Fidel conseguiu liderar seu país em meio à turbulenta Guerra Fria e seu final. A impressão que fica é que ele estava sempre dois passos adiante do partido e de tudo. Hasta siempre, Comandante!
Minha primeira lembrança de Fidel Castro é puramente visual. Nos domingos, eu garoto, costumava ir às matinês (cinema à tarde) do Cine Capitólio, em Porto Alegre. Antes da sessão dupla dos filmes, havia um monte de “aperitivos”: propagandas, trailers, desenhos animados, jornais esportivos e de atualidades. Estas vinham, quase sempre, por meio de uma agência francesa de notícias. Tenho na memória, vagamente, uma salada de imagens confusas: pancadaria entre policiais e trabalhadores em Londres; o chanceler Konrad Adenauer andando não me lembro para onde. No meio desta salada, lembro de algumas imagens de guerrilheiros barbudos, nas montanhas, e entre eles estava o líder, Fidel Castro. Eu não tinha a menor ideia do que estava vendo.
Depois as informações começaram a se organizar: a Revolução Cubana, a vitória de 1º de janeiro de 1959, a adesão do novo governo ao comunismo, a tentativa fracassada de derrubá-lo em 1961, na invasão da Baía dos Porcos.
Entre as informações, afirmaram-se as imagens dos dois titãs da Revolução: o romântico Che Guevara e o pragmático Fidel. O admirável Che foi um Garibaldi fracassado na sua tentativa de se tornar um herói de dois mundos: não mais a América e a Europa, mas a América e a África. Fracassou? Sim, no plano prático. Tornou-se um ícone mundial, ingressando no plano mítico da história.
Já Fidel tornou-se-se um Lênin longevo, e conseguiu liderar seu país em meio à turbulenta Guerra Fria e seu final. Também tornou-se um ícone mundial, mas de outro tipo, embora tenha algo em comum com o já evocado Garibaldi: a figura do caudilho esclarecido, no caso do italiano, o condottieri de sucesso, figuras que hoje não existem mais.
Para mim não há dúvidas de que a sobrevivência da Revolução Cubana – ao contrário de suas congêneres europeias (a China para mim ainda é um enigma), que terminaram num mergulho no caos – deve-se mais ao tirocínio, que chamei de esclarecido, de seu líder caudilhesco do que a qualquer rígida estrutura partidária. A impressão que fica é que Fidel estava sempre dois passos adiante do partido e de tudo.
Encontrei-o em carne e osso em 1993 (foto), quando passei um mês em Cuba, primeiro como professor universitário, a convite da Casa das Américas e da Universidade de La Habana, depois como jornalista, cobrindo para o então Brasil Agora (a tentativa frustrada do PT de criar um jornal próprio que chegasse a ser diário) a primeira eleição direta para a Assembleia Nacional de Cuba.
O processo era curioso, para nós: havia uma lista enorme de candidatos, a maioria do PC Cubano, mas nem todos. Os eleitores votavam em quantos quisessem, e seriam eleitos os que alcançassem 50% + 1 dos votos. Naquele momento, o grande sucesso televisivo na ilha era a novela brasileira Vale Tudo; Fidel se valeu disto para lançar a consigna “Valen Todos”, um chamado para que todos os candidatos fossem votados e eleitos, o que de fato aconteceu.
Esta foi uma das demonstrações da inconteste liderança de Fidel em Cuba e de seu tirocínio, digamos, suprapartidário, tanto quanto isto era possível naquela Cuba submetida a um dos mais selvagens bloqueios econômicos e políticos da história do continente, só superado pelo do Haiti, depois da vitoriosa revolução de 1º de janeiro de 1804.
Constatei a força desta liderança ao acompanhar a comitiva de jornalistas que foi, com Fidel, ao lugar onde votou: Santiago de Cuba que, com Sierra Maestra, perfaz o berço da Revolução, devido ao ataque ao quartel de Moncada, em 1953. Éramos mais de uma centena de jornalistas do mundo inteiro, mas apenas três brasileiros: além de mim, pelo Brasil Agora, havia o então presidente da Associação Nacional de Jornalistas, de Minas Gerais, e uma jornalista da Zero Hora, de Porto Alegre, que estava em Cuba para tratamento médico e pegara carona no andar da carruagem.
