A Conjuração Baiana de 1798 pode iluminar o presente
A Conjuração Baiana de 1798, um dos episódios mais importantes da história do Brasil, pode iluminar o presente, como sempre o passado faz. Naquela época, a “delação premiada” também era utilizada
Emiliano José e Patrícia Valim, Caros Amigos
A Conjuração Baiana de 1798, um dos episódios mais importantes de nossa história, pode iluminar o presente, como sempre o passado faz. O setor dominante local, que participou da primeira fase do movimento, diante da descoberta da revolta, soube dar um duplo twist carpado nos setores médio e baixo daquela sociedade e, para não ser incriminado por crime de sedição, passou a colaborar com as investigações: formularam as principais denúncias, ajudaram a premiar os delatores e entregaram seus escravos à Justiça.
Desde lá, e quaisquer semelhanças com pessoas vivas ou mortas será mera coincidência, ou não, a delação premiada era mecanismo utilizado, apesar das reformas do Direito Moderno após o Consulado Pombalino. Desde então, entregar a cabeça dos de baixo foi prática corriqueira das classes dominantes para manter as suas intactas. Não pensem estejamos exagerando, vítimas de quaisquer tentações panfletárias. Que se mate a cobra e se mostre a cobra morta.
Abertas as devassas para a investigação dos autores dos dez boletins sediciosos afixados em prédios públicos, descobertos na manhã de 12 de agosto de 1798, e dos participantes da revolta, os poderosos recuaram, pois recai sobre eles a acusação de reuniões para se organizar a revolta. Apressaram-se em entregar seus próprios escravos à Justiça, pretendendo que eles corroborassem suas denúncias contra quatro homens negros, pobres e pardos, com o objetivo de reafirmar que eram leais súditos da Coroa, e o quanto estavam dispostos a servir à lei e à ordem.
Para a entrega dos escravos, contaram com a prestimosa ajuda do homem mais poderoso da Bahia, secretário de Estado e governo do Brasil, José Pires de Carvalho e Albuquerque. Este, saiu doido atrás de outros poderosos, incitando-os a entregar seus negros. Com isso, ele e os demais livrariam a pele. Não só da acusação de participar do levante, como também das denúncias de enriquecimento ilícito, contrabando e principalmente de atuação duvidosa à frente dos órgãos da administração local.
Albuquerque era o mais proeminente dos entregadores de escravos. Proprietário do Solar do Unhão, de plantações de tabaco e de engenhos e açúcar. Dinheiro não lhe faltava. Poder político, também não. Secretário de Estado e governo do Brasil – cargo cujas vitaliciedade e hereditariedade foram compradas por sua família. Era ainda intendente da Marinha e Armazéns Gerais, vedor geral do Exército, provedor e ouvidor da Alfândega da Bahia, e deputado da Junta da Real Fazenda.
José Pires de Carvalho e Albuquerque era o exemplo acabado do acumpliciamento entre o público e o privado. Proprietário de quatro escravos entregues. Foi essa “pronta-entrega de escravos”, surgida nos autos, que acabou por revelar a participação de oito homens poderosos na conspiração, todos eles fazendo a pronta entrega de suas propriedades, diga-se: de seus escravos. O restante, intacto.
Corporação dos Enteados
Livraram-se, com a entrega dos escravos, de serem acusados do crime de sedição e de práticas pouco ortodoxas com a coisa pública. As acusações de “ausência de limpeza de mãos” por parte desses senhores e de utilização da máquina pública para enriquecimento ilícito eram tantas e tão variadas que o cronista Luís dos Santos Vilhena os qualificou de “Corporação dos Enteados”, dadas as relações promíscuas mantidas com a Justiça e a administração pública em benefício próprio.
Mas naquela sociedade colonial e escravista, não era apenas a “Corporação dos Enteados” que era constantemente denunciada. Dois dos desembargadores do Tribunal de Relação da Bahia designados para as investigações da Conjuração Baiana de 1798 também foram constantemente denunciados à Coroa por prática de contrabando e excesso de poder sem que houvesse qualquer providência: Francisco Sabino Álvares da Costa Pinto e Manuel de Magalhães Pinto e Avellar de Barbedo. Não interessava à Coroa portuguesa punir os agentes que ocupavam o principal órgão que garantia a direção política da dominação portuguesa no Brasil.
O mulato Joaquim José de Santa Anna foi um dos denunciantes do encontro no Campo do Dique do Desterro, marcado para a noite de 25 de agosto de 1798, que deveria ser o marco do início do levante. A delação dele foi recompensada: condecorado com a Ordem de Cristo, promovido a sargento-mor do Terceiro Regimento de Milícias da Bahia, tornou-se arrendatário de um pedaço de terra de José Pires de Carvalho e Albuquerque, em cuja casa aconteceram várias reuniões para se discutir questões da França revolucionária e a organização da revolta.
