Entre diversos significados, a vitória de Donald Trump indica que toda a arquitetura global, estabelecida no final da Segunda Guerra Mundial, se vê agora sob o risco de se despedaçar. As cartas da geopolítica serão embaralhadas de novo. Conheça as 7 propostas do republicano que explicam o seu triunfo
Ignacio Ramonet, Carta Maior | Tradução: Victor Farinelli
A vitória de Donald Trump – assim como o “brexit” no Reino Unido ou a vitória do “Não” no plebiscito sobre os acordos de paz na Colômbia – significa, primeiro, uma nova gigantesca derrota dos grandes meios de comunicação dominantes e dos institutos de pesquisas. Mas significa também que toda a arquitetura mundial, estabelecida no final da Segunda Guerra Mundial, se vê agora sob o risco de se despedaçar. As cartas da geopolítica serão embaralhadas de novo. Outra partida começa. Entramos numa nova era, que chama a atenção pela imprevisibilidade. Agora, tudo pode acontecer.
Como Trump conseguiu reverter uma tendência que o mostrava como perdedor e conseguiu se impor na reta final da campanha? Este personagem atípico, com propostas grotescas e ideias sensacionalistas, já havia despertado surpresas, revertendo prognósticos nas primárias do Partido Republicano, vencendo pesos pesados do setor, como Jeb Bush, Marco Rubio e Ted Cruz – que contavam, ademais, com todo o establishment do partido ao seu favor. Poucos acreditavam que ele sairia vitoriosos daquelas primárias, mas o resultado final foi uma contundente vitória do empresário, que reduziu seus adversários a cinzas.
É preciso entender que desde a crise financeira de 2008 – da que ainda não saímos – nada mais é igual em lugar nenhum. Os cidadãos estão profundamente desencantados. A própria democracia como modelo vem perdendo credibilidade. Os sistemas políticos têm sido sacudidos até as raízes. Na Europa, por exemplo, se multiplicam os terremotos eleitorais – o “brexit” foi só um deles. Os grandes partidos tradicionais estão em crise. Em todo o mundo, percebemos a ascensão de formações de extrema direita (na França, na Áustria e nos países nórdicos) ou de partidos antissistema e anticorrupção (na Itália e na Espanha). A paisagem política parece ter se transformado radicalmente.
Eis que esse fenômeno também chegou aos Estados Unidos, um país que já conheceu, em 2010, uma onda populista devastadora, encarnada naquele então pelo Tea Party. A surpreendente vitória do multimilionário Donald Trump prolonga essa tendência e constitui uma revolução eleitoral que nenhum analista previa. Embora se mantenha aparentemente a velha bicefalia entre democratas e republicanos, a vitória de um candidato tão heterodoxo como Trump constitui um verdadeiro sismo. Seu estilo direto, bonachão, com uma mensagem maniqueísta e reducionista, apelando aos instintos básicos dos setores populares da sociedade, um tom diferente do habitual dos políticos estadunidenses, confere a ele um caráter de autenticidade aos olhos dos mais decepcionados eleitores da direita. Para muitos cidadãos irritados com o “politicamente correto”, que acreditam que já não se pode dizer o que se pensa, sob pena de ser acusado de racista, a “palavra livre” de Trump sobre os latinos, os imigrantes e os muçulmanos é percebida como uma espécie de alívio.
Nesse sentido, o candidato republicano soube interpretar o que poderíamos chamar de “rebelião das bases”. Melhor que ninguém, ele percebeu a fratura cada vez mais ampla entre as elites políticas, econômicas, intelectuais e midiáticas, por uma parte, e a base do eleitorado conservador, por outra. Seu discurso violentamente anti Washington e anti Wall Street seduziu particularmente eleitores brancos, pouco cultos e empobrecidos pelos efeitos da globalização econômica.
