no interior do veículo. Eles reduziram a velocidade até quase parar a viatura, me perguntaram de onde eu estava vindo, para onde eu estava indo e se eu queria uma carona. Eu respondi que estava voltando da casa de uma amiga, que estava indo pra casa e que não havia necessidade de eles me darem carona. Foi quando um deles disse: você é corajosa. Quando estavam saindo, outro policial falou: ‘Depois essa filha da puta é estuprada e a culpa é nossa! Você viu o jeito que ela tá?’. Eu estava usando uma calça jeans, um tênis e uma blusa de frio — ou seja, nada demais. Mas a sociedade autoriza a violência.” (Relato de uma entrevistada)

Foto: Mayara Paixão -Jornalismo Júnior

Abordar a violência pública do ponto de vista da mulher pede ressalvas. Seria o policiamento a medida mais eficaz? De acordo com a arquiteta Paula Santoro, autora do texto ‘Gênero e planejamento territorial: uma aproximação‘, não. Os dispositivos de segurança, como as câmeras, entraram em nossas vidas e não necessariamente representaram melhorias na segurança. Por trás do policiamento e dos equipamentos, é preciso uma rede de apoio.

Para a mulher, a questão não é prender o bandido; a questão é não ser estuprada”, diz a arquiteta. “É diferente de um assalto. O estupro é uma coisa que não dá para devolver. É uma invasão no corpo da mulher muito pesada.”
Os mecanismos para a construção de uma cidade mais segura podem ser pensados aliados às suas características estruturais. Segundo pesquisas, a divisão sexual do trabalho fez com que mulheres ocupassem a cidade de modo diferente dos homens. Durante o levantamento de dados para a elaboração de seu trabalho final de graduação, intitulado ‘Cidade: substantivo feminino‘, a arquiteta Isabela Peccini, recém-formada pela UFRJ, constatou que as mulheres atuais têm dois tipos de ocupação: o trabalho produtivo, realizado fora de casa, para ganhar dinheiro e sustentar a família; e o trabalho reprodutivo, que se faz na manutenção da casa e no cuidados dos filhos — e isso se intensifica ao pensarmos em mulheres que pertencem a classes sociais mais baixas. A rotina faz com que elas tenham atividades no seu dia a dia — como ir ao mercado ou levar as crianças à escola — o que as levam a um percurso específico e muito diferenciado do caminho dos homens em geral.

Outro estudo que apontou as particularidades do uso das cidades pelas mulheres foi a dissertação de mestrado de Haydée Svab, da Escola Politécnica da USP. Utilizando dados da pesquisa “Origem e Destino”, ela constatou que as mulheres, por exemplo, deslocam-se mais a pé do que os homens, além de se locomoverem mais em função da família.

Além disso, é preciso levar em conta uma mudança de perfil importante: em 2010, o modelo tradicional de “pai, mãe e filhos” já compunha menos da metade das famílias brasileiras; em contrapartida, a estrutura familiar que mais se ampliou foi a monoparental com filhos, com destaque para a de mãe solo e filhos. “A gente vai ter desafios novos, porque as nossas famílias estão colocando cada vez mais responsabilidades para as costas das mulheres”, diz Paula Santoro.

Mulheres ainda têm sua mobilidade na cidade reduzida e controlada pelo medo de ir a lugares que não inspirem segurança. No fim das contas, completa Isabela Peccini, “é entender que existem fatores de insegurança para todas as pessoas, mas a gente vive situações no percurso da cidade que fazem com que esses fatores sejam intensificados para a gente, porque exercemos tarefas no espaço urbano que são específicas”.

Vídeo:

A cidade vivida

Na busca por propostas de ações que promovam uma cidade moldada para as mulheres, a resposta recorrente é a ocupação da via pública. Como diz Paula Santoro, “os lugares seguros são os lugares vividos por todos”. Isabela também propõe isso em seu trabalho: de acordo com a referência metodológica que usa, construir um espaço seguro para mulheres é fazer com que elas possam sempre estar vendo e sendo vistas — que nunca estejam escondidas ou que alguém possa estar escondido —, ouvindo e sendo ouvidas — para que, se estiverem em alguma situação de perigo, elas possam se comunicar com outras pessoas. Além disso, é preciso um lugar limpo, com boa manutenção, uma vez que são as mulheres as responsáveis pelas crianças na maioria das vezes.

Segundo Paula, depois desse passo, quase como consequência, virão os outros fatores, como iluminação. “Uma cidade iluminada é melhor, mas iluminada e vazia continua ameaçadora”, diz ela.