Reformas e fim de privilégios
A “Corporação dos Enteados” participou da organização do levante porque não obstante tivesse enorme poder, estava insatisfeita com o anúncio de medidas por parte da Coroa, pretendendo recrudescer o sistema de dominação colonial ao dinamizar as finanças com o fim dos monopólios dos contratos e arrematações, agilizar o sistema da Justiça, combater a corrupção, a promiscuidade entre cargos públicos e objetivos privados, e queria ainda criar um sistema de tributação progressiva e justa.
Tais medidas visavam conter qualquer tentativa de repetição no Brasil de uma revolta escrava como a de São Domingos ou algo semelhante ao que ocorria na França revolucionária. Eram medidas reformistas, que atacavam frontalmente os privilégios da Corporação dos Enteados. Percebendo que esse grupo não estava de brincadeira, a Coroa recuou, atendeu as demandas políticas e econômicas dos enteados – prejudicando, inclusive, um grupo poderoso de capitalistas portugueses. O medo da revolução uniu as duas pontas – a Coroa com medo de uma convulsão social e os Enteados, que criam ser revolucionárias reformas que diminuiriam seus privilégios.
Depois de mais de um ano de investigações duvidosas, com direito a “delações premiadas” e ausência de provas contra os acusados, os desembargadores do Tribunal da Relação da Bahia, constantemente denunciados por “ausência de limpeza de mãos”, concluíram que João de Deus do Nascimento era o autor dos boletins manuscritos e o “cabeça” da projetada revolução. Liderava Lucas Dantas Amorim, Manuel Faustino e Luiz Gonzaga das Virgens e Veiga. Quatro homens livres, pobres e mulatos.
Enforcados, seus corpos esquartejados, partes expostas por toda a cidade durante vários dias, na manhã de 8 de novembro de 1799, na Praça da Piedade, em Salvador.
Os poderosos da Corporação dos Enteados com os desembargadores do Tribunal da Relação da Bahia e o próprio governador da Capitania da Bahia, d. Fernando José de Portugal e Castro, se juntaram, encontraram uma saída, fizeram um cruel efeito-demonstração para sinalizar a não aceitação de qualquer nova experiência como aquela: quando homens livres, pobres e negros/mulatos fizessem política, seriam condenados à pena última.
Poderosos corruptos e livres
Nesse conluio, deixaram de lado vários participantes da revolta, sobretudo os poderosos. Não era pouca gente envolvida. Das informações dos boletins manuscritos, 513 pessoas eram de corporações militares, 187 oficiais. Noticia-se, ainda, a presença de 13 homens graduados em letras, 20 cidadãos comuns, oito do comércio, oito frades bentos, 14 franciscanos, 48 clérigos e oito familiares do Santo Ofício, entre outros. Só quatro pagaram o pato; pobres, negros/mulatos.
Ter muita gente armada mostrava a disposição de luta dos participantes da revolta, e não por acaso uma das reivindicações fundamentais era o aumento do soldo para 200 réis diários e isonomia nos critérios de ascensão na hierarquia militar. A presença de religiosos revela a sensibilidade das corporações eclesiásticas para com as reivindicações populares.
O trágico fim dos quatro enforcados na Praça da Piedade revela uma tradição brasileira: o de encontrar bodes expiatórios nas crises, o de mexer com tudo para deixar como está. E revela também como age o Judiciário ao longo da história: apesar do formalismo com as várias reformas modernizadoras do Direito, a politização da Justiça é o recurso para a manutenção do status quo.
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Se algum exemplo tem de ser dado, se é necessário a qualquer custo embargar qualquer ascensão das classes populares à vida política, se é preciso estancar qualquer arroubo reformista, se é essencial sinalizar para que experiências democráticas bem-sucedidas não se repitam, é preciso escolher a quem matar, sinalizar que está agindo, que está punindo, e não importa que se punam apenas alguns, os escolhidos para serem esquartejados.
Ao fazer o sangue correr, tenta-se evitar qualquer outra conjuração, e ali era um levante que atacava a escravidão e o domínio colonial – para uns, apenas como argumento para manter privilégios; para outros, pra valer. Daquele episódio, nos recordamos, pelo positivo, do exemplo de luta dos envolvidos e dos quatro mártires; pelo negativo, da corrupção da administração, da politização da Justiça e da tradição acomodatícia das classes dominantes. E acrescente-se: malgrado o Império tenha sido o que foi, a Coroa portuguesa perde o cetro poucos anos depois.
Nós proclamamos:
O medo não pode vencer a esperança!
Animai-vos, povo!