Há de se precisar que a mensagem de Trump não é semelhante ao de um partido neofascista europeu. Não é um ultradireitista convencional. Ele mesmo se define como um “conservador com sentido comum” e sua posição, no leque da política estadunidense, se situaria mais exatamente à direita da direita. Empresário multimilionário e superestrela da telerrealidade, Donald Trump não é um antissistema, e tampouco um revolucionário, obviamente. Não representam uma censura ao modelo político em si, mas sim aos políticos que o pilotam. Seu discurso é emocional e espontâneo. Apela aos instintos, às tripas, não ao cerebral, não à razão. Fala para essa parte da população estadunidense na qual se difunde o desânimo e a decepção. Ele fala para aquele sujeito que está cansado da velha política, da “casta” política, e promete injetar honestidade no sistema, renovar nomes, rostos e atitudes.
Os meios vem dando grande difusão a algumas de suas declarações e propostas mais odiosas e burlescas. Recordemos, por exemplo, sua afirmação de que todos os imigrantes ilegais mexicanos são “corruptos, delinquentes e estupradores”. O seu projeto de expulsar 11 milhões de imigrantes ilegais latinos, levando-os de ônibus até a fronteira com o México. Ou sua proposta, inspirada em Game of Thrones, de construir um muro fronteiriço de 3 mil quilômetros ao longo de vales, montanhas e desertos, para impedir a entrada de imigrantes latino-americanos, afirmando também que os 21 bilhões de dólares da obra seriam custeados pelo governo do México. Nessa mesma lógica, Trump também anunciou que proibiria a entrada de todos os imigrantes muçulmanos no país, e atacou com veemência os pais de um militar estadunidense de fé muçulmana, Humayun Khan, morto em combate no Iraque, em 2004.
Trump também afirmou que o matrimônio tradicional, formado por um homem e uma mulher, é “a base de uma sociedade livre”, e sua crítica à decisão do Tribunal Supremo, que considerou que o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo é um direito constitucional. Trump apoia as chamadas “leis de liberdade religiosa”, impulsadas pelos conservadores em vários Estados, para negar serviços públicos para as pessoas LGTB. Sem esquecer suas declarações sobre que a crise climática é uma fraude, um conceito “criado por e para os chineses, para fazer que el setor de manufaturas estadunidense perda competitividade”, disse ele.
Este catálogo de disparates horripilantes e detestáveis foi massivamente difundido pelos meios dominantes, não só nos Estados Unidos mas em todo o mundo. E a principal pergunta que muita gente faz é: como pode um personagem com tão lamentáveis ideias consiga uma audiência tão grande entre os eleitores estadunidenses, que obviamente não podem estar todos lobotomizados? Algo não se explica nesta equação.
Para responder a essa pergunta temos que salta a muralha informativa e analisar mais de perto o programa completo do candidato republicano e descobrir os sete pontos fundamentais que defende, silenciados pelos grandes meios de comunicação:
1) os jornalistas não perdoam, em primeiro lugar, que se ataque de frente o poder midiático. Atacam Donald Trump por estimular constantemente o público a vaiar os meios “mentirosos” em seus comícios. Trump costuma dizer que não está competindo com Hillary Clinton, “estou competindo contra os corruptos meios de comunicação”. Numa mensagem por twitter, já na reta final da campanha, ele escreveu que “se os repugnantes e corruptos meios me cobrissem de forma honesta, e não injetassem significados falsos nas minhas palavras, eu estaria vencendo a Hillary por 20%”.
Por considerar a cobertura midiática injusta e parcial, o candidato republicano não duvidou em retirar as credenciais de jornalistas que cobriam os seus atos de campanha, representantes de vários veículos importantes, como o The Washington Post, Huffington Post e BuzzFeed. Se atreveu a atacar até mesmo a poderosa Fox News, a grande cadeia da direita panfletária, apesar desta o apoiar e manifestar sua preferência por sua candidatura.
