Justiça

Por dentro do mercado oculto da delação premiada

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Juiz, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC explica como funciona o mercado oculto da delação premiada, um dos instrumentos jurídicos que serve de pilar para a Operação Lava Jato

Alexandre Morais da Rosa*, Conjur

Tenho insistido em buscar compreender a lógica do dispositivo do processo penal via delação premiada e Teoria dos Jogos[1]. As tentativas de aproximação com as coordenadas que aprendemos sobre o processo penal continental precisam ser atualizadas. Existem bons textos[2] teóricos que se valem da experiência americana, especialmente em face do pano de fundo — filosófico — do pragmatismo.

A proposta é a de metaforizar a delação como um mercado de compra e venda de informação (provas). De um lado, existe o monopólio do comprador — Estado, via Ministério Público — e, do outro, possíveis vendedores de informação (colaboradores/delatores). Havendo interesse recíproco na compra e venda de informação compartilhada, resta a fixação de seu preço. O comprador está interessado em obter informações capazes de imputar responsabilidade penal ao delator e também a terceiros, aceitando, com isso reduzir o preço penal (pena, regime etc.). Os critérios para fixação do preço são flutuantes e dependem da qualidade, quantidade e credibilidade do material vendido, enfim, das recompensas dos negociadores.

A questão a ser sublinhada é a da existência de modos ocultos de funcionamento. Não se trata de ilícitos, mas de blefes, jogadas arriscadas e cartadas do tipo ultimato: é pegar ou largar.

O filme em cartaz nos cinemas, 13 th, documentário da cineasta Ava DuVernay, mostra que o encarceramento em massa americano a partir da década de 1970 teve como alavanca o plea bargain, ou seja, a Justiça negociada, pela qual há um esforço da acusação para que o suspeito confesse a culpa e renuncie ao “direito ao processo”. Perceba-se que o processo é tido como direito disponível e, portanto, renunciável. Difere, assim, da tradição que entende a culpa como a decorrente de uma sentença judicial, excluindo, inclusive, a possibilidade de se condenar alguém exclusivamente com base na confissão (CPP, artigo 197). No novo modelo — que coexiste com o modelo continental —, negocia-se quase tudo. E a proposta é feita no “pegar ou largar”: se o suspeito aceitar a culpa — mesmo sendo inocente —, recebe uma pena pequena e com benefícios; se quiser o processo, não terá nenhum benefício e servirá de exemplo para que os futuros sejam “incentivados” a aceitar a culpa, mesmo sendo inocentes. Aliás, na semana anterior, narrei o caso de Peter Heidegger, que ficou preso 2.865 dias mesmo sendo inocente.

O dispositivo, em regra, atende ao seguinte cronograma:

1) reunião preliminar de intenção sobre a apresentação do produto informação (prova a se delatar);

2) assinatura de Termo de Confidencialidade, em que as partes se comprometem a não divulgar, nem usar, o material disponibilizado sem a negociação final;

3) formulação dos “anexos”, papel de protagonismo do colaborador/delator e advogados. A metodologia dos “anexos” autoriza o fatiamento da informação com ou sem valor de troca;

4) reunião de apresentação dos “anexos”, com indicação do conteúdo da prova, sem necessariamente todos os documentos comprobatórios;

5) reunião de apresentação dos benefícios — valor de compra — das mercadorias probatórias, a partir dos anexos;

6) reunião de debate e negociação sobre o conteúdo da proposta: estabelecimento do preço;

7) assinatura do acordo, com detalhamento do produto a ser entregue e as obrigações recíprocas;

8) depoimentos prévios gravados em áudio e vídeo, conduzidos pelo Ministério Público e sob supervisão dos defensores, com os delatores/colaboradores;

9) apresentação da proposta de homologação ao juízo competente, devidamente fixado o conteúdo das obrigações recíprocas;

10) homologação judicial do “contrato de compra e venda de informações”, em juízo;

11) possível recall com a inserção, exclusão de informações e novas cláusulas.

Entretanto, para além da legalidade, a metodologia utilizada difere em cada comprador, dada a ausência de regramento legal do “modo” como a negociação deve acontecer. Prevalece o jogo da negociação, do mercado flutuante e da capacidade de compra e venda de informações probatórias. Trata-se daquilo que o economista Alvin E. Roth[3] denomina de mercado de matching, em que haja uma “combinação”, uma confluência de interesses. É um mercado novo no ambiente processual penal, cujos desafios para compreensão devem ser articulados.

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Nas colunas seguintes, falarei da metodologia da proposta-relâmpago, dos blefes, trunfos e jogos ocultos, bem assim da venda do silêncio e da perda do preço de face da informação. Até a próxima.

*Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).

Fonte:

[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2016.
[2] ANSELMO, Márcio Adriano. Colaboração Premiada: O Novo Paradigma do Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Mallet, 2016; BITTAR, Walter Barbosa (Coord). Delação Premiada. Direito Estrangeiro, Doutrina e Jurisprudência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.
[3] ROTH, Alvin E. Como Funcionam os Mercados: A Nova Economia das Combinações e do Desenho de Mercado. Trad. Isa Mara Lando e Mauro Lando. São Paulo: Portfolio-Penguin, 2016, p. 15: “Matching é o jargão dos economistas para denominar de que maneira obtemos muitas coisas na vida, coisas que escolhemos mas que também precisam nos escolher. Não basta informar à Universidade de Yale que você vai se matricular, nem ao Google que você vai aparecer amanhã para começar a trabalhar lá. Você precisa ser aprovado ou contratado. Tampouco Yale ou o Google podem ditar quem vai escolhê-los, assim como um cônjuge não pode simplesmente escolher outro: cada um também tem que ser escolhido”.

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