Foi uma das provas que tive do provincianismo anacrônico de nossa “grande” mídia, que literalmente esnobou o acontecimento, sendo por ele, na verdade, esnobado.
Em Santiago e arredores vi, ao vivo e em cores, o poderio da liderança de Fidel. Por onde andávamos, seguindo-o a pé ou de carro, ele era estrepitosamente ovacionado por multidões e multidões. Era impossível que aquilo fosse armado artificialmente.
Constatei até que havia um certo tom bairrista naquilo: os santiagueños consideravam que Fidel era “um deles”, em rivalidade com Havana e o resto do país. (Na verdade, ele nascera em Birán, um povoado ainda hoje pequeno na província de Holguín, ali perto).
A visita mais impressionante foi à cidade de El Cobre, onde fica a basílica e santuário da Nossa Senhora da Caridade de El Cobre, padroeira da ilha, assim como Nossa Senhora Aparecida é a do Brasil. Tão forte é a presença da Virgen del Cobre em Cuba que o ateu e comunista Fidel (ainda que formado pelos jesuítas) depositou em sua basílica uma pedra da Lua que recebera de presente.
A cidade estava completamente tomada de gente, nas ruas, nas janelas, nas sacadas, nos telhados. Nós fôramos antes, e presenciamos a chegada de Fidel, num jipe militar. A cidade inteira gritava: “Fidel, Fidel, Fidel”!, sem parar um único segundo. Quantas pessoas haveria? Impossível dizer. Mas ainda tenho gravados em meus tímpanos e numa fita cassete que hoje modorra em meus guardados no Brasil aquela gritaria decididamente espontânea e sem fim. O mesmo aconteceu diante do quartel de Moncada, em Santiago, onde Fidel foi votar, o mesmo quartel que ele tentara tomar, sem sucesso, em 1953, gesto que o catapultou para a história.
Numa das tardes que passamos em Santiago, a assessoria de imprensa do PC nos liberou para passearmos sós pela cidade. Saímos quatro que fizéramos amizade: eu, dois jornalistas portugueses e uma mexicana. Fomos andando e conversando, sobretudo com jovens. Quase sempre ouvíamos o comentário: “Nosotros no somos comunistas, somos fidelistas”, dito assim com orgulho e admiração.
Naturalmente houve muita burocracia na visita, mas sempre regada profusamente a mojito e música, e foram dias inesquecíveis para quem os viveu e reportou.
Para finalizar estas lembranças longínquas e a mesmo tempo tão próximas, narro um episódio algo hilário. Ainda em Havana, antes de irmos a Santiago, houve um dia em que Fidel, aparentemente, iria receber os brasileiros que lá estavam em missão universitária e política.
Eu não estava parando em hotel, mas sim na casa de um amigo, o professor Rogelio Coronel. Certa manhã, recebi um telefonema de Luisa Campuzano, da Academia Cubana de la Lengua e da Casa das Américas: “Esteja hoje às 5 horas no Hotel Habana Libre, onde os brasileiros estão hospedados, que possivelmente ‘El Comandante en Jefe’ irá recebê-los”.
Alvorotado, me fardei para o encontro: paletó azul escuro, gravata da mesma cor, óculos Ray Ban estilo General McArthur, e lá fui. Ressalto ainda que tenho 1m83 de altura e na época exibia uma cabeleira completamente preta. Depois, um amigo meu me contou que, quando adentrei no saguão do hotel, um outro brasileiro, que não me conhecia, sussurrou para ele: “Olha, o Fidel vem mesmo, porque os guarda-costas já estão chegando”.
Foi assim que fui promovido a guarda-costas de Fidel, título que guardo até hoje.
Hasta siempre, Comandante!
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