2) Outra razão pela qual os grandes meios atacaram Trump é porque ele critica a globalização econômica, convencido de que esta acabou com a classe média. Segundo ele, a economia globalizada está falhando cada vez mais em oferecer soluções às pessoas, e lembra que, nos últimos quinze anos, mais de 60 mil fábricas tiveram que fechar as portas nos Estados Unidos, e quase cinco milhões de empregos industriais bem pagados desapareceram.
3) Trump é um fervente defensor do protecionismo. Propõe aumentar as taxas, sobretudos aos produtos importados. “Vamos recuperar o controle do país, faremos com que os Estados Unidos volte a ser um grande país”, costuma afirmar, reforçando seu slogan de campanha.
Partidário do “brexit”, Donald Trump revelou que uma das suas principais medidas será a de tentar retirar os Estados Unidos do Tratado de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA, por sua sigla em inglês). Também criticou fortemente o Acordo de Associação Transpacífico (TPP por sua sigla em inglês), e assegurou que também afastará o país desse projeto: “o TPP seria um golpe mortal para a indústria manufatureira dos Estados Unidos”.
Em regiões como o “cinturão da ferrugem” do nordeste, onde mais se viu fábricas manufatureiras fechando e deixando altos níveis de desemprego e pobreza, esta promessa de Trump surte efeito.
4) O mesmo efeito ocorre a respeito de sua postura contrária aos ajustes neoliberais em matéria de seguridade social. Muitos eleitores republicanos com mais de 65 anos, vítimas da crise econômica de 2008, carecem dos benefícios como a aposentadoria e o seguro público de saúde criado pelo presidente Barack Obama, e que outros líderes republicanos queriam revogar. Trump prometeu não tocar nestes avanços sociais, e ainda garantiu que diminuirá o preço dos medicamentos, que ajudará a resolver os problemas dos “sem teto”, reformar a fiscalização aos pequenos contribuintes e suprimir o imposto federal que afeta 73 milhões de lares modestos.
5) Contra a arrogância de Wall Street, Trump propõe aumentar significativamente os impostos dos corretores da bolsa, que ganham fortunas. Ele apoia o restabelecimento da Lei Glass-Steagall (aprovada em 1933, em plena depressão econômica da época), que separou a banca tradicional da banca de investimentos, com o objetivo de evitar que a primeira pudesse fazer investimentos de alto risco. Obviamente, todo o setor financeiro se opõe absolutamente a esta medida.
6) Em termos de política internacional, Trump fala em estabelecer uma aliança com a Rússia para combater com eficácia a organização Estado Islâmico (ISIS, por sua sigla em inglês), mesmo que, para isso, Washington tenha que reconhecer a anexação da Crimeia por parte dos russos.
7) Trump estima que, devido à sua enorme dívida soberana, os Estados Unidos já não dispõe dos recursos necessários para conduzir uma politica exterior intervencionista indiscriminada. Já não pode impor a paz a qualquer preço. Destoando do discurso dos caciques do seu partido, o empresário diz que sua postura é uma consequência lógica do final da Guerra Fria, e que é preciso mudar a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte, principal coalizão militar do Ocidente): “não haverá mais garantias de uma proteção automática dos Estados Unidos para os países da OTAN”.
Todas estas propostas não suavizam sua figura, nem absolvem o inaceitável e odioso, às vezes nauseabundo, das suas declarações e dos preconceitos que propagou durante a campanha. Porém, explicam melhor a razão do seu triunfo.
Em 1980, a inesperada vitória de Ronald Reagan para o mesmo cargo de presidente dos Estados Unidos levou o planeta a entrar num ciclo de duas décadas de neoliberalismo e de globalização financeira. A vitória de Donald Trump pode nos fazer entrar num novo ciclo geopolítico, que tem no “autoritarismo identitário” sua perigosa característica ideológica principal –que vemos surgir em todo o mundo, sendo a França, com a possível vitória de Marine Le Pen, o próximo possível exemplo dessa ascensão.
Um mundo velho está se derrubando, e o que parece vir depois disso é assustador.
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