Luis Gustavo Reis*
Em 1° de junho de 2004, tropas da ONU, lideradas pelo Brasil, ocuparam o Haiti e deram início à chamada Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (Minustah). A justificativa era restaurar a ordem e estabilizar o país após a renúncia do presidente Jean-Bertrand Aristide. O Brasil aproveitou o ensejo para tentar se projetar internacionalmente e assumir a liderança da geopolítica regional.
Em situação de extrema vulnerabilidade, o Haiti amargava um cenário de guerra entre gangues rivais, além de uma grave crise política e econômica. O secretário-geral da ONU, Kofi Annan, chegou a dizer que a missão tinha prazo para começar, mas não para terminar, devido à complexidade da situação.
Em discurso na capital, Porto Príncipe, à época, o governo brasileiro selava um compromisso com o povo haitiano: “Quando anunciamos a decisão de mandar tropas para este país, com o apoio do Congresso Nacional, reconhecemos que o Brasil não poderia ficar alheio ao sofrimento e à dor de um povo irmão. […] O Brasil acredita em um Haiti melhor para o seu povo. Não podemos nos resignar a assistir, com impotência e fatalismo, à escalada da instabilidade e do medo. Queremos ajudar este país a reerguer-se, a reconstruir suas instituições, a cicatrizar suas feridas, a reencontrar o caminho do desenvolvimento e da justiça social”. Passados 12 anos, os tímidos avanços gerados pela intervenção contrastam com a retórica farsesca que objetivava muito mais uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU. Em suma, um descarado oportunismo trasvestido de ação humanitária.
O Haiti foi o primeiro país das Américas a abolir a escravidão. Foi palco da epopeia de milhares de escravizados que derrotaram as tropas napoleônicas – um dos exércitos mais poderosos da época – e conquistaram a independência em 1804. Quando expulsaram os colonizadores, os escravizados ofereceram a vitória aos povos indígenas que haviam tombado naquelas terras, dizimados pela ganância dos franceses.
Logo após a independência, o Haiti foi sucessivamente massacrado por potências colonialistas, as quais impuseram ao país um criminoso embargo econômico que estrangulou sua economia. No avançar dos anos, tornou-se o quintal dos Estados Unidos, que, ao longo do século XX, patrocinou sanguinárias ditaduras no país.
Em 2010, o território foi arrasado por um terremoto que deixou mais de 240 mil mortos e aproximadamente 1,5 milhão de desabrigados. Entorpecidos de um altruísmo mequetrefe, dirigentes mundiais prometeram uma ajuda de 10 bilhões de dólares para a reconstrução do país, porém menos de 5% desse total chegaram à ilha caribenha.
Após o terremoto, a situação do país beirou o colapso. No fim de 2010, um surto de cólera contaminou mais de 650 mil pessoas, deixando 8,3 mil mortos. Cólera disseminada por soldados nepaleses que integravam a Minustah, segundo relatório elaborado pelo renomado epidemiologista francês Renaud Piarroux.
Chama a atenção o papel desempenhado pelo Brasil em um país latino-americano historicamente espoliado. A imagem muitas vezes transmitida por veículos de mídia oficiais e pela grande mídia comercial é a de que os soldados brasileiros desempenham um papel de paz e solidariedade, todavia são várias as denúncias de rotineiras violações de direitos humanos e de abusos sexuais contra jovens e mulheres cometidos por soldados da Minustah.
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Amparado pelo silêncio cínico da mídia e assentado no desinteresse dos congressistas, o governo brasileiro cumpre no Haiti o desonroso papel de capanga há exatos 12 anos. Por várias vezes se discutiu o encerramento da operação na ilha caribenha, sob a alegação de escassez de recursos para viabilizar projetos sociais e de desenvolvimento, desnudando assim a farsa que está subjacente à “ocupação solidária”.
Assim que assumiu o cargo de comandante-geral das forças da ONU no Haiti, o general Ajax Porto Pinheiro afirmou: “Em outubro de 2016, as últimas tropas da ONU vão partir do Haiti. Vou ficar para o último avião e encerrar a missão militar“.
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Chegamos a outubro e não há indícios de que as tropas deixarão o país. A bravata do general engorda as reiteradas mentiras do governo brasileiro, que certamente postergará a decolagem do famigerado avião carregando os últimos pistoleiros de aluguel da ONU.
*Luis Gustavo Reis é professor, editor de livros didáticos e colabora para Pragmatismo Político
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