Dentro da arquitetura e do urbanismo, um dos mecanismos que visam a proporcionar a ocupação constante do espaço público são as zonas mistas. Ao contrário das chamadas zonas exclusivas — que têm, por exemplo, apenas habitações —, as zonas mistas mesclam usos comerciais, residenciais e industriais no mesmo espaço. Para que sejam incorporadas à cidade, elas podem estar previstas no plano diretor municipal. Além de promoverem regiões permanentemente movimentadas, essas zonas proporcionam circuitos que não exigem grandes viagens. Para uma mulher com o perfil mencionado anteriormente, por exemplo, o caminho entre o comércio e a residência seria muito menor e restringiria menos seus horários de lazer. “Quando você pensa a mulher hoje nas suas pequenas viagens, na sua tarefa múltipla, tudo perto é mais fácil”, destaca a arquiteta. Outro motivo para a defesa das zonas mistas é que elas seriam alvo de iluminação pela Prefeitura por estarem sempre com pessoas.

O machismo no ramo da arquitetura e urbanismo

De acordo com levantamento feito pelo  Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil – CAU/BR, há uma prevalência de arquitetas e urbanistas mulheres no país. Elas representam 61% do total de profissionais em atividade e essa é uma tendência que vem crescendo ao longo das últimas décadas, pois, ao observar a faixa etária dos profissionais, percebe-se que a predominância feminina é maior entre arquitetos mais jovens. Isso, entretanto, não exime a área do machismo e da disparidade entre os gêneros.

Essa compreensão se faz necessária para refletir sobre a dinâmica da idealização do espaço. Como diz Isabela Peccini, “a construção do espaço não se dá de forma imparcial; a nossa própria construção de conhecimento enquanto arquitetos e urbanistas é produto das nossas relações sociais e acredito que essa produção não pode se dar de forma imparcial, não pode ignorar as relações de desigualdade”.

Além de trabalhos acadêmicos relacionando arquitetura e gênero — como os mencionados no texto —, iniciativas têm nascido com o intuito de debater a participação feminina na área ao longo das décadas. Uma delas é o coletivo Arquitetas Invisíveis.

Luiza Dias, uma de suas membras, contou que o Arquitetas Invisíveis surgiu de uma conversa entre amigas que estudavam arquitetura na Universidade de Brasília (UnB). Elas se perguntavam o porquê da escassez de referências femininas no ramo e, tendo ganhado conhecimento das estatísticas do CAU, questionavam onde é que estavam aquelas pessoas, “essas mulheres que a gente não vê”. O grupo, então, criou uma página para apresentar, a cada semana, uma nova arquiteta que fez diferença na história da arquitetura. Com a expansão do projeto, as discussões passaram a ser frequentes na faculdade e, recentemente, o coletivo lançou uma revista com seu conteúdo. Cada uma das componentes desenvolve uma pesquisa atrelada às questões de gênero.

A iniciativa surtiu efeitos não só para aqueles que a acompanham, mas para aquelas que a fazem. Segundo Luiza, “uma coisa muito importante que a gente viu foi que, pelo menos, na nossa escola de arquitetura, agora, eu não quero ser ‘um grande arquiteto’ (…) eu me sinto representada nesse meio depois que a gente começou a pesquisa, tenho exemplos a seguir. O que está faltando é oportunidade para as mulheres serem vistas dentro e fora do Brasil, e é isso que a gente tenta mudar”.

A atuação profissional da mulher arquiteta também é restringida ao passo em que, por muito tempo, o lugar que lhe era autorizado e aceito era aquele vinculado à casa, à decoração e à arquitetura de interior. Por mais que Luiza diga que isso vem mudando, fato é que, ainda hoje, os cargos e oportunidades que dão maior reconhecimento e prestígio ao profissional são os almejados por homens e aos quais as mulheres têm maiores dificuldades de acesso. Além disso, quanto aos cursos de graduação da área, ainda não são obrigatórias disciplinas que discutam as questões de gênero.

Terezinha Gonzaga, há anos na profissão, ressalta que as consequências dessa desigualdade vão além. Segundo ela, a divisão do trabalho doméstico, por exemplo, é pouco pensada quando se projeta uma residência.“Trata-se a mulher como a única responsável pelas tarefas domésticas e não se preocupam em facilitar a circulação dela dentro da casa para realizar o trabalho doméstico”, explica a arquiteta. “Não se considera a diferença corporal das mulheres — como estatura, dimensão e movimentos — para instalar os equipamentos, como altura de armários e escadas.”

Por vezes, também, o cliente insiste que a cozinha e a área de serviço — lugares tradicionalmente ocupados pela dona de casa ou profissional, como a empregada doméstica — devem ficar escondidos. Para Terezinha, se o profissional de arquitetura não for sensibilizado com a questão da desigualdade de gênero, irá “propor uma releitura destas visões arcaicas, machistas de segregação ‘casa grande’ e ‘senzala’ que perdura na nossa sociedade”.

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